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Veja como o tráfico internacional de drogas tomou os portos brasileiros

Porto de Santos é o mais importante dos principais portos brasileiros

Valor
05 Agosto 2023

O porto de Santos bateu no ano passado mais um recorde. Um volume transportado de 162,4 milhões de toneladas de cargas. A movimentação representou US$ 174,6 bilhões. Soja, milho, suco de laranja, carnes, celulose estão entre as cargas passam em maior volume nos cargueiros que partem todos os dias do porto. Nos primeiros meses de 2023, os números continuam impressionando. Quase 30% de todas as trocas comerciais do Brasil passam por Santos. Mas o maior porto do Brasil figura também há anos em outro tipo de estatística: a do tráfico internacional de cocaína.

Entre 2016 e 2022, a Receita Federal apreendeu 126 toneladas da droga em contêineres ou escondidas em partes dos navios que estavam prestes a zarpar. Este ano, até junho foram 6 toneladas. Quase sempre, o destino seria a Europa. Segundo autoridades europeias, Santos aparece como segundo maior emissor do mundo de cocaína para o velho continente.

Nas últimas semanas, o Valor reuniu dados e relatos da Polícia Federal, da Receita Federal, do Ministério Público, da Secretaria de Segurança de São Paulo e de funcionários da União Europeia, que ajudam a montar um retrato atualizado sobre como o crime tem explorado estruturas portuárias do país — sobretudo em Santos.

O envolvimento de traficantes locais com comércio com a Europa contribuiu, nos últimos anos, para mudar a paisagem da criminalidade da Baixada Santista, segundo a promotores de Justiça.

Desde o fim de julho, o governo de São Paulo mantém uma operação especial na Baixada. A ação começou após um policial ser morto em serviço. A operação da PM deixou pelo menos 16 civis mortes até este domingo. Embora o foco não seja o combate ao narcotráfico em Santos, os policiais da operação têm que lidar também com essa questão.

A exploração do porto de Santos, assim como de outros do país, por narcotraficantes é um problema sem solução clara e que expõe as limitações de polícias, agentes aduaneiros e outras autoridades mundo afora. Principais portos da Europa também têm se mostrado altamente porosos ao crime.

Apesar de variações constantes, o modus operandi costuma ser disfarçar o ilícito no lícito.

Em setembro do ano passado traficantes acondicionaram 772 kg de cocaína em um carregamento de 640 sacas de café que sairia de Santos e que tinha como destino o porto belga de Antuérpia, o segundo maior da Europa. Um cão farejador e o uso de scanner ajudaram Receita e PF na apreensão.

Em fevereiro passado, o disfarce foi um contêiner com sacas de amendoim que seguiriam para a Polônia. O cargueiro tinha baldeação prevista em Antuérpia. No meio do amendoim, tabletes com 887 kg de cocaína. Em março, em um contêiner de 40 pés carregado com proteína de soja, traficantes esconderam embalagens com, ao todo, 670 kg de cocaína. Destino: Antuérpia. Novamente, cachorro e scanner ajudaram os agentes.

Autoridades europeias dizem que um grama da droga custa hoje entre 40 euros (cerca de R$ 215) e 70 euros (R$ 375). Só lotes misturados à soja brasileira teriam movimentado entre 27 milhões de euros e 47 milhões de euros.

“O Brasil é um país de trânsito [de droga], um país de envio, o que, em si, é um problema bastante grande tanto para o Brasil quanto para nós, porque os narcotraficantes são parasitas das infraestruturas que existem entre a América do Sul e da América Latina em geral e Europa”, disse ao Valor Laurent Laniel, principal analista científico do Centro de Monitoramento Europeu de Drogas e da Dependência das Drogas (EMCDDA na sigla em inglês), órgão da União Europeia sediado em Lisboa que acompanha o mercado de entorpecentes.

“O porto de Santos é um dos grandes portos da América Latina e tem um comércio fenomenal com a Europa, e traficantes aproveitam este número fantástico de contêineres que saem daí para Antuérpia, Roterdã, Valência e outros portos europeus.” São cerca de 10 mil contêineres entrando e saindo diariamente de Santos.

Laniel é um veterano especialista no monitoramento do narcotráfico. Mas diz que o trânsito de cocaína nos volumes atuais dentro de contêineres para a Europa impressiona autoridades.

“O tráfico de cocaína por conteinêres não é algo novo, mas o volume, a magnitude, isso sim é novidade. Ou não tínhamos noção [do que passava pelas autoridades portuárias] antes ou houve uma explosão da utilização desse meio marítimo para transportar cocaína há menos de dez anos”, disse.O tráfico de cocaína por contêineres não é algo novo, mas o volume, a magnitude, isso sim é novidade — Laurent Laniel

Além do Brasil, Equador e Colômbia também têm sido grandes remetentes de cocaína para a Europa. Os europeus computam que entre 2019 e 2021, 58 toneladas foram flagradas no porto equatoriano de Guaiaquil em navios que rumariam para a Europa ou já aportados recém-chegados de Guaiaquil. Santos aparece em segundo: 25 toneladas (ver quadro abaixo). Apesar do aumento das ocorrências nos portos, as apreensões totais da Receita Federal estão em queda.

mapa-cocaina — Foto: Arte/Valor
mapa-cocaina — Foto: Arte/Valor

Santos não é a única opção dos traficantes brasileiros. No ano passado, segundo a Receita, foram apreendidas no porto de Barcarena (PA) 2,7 toneladas; em Itajaí (SC) ,1,7 tonelada; e em Paranaguá (PR) 1,1 tonelada. Mas Santos — a julgar pelas apreensões — aparece como opção preferencial.

Em 2021, de um total de 36,3 toneladas bloqueadas por Receita e PF em portos do país, 16,8 toneladas estavam em Santos. Em 2022, das 24 toneladas, 16,4 toneladas estavam em Santos. E neste ano, entre janeiro e junho, de um total de 8,6 toneladas, 5,8 toneladas estavam no porto do Santos.

As conexões ilícitas entre a cidade e portos europeus contribuíram para mudar a criminalidade na cidade e na Baixada Santista.

Silvio Loubeh, promotor de Justiça do MP paulista e membro do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), conta que o que se viu na Baixada Santista nos últimos anos foi a conversão de vários pequenos traficantes em traficantes internacionais. Criminosos que ascenderam usando as brechas do porto. Muitos já abriram mão do varejo local para se concentrar na demanda europeia, diz Loubeh.

A mudança de patamar, continua ele, trouxe reflexos para a criminalidade porque mais dinheiro passou a circular no mercado clandestino. Mais galpões e espaços em favelas passaram a ser alugados para estocar cocaína antes dos embarques, mais gente passou a trabalhar na engrenagem do crime.

Facção criminosa que atua dentro e fora dos presídios também se apoia na estrutura de Santos, segundo o MP. O grupo criminoso, segundo investigações, mantém uma relação de negócios com traficantes italianos da máfia calabresa ‘Ndrangheta. Santos também serve de logística para operações entre outros grupos brasileiros e europeus. Em 2019, a Justiça condenou um bando que atuava em Santos. Criminosos que integravam uma máfia da Sérvia faziam parte do grupo.

O fluxo da droga entre sul-americanos e europeus tem sido tema de discussões entre autoridades dos lados do Atlântico. E esteve na pauta da cúpula entre líderes das duas regiões, ocorrida em meados de julho em Bruxelas.

Mapa da localização dos Portos Brasileiros. A grande maioria dos portos são públicos. gráfico ANTAQ

A comissária da União Europeia para Assuntos Internos, Ylva Johansson, viajou recentemente para Colômbia e Equador para tratar do uso dos portos pelos narcos. Em meados de julho foi a vez de Eric Snoeck, comissário-geral da Polícia Judiciária da Bélgica, e de Peter Debuyscher, diretor de Cooperação Internacional e vice-presidente da Interpol para a Europa, receberem o diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Rodrigues, para discutirem estratégias de incremento da cooperação no combate ao narcotráfico, informa a PF. Apenas três países operam como fontes primárias de toda a cocaína do mundo: Bolívia, Colômbia e Peru.

A PF tem trabalhado em operações conjuntas em portos e em treinamento com a polícia da Bélgica e de outros europeus. Em março, numa vitória do esforço conjunto, foi desarticulada uma organização que usava os portos do Rio Grande (RS) e Itajaí para enviar pó para a Europa. Investigações apontaram que o grupo transacionou 17 toneladas da droga.

Mas mesmo com cooperação, inteligência e operações conjuntas, os grupos criminosos seguem movimentando toneladas e toneladas de droga pelos mares contando com buracos nos portos dos dois lados do Atlântico.

Em junho, Ylva Johansson lembrou isso no evento de lançamento do European Drug Report 2023. “Cerca de 100 milhões de contêineres de carga entram em nossos portos todos os anos. Apenas alguns podem ser inspecionados, entre 2% e 10%. Portanto, é fácil para os criminosos se infiltrarem em nossos portos”, disse. No Brasil, como na Europa, só uma amostra da carga é scanneada, farejada e inspecionada em detalhes.

No mesmo discurso, Ylva foi didática ao descrever o estado atual da ação do tráfico internacional.

“Criminosos criam empresas de fachada para enviar drogas junto com cargas legítimas. E têm como alvo os trabalhadores portuários, pessoal de empresas de navegação, transporte e segurança, agentes da lei e funcionários da Alfândega. Os criminosos entram em clubes esportivos. Aceitam empregos nos portos apenas para se aproximar dessas pessoas. E oferecem muito dinheiro por informações, por acesso, por códigos de contêineres, para operadores de guindastes, para colocarem um contêiner em um local de fácil acesso.”

A última estimativa feita pelo EMCDDA apontou que somente em 2020 o varejo da cocaína movimentou na Europa algo entre 7,7 bilhões de euros e 12,8 bilhões de euros. A estimativa é que naquele europeus consumiram surpreendentes 158 toneladas de cocaína.

“O tráfico internacional é uma atividade inevitável, mas o Estado tem sim como diminuir muito o fluxo de drogas pelos portos”, diz ele. Isso passaria por mais recursos, mais pessoal e, acrescenta — repetindo um refrão conhecido entre policiais e promotores — passaria por decisões da Justiça mais duras com traficantes.

Renato Sergio de Lima, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, fala em aprimoração da governança e de mais articulação na fiscalização e rastreabilidade das cargas. “E é preciso ter também uma camada extra de controle da corrupção sobre acordos, negócios e sobre toda a cadeia dos portos. Se não se combater a corrupção, a forma como muitas vezes os portos são apropriados por grupos políticos, não se consegue, só com a polícia, resolver o problema.”

A Receita disse que trabalha em cooperação com aduanas de vários países e com os organismos importantes como UNODC e Interpol, o que ajuda no trabalho de inteligência e repressão. “O objetivo é buscar não só a apreensão em si, mas também a origem do crime para atingimento da fonte de recursos das quadrilhas”, disse a Receita.

Autoridade Portuária de Santos, empresa pública vinculada ao Ministério da Infraestrutura (Minfra), responsável pela gestão e fiscalização das instalações portuárias e das infraestruturas públicas, disse, por sua assessoria, que o combate ao narcotráfico é tema da Polícia Federal.

Valor perguntou o que a Polícia Federal considera fundamental para que portos brasileiros deixem de ser explorados pelo tráfico como são hoje e também se há uma nova estratégia sendo elaborada. A Coordenação de Repressão a Entorpecentes disse que não responderia, afirmando que não considera prudente tratar desses pontos publicamente.

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