Lisandra Paraguassu
Um relatório do Painel da ONU sobre Iêmen e Somália aponta que a fabricante brasileira de armas Forjas Taurus negociou e enviou em 2015 um carregamento de 8 mil armas a um filho do iemenita Fares Mohammed Mana’a, listado como um dos maiores traficantes internacionais de armas, três meses após a organização colocar o Iêmen sob embargo.
O documento da Organização das Nações Unidas, que cita e aprofunda informações reveladas pela Reuters em setembro do ano passado, afirma que um dos indícios encontrados mostra que a empresa usada como operadora da venda, a Itkhan Trade Company, tem como CEO Adeeb Mana’a, filho de Fares Mana’a.
As conclusões do painel, depois de seis meses de investigações, seguem a linha do processo aberto pelo Ministério Público Federal do Rio Grande do Sul contra dois ex-executivos da Taurus, Eduardo Pezzuol e Leonardo Sperry, apontados como os responsáveis pela venda ilegal de armas ao traficante Fares Mana’a.
A venda, que tinha como destino o traficante iemenita, foi feita ao Djibouti como forma de contornar as restrições de segurança em torno de Mana’a e do Iêmen, segundo a ONU.
Em mensagens de email obtidas na investigação brasileira sobre as negociações entre a Taurus e a Itkhan, Adeeb é citado pelos ex-funcionários como o seu contato na venda, mas mostram que a empresa também tinha relação direta com Fares.
“O Painel considera que o modus operandi da transferência de armas foi designado para contornar os controles regulares de aduanas e de segurança”, informa o relatório.
O Painel da ONU informa, ainda, que as licenças finais de exportação foram emitidas para a Taurus em fevereiro de 2015 –antes, portanto, do Iêmen entrar na lista de países sob sanção, em abril– mas o carregamento só saiu do Porto de Santos, em São Paulo, em julho do mesmo ano.
“Se a Forjas Taurus tivesse tido os devidos cuidados teria identificado aspectos da compra dessas armas que eram suspeitos em relação ao embargo de armas ao Iêmen e poderia ter parado o embarque das armas”, afirma o relatório, divulgado no dia 17 de fevereiro.
Sem tentativa de contornar controles, diz empresa
Em nota enviada à Reuters, a empresa afirma que “não participou de qualquer tentativa de contornar controles de segurança” e que a transação foi totalmente documentada e seguiu todos os protocolos exigidos pelas legislações brasileiras e internacionais.
“Não havia qualquer restrição em relação a vendas para esse país. Portanto, se houve alguma tentativa de contornar controles de segurança, isto foi feito à revelia da Taurus e das autoridades brasileiras”, disse a empresa em resposta a questionamentos enviados pela Reuters.
Assim como em outra negociação de 8 mil armas em 2013, investigada no Brasil, a nova venda de armas era endereçada ao Ministério da Defesa do Djibouti, pequeno país do nordeste da África, onde, exatamente do outro lado do estreito de Bab al-Mandad, está o Iêmen.
O Painel da ONU identificou diversos sinais de que Djibouti era, como classificou o Ministério Público brasileiro, apenas um “entreposto fictício” para a venda de armas a Mana’a e sua subsequente distribuição no Iêmen e na Somália, que também está sob embargo.
Entre as inconsistências levantadas pelo Painel da ONU está o fato de a Taurus ter obtido um certificado de compra de armas do Chefe do Comando Militar do Djibouti para 80 mil pistolas. O país possui apenas 16 mil militares na ativa e 9,5 mil reservistas na suas forças de segurança.
“Esse é um número incomumente alto de armas para uma Força deste tamanho”, diz o relatório.
O certificado de exportação foi emitido em nome da empresa Matrix, comandada por Abddurabuhguhqd Sale Abdo, segundo o relatório da ONU. No entanto, este é o único momento que a Matrix e seu presidente são citados em todos os documentos de venda, seja de embarque, financeiro ou legal. Todos os documentos relevantes estão em nome da Itkhan Trade e de seu CEO, Adeeb Mana’a.
O relatório aponta ainda que o endereço da Itkhan no Djibouti não existe no país e todos os dados da empresa — telefones e emails, por exemplo, são do Iêmen.
O modo de operação da venda detectada pelo Painel da ONU repete o que foi feito na primeira venda de 8 mil armas, investigada no Brasil pela Polícia Federal e que levou à abertura de processo por tráfico internacional de armas contra os ex-executivos da Taurus –a empresa em si não foi denunciada pelo Ministério Público.
A venda de que trata o painel da ONU seria ainda um segundo carregamento, de 8 mil armas. Pelo menos um terceiro estava sendo negociado em 2015 –já com o Iêmen sob embargo– quando o esquema foi descoberto pela Polícia Federal e a venda, interrompida.
Com a colaboração das autoridades brasileiras, o Painel da ONU teve acesso a certificados de exportação emitidos para a Taurus para venda ao Ministério da Defesa do Djibouti, tendo como intermediários a empresa ItKhan e seu representante, Adeeb Mana’a.
Questionado sobre o tipo de informação e checagem de segurança que o governo brasileiro faz antes de emitir os certificados, o Ministério da Defesa –responsável pelas licenças– não respondeu até a publicação desta reportagem.
O painel também detalhou pagamentos feitos à Taurus pela Itkhan entre os dias 18 de novembro e 3 de dezembro de 2013 por meio de uma conta bancária em Nova York. Foram três transferências totalizando 543.860 dólares –cerca de 1,7 milhão de reais em valores atuais.
Também estão registradas três faturas emitidas pela Taurus em 23 de dezembro de 2013 para o Ministério da Defesa do Djibouti, em um total de 806.896,85 dólares –cerca de 2,5 milhões de reais em valores atuais.
A empresa justifica que obteve as autorizações necessárias e seguiu os protocolos exigidos, e alega que “não tinha elementos que a permitissem suspeitar dos compradores” e suspendeu imediatamente as negociações ao saber das suspeitas sobre a Itkan e a família Mana’a.
“A companhia, portanto, não pode ser responsabilizada por intenções que ela desconhecia absolutamente”, disse a empresa em nota enviada à Reuters.
A Taurus disse ainda desconhecer as razões da Itkhan ter feito a intermediação da venda de armas ao governo do Djibouti, mas que essa é a razão da empresa e seus controladores constarem dos registros da Taurus, e que prestou esclarecimentos sobre isso às autoridades brasileiras.
A venda de que trata especificamente o Painel da ONU não chegou ao destino final. Desconfiado de que as armas não eram realmente destinadas ao Djibouti, o governo da Arábia Saudita apreendeu o carregamento em novembro de 2015, quando a carga passava pelo país.
As armas vendidas pela Taurus a Fares e Adeeb Mana’a, de acordo com as conclusões do Painel, não são de uso militar. O Painel da ONU conclui, portanto, que a intenção não era que fossem usadas na guerra civil do Iêmen pelos rebeldes houthis, aliados do ex-presidente Ali Abdullah Saleh e de quem Fares Mana’a é extremamente próximo, tendo sido um de seus governadores, por não serem armas de combate. A intenção, aponta, seria vender as armas no mercado negro da região.
“O envolvimento de Fares Mohammed Hassan Mana’a e sua conhecida relação com os houthis torna possível que os aspectos financeiros da transação tenham sido feitos em benefício de indivíduos listados pelas Nações Unidas”, diz o relatório, indicando que as investigações continuarão.