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Crise na Venezuela: quem são os indígenas que se rebelaram contra o governo Maduro

Aqui, o governo somos nós", diz um dos homens armados com arcos e flechas, parte de um grupo de indígenas que tomaram o controle do aeroporto de Santa Elena de Uairén, no sul da Venezuela, próximo da fronteira com o Brasil.

Ele faz parte dos pemones, um povo indígena que habita a região venezuelana de Gran Sabana e do Parque Nacional de Canaima, uma grande área protegida no sudeste do país. Desde o começo de dezembro de 2018, toda a região está rebelada contra o governo do presidente Nicolás Maduro.

Os pemones passaram séculos vivendo segundo suas próprias leis e costumes nesta área, que tem com maravilhas naturais como a cachoeira de Salto Ángel – a queda d'água mais alta do mundo e um dos principais cartões-postais da Venezuela.

A região também é extremamente rica em recursos – especialmente jazidas minerais. Mas, no último dia 8 de dezembro, este povo indígena ganhou as manchetes da mídia venezuelana depois de um episódio turbulento.

A imprensa local noticiou a morte do jovem pemon Charly Peñaloza, de 21 anos, morto na área do acampamento El Arenal, próximo ao rio Carrao, por um destacamento da Direção Geral de Contrainteligência Militar (DGCIM), do governo venezuelano.

Segundo o relato da imprensa local, Peñaloza foi morto enquanto defendia outros indígenas que foram alvo de um ataque com armas de guerra. A incursão teria sido parte de uma operação secreta da DGCIM e da Corporación Eléctrica Nacional (Corpoelec), a companhia estatal de energia elétrica da Venezuela.

Por estarem em maior número, os moradores acabaram rendendo os servidores da DGCIM e da Corpoelec, e capturaram alguns deles. Também ficaram com as armas e explosivos dos funcionários.

Os líderes pemones classificaram a morte de Peñaloza de "assassinato" – assim como a Anistia Internacional, uma ONG transnacional que agora exige o fim das agressões do governo venezuelano contra a comunidade indígena.

'Combate à mineração'

O presidente venezuelano, Nicolás Maduro, demorou até o dia 12 de dezembro para mencionar o episódio.

Disse que o conflito foi parte do "combate contra a mineração ilegal, que causou um dano terrível ao Parque Nacional Canaima", e assegurou que "há grupos armados que conseguiram se infiltrar nas aldeias indígenas".

Mas não há apenas um interesse ecológico por trás da ação do governo.

Desde que começou a perder receitas do setor petroleiro e a sofrer sanções econômicas dos Estados Unidos, Maduro têm dito que a combalida economia venezuelana sobreviverá graças à exportação de riquezas minerais.

Em 2016, o governo criou a Zona de Desenvolvimento Econômico Nacional do Arco Mineiro do Orinoco. Trata-se de uma tentativa de criar uma fonte alternativa de renda com base nas minas desta região, que se estende desde a fronteira com a Guiana, ao leste, até o Brasil, ao sul. Além de ouro, a região tem ferro, bauxita, diamantes e coltan (um tipo de minério rico em nióbio e em tântalo) em abundância.

Nos últimos anos, Maduro fechou dois acordos com a Turquia para a venda de ouro venezuelano, evitando que este comércio seja paralisado pelas sanções de outros países.

Ambientalistas alertam para o fato de que o garimpo irregular que proliferou nos últimos anos ameaça não só a bacia do Orinoco, mas também a região paradisíaca habitada pelos pemones.

São três milhões de hectares de natureza selvagem, reconhecidos como patrimônio da humanidade pela Unesco. A região abriga ainda os montes Tepuyes, uma das formações geológicas mais antigas e singulares do mundo.

Os pemones acusam o governo de usar o pretexto da proteção ao meio ambiente para militarizar a região e assim garantir o controle dos recursos naturais. O Ministério das Comunicações da Venezuela não respondeu o pedido de informações da BBC News Mundo sobre a situação em Canaima.

Quando Maduro comentou o assunto, em 12 de dezembro passado, os pemones já estavam protestando pela morte de Peñaloza. Interromperam o tráfego na rodovia Troncal 10, que liga a Venezuela ao Brasil; deram início a uma greve geral e tomaram o controle do aeroporto de Santa Elena de Uairén, próximo da fronteira com o Brasil – portanto, é impossível agora acessar Canaima sem a autorização deles.

A mobilização dos indígenas obrigou à suspensão, no território, das eleições locais que ocorreram no resto da Venezuela em 9 de dezembro.

Rumo a Canaima

Para conhecer a realidade sobre a área e os motivos da rebelião dos pemones, a reportagem da BBC enfrentou uma longa viagem da capital venezuelana, Caracas, até Canaima, no coração do parque nacional.

Geralmente, o local só é acessível por meio de pequenos aviões que costumam levar turistas até o parque, ao custo de milhares de dólares. Também é preciso ter autorização dos caciques pemones, chefes das comunidades locais, para voar de Santa Elena até suas terras.

Só para chegar a Santa Elena foram dois dias de viagem nas perigosas rodovias venezuelanas. Foram quase 1,3 mil quilômetros de buracos, pneus estourados e barreiras policiais.

Atravessando localidades como Tumeremo, Las Claritas e El Callao, é possível compreender a importância que a mineração ilegal ganhou para os moradores do Estado venezuelano de Bolívar.

Em meio à crise econômica que assola a Venezuela, com famílias sofrendo para obter comida, remédios e outros artigos de primeira necessidade, muitos encontraram na extração de ouro uma fonte de sustento.

O governo dos pemones

Em Santa Elena, fomos recebidos por um membro do Conselho de Caciques, a entidade que reúne os chefes das comunidades pemones. Ele estava nervoso e exausto após dias e dias de protestos depois da morte de Peñaloza. "Isto aqui não é nenhuma brincadeira, estamos lutando contra o Estado", disse.

No aeroporto, por exemplo, havia dezenas de pemones que estavam há dias ocupando o local, para evitar que caia nas mãos das forças do governo. Exigiram saber quem éramos nós e o que estávamos fazendo em Canaima.

Os pemones discutem todos os assuntos importantes em grandes assembleias. Assistimos uma dessas reuniões, realizada na língua pemón, indecifrável para quem não conhece o idioma.

Na pista de pouso, um ancião chamado Wesley me explicou que a queda nos rendimentos do turismo está deixando sua gente sem alternativas.

"Costumavam vir aqui muitos estrangeiros, mas agora vivemos em agonia. Precisamos de ajuda, e o que vemos é o governo iniciando uma guerra não declarada para nos matar", diz.

A poucos metros dali, um homem de meia-idade armado com arco e flecha, chamado Antonio Martínez, e que se apresentou como descendente de "grandes guerreiros" me falou sobre o que acredita serem as razões do conflito.

"Esta é uma luta antiga. Quiseram nos dominar por causa das riquezas auríferas das nossas terras. Conseguiram com nossos pais, mas conosco não conseguirão."

Pouco depois, pegamos um pequeno avião Cessna e sobrevoamos um grande e denso bosque. Um amigo me avisou: "Você vai se sentir como se sobrevoasse um grande brócolis".

Mas o tal "brócolis" estava com feridas bem visíveis.

Do alto era possível ver a proliferação de garimpos, que ao destruir a vegetação, alteram um ecossistema único.

Ao aterrissar na única pista do aeroporto de Canaima, descobrimos que dezenas de indígenas aguardavam com ansiedade pela nossa chegada.

Outro cacique se encarregou de nos receber, mas o fato de ele estar conosco não evitou que todos os integrantes da nossa equipe tivessem seus dados meticulosamente registrados.

Estávamos numa comunidade que vivia em estado de exceção – e até para se conectar às redes de wifi era preciso pedir autorização para o Conselho de Caciques.

Um grupo de guardas nos escoltou até a pousada onde ficamos alojados.

O ambiente era tão tenso que, mesmo com os esforços do afável guia que nos foi designado, era difícil desfrutar de maravilhas naturais como a lagoa de Canaima.

Atendendo ao chamado de seus irmãos de Canaima, centenas de indígenas de outras comunidades se dirigiram ao local para apoiá-los diante do perigo de uma nova incursão militar do governo venezuelano, que muitos consideravam certa.

Circulava inclusive um rumor de que uma equipe de combate do Exército já estava pronta para atuar.

Outros rumores diziam que o ministro da Defesa venezuelano, Vladimir Padrino, chegaria a Canaima naquele dia para resolver a crise.

Os pemones estavam muito nervosos após dias longe de casa, e preparados para qualquer cenário. Não eram poucos entre eles que se diziam convencidos de uma "guerra" iminente, e dispostos a morrer nela.

Enquanto os caciques seguiam com intermináveis reuniões, os três membros da DGCIM capturados pelos indígenas permaneciam sob custódia, à espera de que sua sorte fosse decidida.

A indígena Achimiko, de 32 anos, era encarregada de uma das pousadas para turistas. Fui convidado por ela a dividir com sua família um prato de tumá, uma espécie de guisado picante típico da culinária pemón.

Ela me contou sua história – que segundo ela é parecida com a de muitos outros de seu povo – enquanto sua família preparava o casabe, um tipo de pão de mandioca muito popular na Venezuela.

"Minha família trabalhou a vida toda recebendo turistas, mas desde que começou este governo, eles não vêm mais", disse ela.

A crise do turismo

A falta de segurança e outros problemas que atingem a Venezuela levaram muitos estrangeiros a deixar de considerar o país na hora de decidir o destino das férias.

"Foi o governo que nos obrigou a adotar a mineração. Não o fazemos porque queremos, mas por necessidade", disse Achimiko.

Ela se dizia "indignada" com Maduro. "Nos acusam de vender o ouro para fora do país, quando na verdade estamos vendendo para o próprio governo. O que querem é tomar controle da região", diz ela.

Jesús Fernandez, outro morador local, nos ofereceu um café e nos contou que, anos atrás, deixou seu trabalho de professor porque o salário não era suficiente para comprar mais que dois pacotes de farinha de milho – que na Venezuela é usada para fazer a popular arepa. Agora, ele ganha a vida combinando seu trabalho na mineração com bicos ocasionais, como o de pedreiro.

"Nunca passamos por uma situação tão difícil como a de agora, e foi por isso que nos voltamos para a mineração", disse.

Quando sai para trabalhar, Jesús reúne seus colegas e caminha com eles durante dias, até chegar nas áreas de mineração.

Ele costuma trabalhar numa curiara, um tipo de canoa tradicional indígena. Sua função é garantir que mergulhadores – que passam horas submersos procurando ouro – recebam oxigênio suficiente.

Às vezes é preciso buscar durante dias até encontrar ouro.

Junto a seus companheiros, Jesús cumpre jornadas que chegam a se estender das seis da tarde até as seis da manhã do dia seguinte. Em troca, cada um chega a ganhar uma grama de ouro em pó. Esta pode ser vendida por cerca de US$ 26 (o equivalente a R$ 96).

É relativamente pouco, mas já é quatro vezes o salário mensal que ele ganhava como professor.

Para este indígena pemón, extrair e vender ouro parece ter se tornado a última alternativa para conseguir algum dinheiro.

'Garantidores'

Uma das pessoas que acompanhou mais de perto os problemas da região é a jornalista de viagens venezuelana Valentina Quintero, que se dedicou durante anos a mostrar ao público os tesouros de seu país.

Conversei com ela em sua casa em Caracas – ela se mostrou crítica aos mineiros pemóns. Além das leis da venezuelanas, diz ela, as próprias crenças ancestrais dos indígenas os obrigam a cuidar do ambiente único que habitam.

"Eles deveriam ser os garantidores da vida no Parque Nacional. Causa muita surpresa quando eles, que são os habitantes originais, vão contra os seus costumes e começaram a trabalhar com a mineração lá."

Argumentos como os de Valentina Quintero não são suficientes para o mineiro Jesús Fernández. "Estamos cientes de que o trabalho na mina danifica a natureza, mas não vamos morrer de fome", ele me disse.

Sem notícias do governo

Nosso primeiro dia entre os Pemones terminou com um breve encontro com os caciques.

Eles esperavam que o ministro da Defesa, Vladimir Padrino, finalmente aparecesse em Canaima. Esperavam que nós registrássemos a notícia de sua chegada.

Os caciques pareciam desapontados quando lhes dissemos que achávamos improvável que o ministro aparecesse.

Eles queriam dizer ao ministro e ao mundo que, ao contrário do que o governo afirma, eles não têm armas e são pessoas pacíficas.

Talvez por já terem se convencido de que Padrino não chegaria, no dia seguinte os caciques não se preocupavam mais conosco.

Fomos procurados também por alguns indígenas que estavam insatisfeitos com a atuação dos caciques. Queriam informações – que nós não tínhamos – sobre como estavam as negociações de seus chefes com as autoridades.

Nós também esperávamos notícias, principalmente sobre quando poderíamos deixar a região. Conforme eles tinham nos alertado, "o tempo pemón é lento".

Voltamos a conversar com o cacique que tinha nos recebido na cidadezinha de Santa Elena.

Ele parecia muito preocupado. Contou que estava há dias sem dormir, e repetia que a situação estava ficando complicada.

Temia tanto uma possível reação das forças de segurança do governo quanto um estalo de indignação do seu próprio povo, que estava há dias esperando que "algo acontecesse".

Tensão no aeroporto

O chefe nos disse também que estava a caminho um pequeno avião, no qual poderíamos regressar a Santa Elena. Mas não estava claro se o Instituto Nacional de Aeronáutica Civil da Venezuela autorizaria o voo.

No aeroporto, logo descobrimos que os temores do cacique sobre um possível tumulto entre os pemones tinham fundamento.

Dezenas de jovens indígenas se concentravam na pista de pouso, com o rosto coberto por pinturas tradicionais – sinal de que se preparavam para a ação. Alguns deles desaprovavam a nossa viagem.

Pediram que ficássemos ali até a chegada de mediadores internacionais que eles tinham solicitado a fim de proteger-se de possíveis ações hostis do Exército venezuelano.

Finalmente conseguimos deixar Canaima depois de nos despedirmos apressadamente. Ficamos convencidos de que os pemones não serão vencidos facilmente.

'Ou nos matam, ou nós os matamos'

No dia seguinte, enquanto viajávamos de carro rumo a Caracas, recebi um vídeo que reforçou esta impressão.

No auditório comunal de Canaima, os três funcionários sequestrados da DGCIM aparecem cabisbaixos e com as mãos amarradas.

Sentado entre dezenas de pemones, um general das Forças Armadas – enviado a Canaima para negociar – ouve as palavras que lhe são dirigidas por José Luis Galletti, um dos mais respeitados líderes dos indígenas.

Galletti anuncia que devolverá as armas apreendidas com os membros da DGCIM, mas alerta:

"Nós daremos nossa vida por nosso povo. Se chegar a ocorrer outra incursão dentro do nosso território ou contra nossa gente, tenha certeza de que não vai terminar desta maneira (pacífica). Ou vocês nos matam, ou nós vamos matar vocês com as suas armas."

O militar escuta impassível. Esta é, até agora, a última imagem do conflito dos indígenas com o Estado venezuelano.

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