Valmir Moratelli
Um carro suspeito se aproxima da guarita de uma base militar. Três soldados armados com fuzis aparentam tranquilidade e fazem a segurança do local. Um deles aborda o automóvel, que para na cancela. O motorista, no entanto, surpreende, abre a porta, sai do veículo, saca um revólver e atira contra os militares. Há intensa troca de tiros. Um dos militares consegue acertar o criminoso, que cai imediatamente no chão. Não há outros feridos. Em outro momento, outro motorista sai do carro armado com uma faca. Os militares utilizam o spray de pimenta para imobilizá-lo.
Parece cinema. Também poderia ser comparado a um videogame. Mas é um simulador de tiros para treinamento exclusivo do Exército Brasileiro, voltado para o aperfeiçoamento de técnicas de engajamento de militares em missões de paz da ONU. Pela primeira vez uma equipe de reportagem pôde cobrir este treinamento na sala Alfa e Ômega localizada no Centro Conjunto de Operações de Paz do Brasil (CCOPAB), na Vila Militar, zona oeste do Rio. O iG acompanhou as atividades da primeira aula dos militares que vão ao Haiti entre o final desse ano e o começo de 2013.
“Aqui não é um simulador para se aprender a atirar, mas para pôr em prática as regras de engajamento estipuladas pela ONU em missões de paz, como a do Haiti. Não é qualquer lugar, por exemplo, que você pode usar um fuzil. Em operações de paz, quanto menos a gente atira, melhor. É preciso saber dosar o uso da força”, explica o tenente-coronel César Guillermo Mander, instrutor-chefe no simulador.
Cinema 3D
O aparelho consiste em um projetor comum ligado a uma série de sensores dispostos na sala para captar o movimento das cinco armas da linha de tiro dos alunos. As armas (dois revólveres Beretta 9mm e três fuzis M-4, além de um spray de pimenta) foram adaptadas, no entanto para emitir um laser na tela. Ao tocar o telão, os raios são captados por uma câmera de detecção de impacto, que envia a informação da atividade para o computador central. Rapidamente, é gerada uma cena mostrando a consequência daquele tiro: o bandido caído, se atingido em órgãos não letais; ou morto, se acertado em pontos críticos do corpo. Há ainda opções como a do bandido se escondendo para revidar dos tiros. Em caso de uso de spray de pimenta, ele surge desesperado, coçando os olhos. A reportagem do iG, no entanto, só pôde registrar imagens da tela em momentos que não há militares feridos a bala.
As regras de engajamento restringem as formas de agir que toda tropa em missão da ONU deve seguir. “No Haiti é regra de engajamento não atirar em quem está fugindo. Se o sujeito largou a arma e saiu correndo, o oficial não pode em nenhuma hipótese atirar para fazê-lo parar”, explica Mander. Quando o treinamento em vídeo começa, as situações que ocorrem são muito rápidas, justamente para fazer com que o combatente saiba tomar as decisões certas sem precisar recorrer ao gatilho de maneira precipitada.
Para o subcomandante do CCOPAB Odimar Leite, as vantagens de se treinar diante de uma tela que lembra a de um cinema são várias. “Podemos fazer a lição repetidas vezes, até que o oficial se sinta pronto para praticar outra. Além disso, há uma grande economia de cartuchos, já que na sala não se atira de verdade”, cita. “O treinamento fica mais simplificado em termos de logística. Não preciso mais deslocar o contingente para uma região desabitada, para que possa fazer treinamento. O simulador, ao término do vídeo, também exibe os erros e decisões que não foram corretos no exercício”, continua o subcomandante.
Vídeos caseiros
A tecnologia dos sensores é de uma empresa privada, mas os filmetes das situações estudadas, com cerca de um minuto de duração cada, são produzidos pelo próprio CCOPAB, que tem autonomia para criar imagens diversas que interessem ao treinamento de seus oficiais. Os “atores” das cenas são todos militares das Forças Armadas.
“Um vídeo de pouco mais de um minuto de duração leva cerca de duas semanas para ser filmado”, diz o tenente Luiz Vianna, um dos responsáveis pela realização das gravações. Isso porque há dificuldades como acertar o ponto exato de cada marcação dos “atores” em cena, levando em consideração que eles devem gravar diferentes versões para uma mesma situação. Depois as filmagens vão para uma ilha de edição, na qual são processadas em um programa, ganham mais limpeza e ajustes de cor e sombra. Tudo para que se assemelhe a uma situação real.
A tela tem 3,75m de comprimento e 4m de largura. Mas é possível usar até três delas na mesma sala para simulações, comportando cinco linhas de tiro, ou quinze oficiais em treinamento ao mesmo tempo. A sala com 8,5 m de largura é climatizada e permanece em total escuridão durante a aula. Os carregadores são preenchidos com ar comprimido, a partir de um cilindro de mergulho, para que possa haver uma falsa sensação de disparo. Cada revólver tem autonomia para 15 disparos, enquanto os fuzis podem atirar quarenta vezes.
Em breve chega ao CCOPAB um conjunto de fuzis FAL 6,62mm adaptados para a utilização com laser de simulação, imperceptíveis ao olho humano. Estas armas são as mais utilizadas no momento pelas tropas enviadas ao Haiti. Há ainda uma situação na qual os militares treinam sob ameaça de disparos de balas iguais às utilizadas em jogos de paintball. Um disparador de balas, no canto da sala, tenta acertá-los enquanto se concentram no telão.
O spray de pimenta, que os oficiais aprendem a usar apenas quando o agressor não apresenta risco de morte a nenhum dos envolvidos na operação, ali no simulador é uma adaptação bem ao estilo brasileiro. O spray é, na verdade, um inofensivo frasco de desodorante – só que com laser. Ao término da aula, a sala está perfumada.