Cacau foi vítima de bioterrorismo no fim do século passado na Bahia e agora enfrenta praga devastadora no Amazonas
Evaristo de Miranda
Revista OESTE
20 JANEIRO 2023
Chocolate é tudo de bom. Na base de todos os chocolates estão as amêndoas torradas e moídas do cacau (Theobroma cacao). O nome científico da espécie é inspirador: alimento (broma) dos deuses (theos). Do cacaueiro, além das amêndoas, ainda se utiliza a polpa para produzir sorvetes, sucos, geleias e até destilados. Originário da Amazônia, o cacau foi domesticado e aos poucos cultivado em regiões úmidas da América, bem antes da chegada dos europeus. No Brasil, o cacau vive sucessões de dias difíceis. No fim do século passado foi vitimado pelo bioterrorismo na Bahia. Há pouco chegou ao Amazonas uma praga devastadora, a monilíase.
A agricultura, em termos sanitários, se dá bem longe da natureza. Os portugueses sabiam disso e selecionaram cultivos, em locais distantes de sua origem. No século 16, Portugal já possuía experiência empírica consolidada em seleção e melhoramento de frutas. Era o processo de “educação” e aclimatação de plantas. A ponto de Luís de Camões evocar o melhoramento obtido no pêssego (Prunus persica L.), em Os Lusíadas (Canto IX – Est. 58):
“O pomo que da pátria Pérsia veio,
Milhor tornado no terreno alheio”.
Eles introduziram diversas culturas em sua invenção do Brasil (coco, laranja, cana-de-açúcar e banana…) com o cuidado de trazer as melhores plantas, não contaminadas por pragas ou doenças. Nas ilhas do Atlântico, no século 17, criaram uma rede de jardins botânicos e aclimatação com essa finalidade.
O café é originário da África e a maior produção está nas Américas e na Ásia. Mandioca e seringueira são da América e as maiores produções estão na África e na Ásia. O dendê é africano e tem sua maior produção na Ásia. Todos distantes das pragas e das doenças de suas terras de origem. O cacau é americano e os dois maiores produtores estão na África: Costa do Marfim e Gana (50% da produção mundial), bem longe das pragas e das doenças americanas. Nigéria e Camarões têm expressiva produção de cacau, bem acima da brasileira. O terceiro produtor mundial é a Indonésia. Lá, cacaueiros e seringueiras crescem felizes, separados por dois oceanos de doenças e pragas amazônicas.
Mesmo quando o Brasil foi grande produtor, o cacau era cultivado na Bahia, isolado das pragas de sua Amazônia natal. O cacau gerou muita riqueza no sul da Bahia e para o país. Uma civilização baiana do cacau, imortalizada por Jorge Amado em livros (Cacau, São Jorge dos Ilhéus) e personagens. Até um grupo militante e bioterrorista trazer da Amazônia a praga da vassoura-de-bruxa (Moniliophtora perniciosa) e introduzi-la no sul da Bahia, nos anos 1980.
Segundo seus próprios relatos, eles foram a Rondônia de ônibus, várias vezes, buscar a doença. No retorno, amarravam ramos com vassoura-de-bruxa em árvores de fazendas escolhidas com critérios políticos. A doença se espalhou e destruiu as lavouras. O objetivo revolucionário era quebrar os “barões” do cacau. Conseguiram. E não só.
Cacau atingido pela praga vassoura-de-bruxa | Foto: Reprodução/USP
Com as lavouras foram destruídas vidas e sonhos de milhares de famílias de trabalhadores rurais, pequenos e grandes cacauicultores e comerciantes. Foram extintos 250.000 postos de trabalho. Isso provocou o êxodo de cerca de 800.000 homens, mulheres e crianças das fazendas. O soicídio arruinou a economia de quase cem municípios, como demonstra o filme O Nó: Ato Humano Deliberado. Resultado? Tudo será esquecido, nada será reparado, dizia Milan Kundera.
As consequências dessa catástrofe fitossanitária provocada ainda repercutem em uma região onde vivem quase 3 milhões de pessoas. Grandes áreas de cacau sob cobertura florestal terminaram desmatadas para dar lugar à pecuária. Além da perda econômica e social, ocorreram prejuízos enormes para a fauna, a flora e a biodiversidade da Mata Atlântica.
Eles introduziram diversas culturas em sua invenção do Brasil (coco, laranja, cana-de-açúcar e banana…) com o cuidado de trazer as melhores plantas, não contaminadas por pragas ou doenças. Nas ilhas do Atlântico, no século 17, criaram uma rede de jardins botânicos e aclimatação com essa finalidade
A produção anual brasileira, da ordem de 450 mil toneladas, caiu para pouco mais de 200 mil toneladas. Com a vassoura-de-bruxa, a participação do Brasil no mercado internacional recuou de 6% para 0,2%. A presença da vassoura-de-bruxa na Bahia se faz sentir até hoje. O Brasil deixou de ser um dos maiores exportadores mundiais de cacau. Tornou-se importador. A produção nacional não atende à demanda das indústrias de chocolate. A capacidade de processamento de cacau no Brasil é superior a 300 mil toneladas de amêndoas/ano. Segundo a Associação Nacional das Indústrias Processadoras de Cacau, da qual fazem parte as três maiores indústrias moageiras, só a capacidade industrial instalada na Bahia permite moer 275 mil toneladas de amêndoas/ano. O parque moageiro tem unidades de processamento de médio e pequeno porte e pelo menos cem marcas de chocolates. Muitas utilizam diretamente as amêndoas para obter seus produtos. Com uma produção anual média de 209 mil toneladas/ano entre 2019 e 2021, as indústrias importam cacau para reduzir a ociosidade.
Amêndoas do cacau |
Das 218 mil toneladas de cacau processadas nas indústrias, 25% são de amêndoas importadas. E surgem novos problemas. Não bastassem vassoura-de-bruxa e podridão parda, ainda há a questão tributária. A entrada das amêndoas do cacau africano, comprado pela indústria nacional com isenção de impostos (drawback), derruba o preço da commodity no Brasil e prejudica os produtores brasileiros. E há risco de eventual introdução de novas pragas em cargas de amêndoas importadas do continente africano ou alhures.
Aos poucos, o país refaz a geografia do cacau. Nos últimos anos, começou uma expansão inédita da cacauicultura em áreas não tradicionais na caatinga e no cerrado, apoiada em irrigação. Há duas décadas, cresce o plantio de cacau no Pará, na região da Transamazônica. O Estado já responde por cerca de metade da produção nacional. Sua área plantada, da ordem de 210 mil hectares, gera cerca de 340 mil empregos e até R$ 1,7 bilhão por ano. Fator de desenvolvimento social, o cacau contribui na geração de renda para mais de 30 mil famílias de pequenos agricultores. O cultivo segue em expansão no Pará e inspira cuidados por correr sérios riscos sanitários.
Parte do crescimento da área cultivada entre pequenos agricultores no Pará recorre a mudas não certificadas, de viveiros não regularizados. Esse comércio clandestino de material propagativo vem até da Bahia e do Espírito Santo, onde as condições climáticas são diferentes das do Pará. O cacaueiro é uma árvore. Quem garantirá a produtividade e a rentabilidade, por anos, de mudas não avaliadas pela pesquisa e especialistas? Uma força-tarefa (Embrapa, Agência de Defesa Agropecuária do Pará, Ceplac…) busca regularizar viveiros, conscientizar produtores e combater ilícitos.
O cacau vive sob a ameaça permanente de humanos irresponsáveis, problemas econômicos, serviços de defesa sanitária sem recursos adequados, pragas e doenças. Exemplo: a monilíase (Moniliophthora roreri). Esse fungo causa grandes perdas na produção do cacau e do cupuaçu (Theobroma grandiflorum), da mesma família do cacaueiro, e eleva custos (medidas adicionais de manejo e aplicação de fungicidas).
Cacau atingido pela Monilíase | Foto: Reprodução/MAPA
Detectada no século passado na Colômbia, sua dispersão progrediu por Equador (1917), Venezuela (1941), Panamá (1949), Costa Rica (1978), Nicarágua (1980), Peru (1988), Honduras (1997), Guatemala (2002), Belize (2004), México (2005) e Bolívia (2012). Até há pouco, a doença estava presente em todos os países produtores de cacau da América Latina, exceto o Brasil. O crescimento da circulação de pessoas em países amazônicos aumentava o risco de sua introdução no Brasil.
O primeiro foco foi detectado em julho de 2021, em área urbana no município de Cruzeiro do Sul, no Acre. Medidas foram tomadas para erradicar a doença. Em agosto de 2022, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) prorrogou por um ano a emergência fitossanitária de risco iminente de introdução dessa praga quarentenária no Acre, Amazonas e Rondônia.
A produção anual brasileira, da ordem de 450 mil toneladas, caiu para pouco mais de 200 mil toneladas. Com a vassoura-de-bruxa, a participação do Brasil no mercado internacional recuou de 6% para 0,2%. A presença da vassoura-de-bruxa na Bahia se faz sentir até hoje. O Brasil deixou de ser um dos maiores exportadores mundiais de cacau. Tornou-se importador. A produção nacional não atende à demanda das indústrias de chocolate
No fim do ano passado, um foco de monilíase foi detectado em comunidades ribeirinhas em Tabatinga, no Amazonas, região da tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru. A Secretaria de Defesa Agropecuária do Mapa, a Embrapa e a Agência de Defesa Agropecuária e Florestal do Amazonas confirmaram a doença. Medidas de contingência tentarão evitar a disseminação da monilíase em outras áreas de cacau e cupuaçu.
A meta do Brasil é ser autossuficiente em cacau até 2025. Até 2030, o país quer uma posição de destaque como produtor de cacau e chocolates de qualidade, conservando o meio ambiente. Isso exigirá uma grande evolução nas tecnologias, nos produtos, em processos e serviços na cacauicultura. A Ceplac desenvolve e difunde novas cultivares de cacau, mais resistentes a pragas e doenças, e tecnologias para aumentar a produtividade do cacau: manejos culturais adequados; fertilização e fertirrigação; uso de sementes híbridas e clones de alta produtividade; controle de pragas e doenças; otimização de produtos e processos no pós-colheita e na agroindústria.
O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) promoveu no Cacau Conecta AgTechs 2022 uma chamada de startups para sanar gargalos na produção. Sua última etapa e premiação ocorreu em dezembro passado, durante o Chocolat Festival 2022 de São Paulo, maior evento de chocolate e cacau da América Latina.
Todo esse esforço pode fracassar se a biossegurança do cacau falhar. As atividades agropecuárias no Brasil são e estão suscetíveis ao bioterrorismo. Basta lembrar a gravidade da eventual introdução da gripe aviária, recém-chegada ao Peru, ou da reintrodução da peste suína. Como conscientizar produtores, comerciantes, consumidores e autoridades dos riscos de ataques contra a sanidade dos cultivos? Como prevenir e conter, com serviço de inteligência, o bioterrorismo? Sem união, milhares de pequenos produtores de cacau podem ser vítimas da introdução, involuntária ou criminosa, de pragas e doenças. E o chocolate seguirá caro e amargo por aqui.
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