Arte representando o impacto da ação do crime organizado contra a cidade de Caucaia, Ceará
Francisco de Assis Saraiva da Rocha
Suboficial (RM1-FN-IF) Comandos Anfíbios
Especial para DefesaNet
O CENÁRIO ATUAL
Nas últimas décadas, o município de Caucaia, integrante da Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), tem sido palco de um processo sistemático, progressivo e operacionalmente sofisticado de deterioração da ordem pública e erosão da autoridade estatal em seu território. Este cenário deriva, de maneira direta e mensurável, da consolidação de estruturas criminais de alta complexidade, caracterizadas por organizações de natureza faccional, que ultrapassaram o espectro tradicional do crime comum e ingressaram em estágios avançados de governança paralela — com capacidade de exercer controle territorial, econômico, social e psicológico sobre a população local.
O vetor primário desse processo encontra-se na dinâmica contemporânea do crime organizado brasileiro, cuja doutrina de expansão territorial demonstra uma transição clara: as facções criminosas, antes restritas às periferias urbanas e a mercados ilícitos convencionais (como o tráfico de drogas), passaram a adotar estratégias de migração operacional em direção a zonas consideradas de valor logístico, econômico e estratégico. Caucaia, neste contexto, materializou-se como um ambiente de interesse prioritário, em razão de suas características geográficas, suas infraestruturas logísticas e sua crescente atividade econômica.
Atualmente, a ambiência criminal de Caucaia é caracterizada pela presença consolidada de duas estruturas rivais — o Comando Vermelho (CV) e a facção local Guardiões do Estado (GDE). Ambas detêm elevado grau de letalidade, capacidade armada, coesão organizacional e expertise na aplicação de instrumentos de controle social. O ambiente operacional do município configura-se, assim, como um mosaico fragmentado de zonas sob disputa ou domínio faccional consolidado, abrangendo bairros periféricos, áreas rurais, entornos de corredores logísticos e setores adjacentes a hubs industriais.

Fonte: Serviço de inteligência de consulado estrangeiro ao DefesaNet.
As metodologias operacionais dessas organizações criminosas evoluíram de forma rápida. Superaram a lógica do tráfico convencional e incorporaram modelos de exploração econômica de caráter sistêmico e predatório, notadamente a prática da extorsão institucionalizada — popularmente conhecida como “arrego” ou “pedágio”. Tal prática configura um regime tributário ilegal, imposto unilateralmente pelas facções, cuja lógica operacional submete empresários, comerciantes, prestadores de serviço e operadores logísticos ao pagamento de mensalidades ou contribuições periódicas, como condição necessária à manutenção das suas atividades.
A recusa ou inadimplência no pagamento dessas taxas ilícitas é respondida, de maneira sistemática, com a aplicação de sanções de natureza terrorista e punitiva. Relatórios de campo, registros de inteligência policial e operações realizadas na área confirmam um padrão consolidado de ataques direcionados: incêndios criminosos contra ônibus do transporte coletivo, explosões de estabelecimentos comerciais, destruição de veículos, ataques armados a postos de combustíveis e violência deliberada contra civis — todos elementos operacionais de uma estratégia de guerra psicológica, voltada à dissuasão, intimidação e submissão da sociedade local.
Este ambiente coloca o município de Caucaia em uma condição estratégica de elevada gravidade: um território em processo avançado de criminalização estrutural. A presença do Estado, embora formal, encontra-se substancialmente desarticulada em múltiplas zonas, limitando-se, muitas vezes, a ações episódicas, reativas ou simbólicas. O controle efetivo de vastas porções do território encontra-se, na prática, sob comando de estruturas armadas ilegais, dotadas de capacidade de impor regras próprias, estabelecer ordens coercitivas e aplicar sanções com ampla margem de impunidade.
A configuração atual de Caucaia corresponde, portanto, a um ambiente de interesse estratégico, vulnerável à consolidação de uma “economia criminosa local” de caráter parasitário, com riscos potenciais de desestabilização ampliada para a RMF, afetando cadeias logísticas, investimentos, operações industriais, governança pública e coesão social.
IMPACTOS ECONÔMICOS
A expansão sistêmica das facções criminosas em Caucaia produziu, ao longo dos últimos anos, efeitos econômicos mensuráveis, consistentes e devastadores — configurando um processo avançado de corrosão estrutural do ambiente de negócios e de comprometimento progressivo da capacidade de desenvolvimento econômico local.
Trata-se de uma dinâmica operacional que ultrapassa os parâmetros convencionais da violência urbana, consolidando um cenário de hostilidade econômica permanente, onde empreendedores, investidores e operadores logísticos passaram a ser alvos diretos de coação, extorsão e terror psicossocial. O fenômeno mais crítico e emblemático deste ambiente degenerado é o êxodo deliberado de empresários, comerciantes e investidores — protagonistas da economia local que, diante da elevação dos riscos operacionais, da imprevisibilidade do ambiente e da crescente tributação criminosa, optaram por descontinuar atividades ou migrar seus capitais para zonas menos hostis.
A imposição sistemática do “pedágio criminal” — mecanismo de extorsão contínua imposto pelas facções — converteu-se em verdadeira política fiscal paralela, cujo efeito prático é a instauração de um regime de insegurança jurídica e econômica nas regiões dominadas. Obras civis, empreendimentos imobiliários, instalações industriais e atividades comerciais de pequeno, médio e grande porte tornaram-se vulneráveis a ciclos regulares de chantagem armada, interrupções forçadas e sabotagens operacionais, com graves consequências sobre a integridade física de trabalhadores, gestores e suas respectivas famílias.

Integrantes de facção organizada incendeiam as instalações de uma empresa provedora de internet, em retaliação à negativa da vítima em aceitar as imposições extorsivas do ‘pedágio’. O ataque evidencia o grau de hostilidade econômica imposto pelas facções e a capacidade operacional dos grupos criminosos em comprometer a infraestrutura privada como instrumento de intimidação e controle territorial em Caucaia.
O resultado é empiricamente observável: paralisação de obras públicas e privadas em bairros inteiros; fuga de capital produtivo; fechamento em escala de estabelecimentos comerciais; colapso de cadeias produtivas locais; retração dos indicadores de geração de emprego e renda; e desestruturação de polos de desenvolvimento. O prejuízo direto para o setor privado é apenas a face visível de um dano sistêmico muito mais profundo: o enfraquecimento da resiliência econômica do município e o enfraquecimento crítico do tecido socioeconômico local.
Este ambiente de regressão econômica gera, por sua vez, um efeito multiplicador de retroalimentação da criminalidade. O desemprego em massa, a desassistência social e a ausência concreta do Estado criam as condições ideais para a expansão do domínio faccionado, que encontra mão de obra abundante, território disponível e ampla margem de controle.

Mesmo diante do avanço do crime organizado, as forças de segurança municipal de Caucaia seguem abandonadas no tempo — reflexo do descaso histórico de sucessivos prefeitos. A Guarda Municipal opera sem fuzis, sem armamento compatível com as ameaças urbanas do século XXI e sem capacidade operacional mínima para enfrentar facções criminosas armadas que hoje controlam parte do território.
Estima-se que os prejuízos econômicos diretos e indiretos decorrentes da presença faccionada em Caucaia ultrapassem amplamente o âmbito municipal, projetando seus efeitos deletérios sobre a arrecadação tributária estadual, sobre os índices de desenvolvimento humano regional e, principalmente, sobre a atratividade estratégica do Ceará enquanto polo industrial e logístico de escala nacional.
Mais do que um problema local, Caucaia se configura hoje como um epicentro de risco estratégico, onde a degradação da segurança pública passou a comprometer diretamente os interesses geopolíticos, econômicos e logísticos do Estado brasileiro.
Importa salientar que Caucaia não constitui um município ordinário no tabuleiro geopolítico do Nordeste brasileiro. Suas características territoriais, sua localização e seu acervo infraestrutural atribuem-lhe um valor estratégico que transcende os limites da segurança pública municipal, projetando o território diretamente para o campo das preocupações de defesa econômica e segurança nacional.
Em seu território ou em suas zonas de influência direta, estão situados ativos críticos de alto valor estratégico, tais como:
- O Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP), cuja zona de influência atinge diretamente áreas de Caucaia;
- Instalações da Companhia Siderúrgica do Pecém (CSP);
- Linhas de transmissão de energia de alta tensão;
- Dutos de combustíveis e gás natural;
- Trechos da malha ferroviária Transnordestina;
- Infraestruturas logísticas de transporte rodoviário e ferroviário;
Esses ativos, combinados à extensa faixa litorânea de Caucaia, ao seu território rural periférico e à sua malha urbana fragmentada, configuram um ambiente operacional sensível, onde o avanço do crime organizado representa uma ameaça direta à segurança das cadeias produtivas, à integridade dos fluxos logísticos e ao funcionamento regular de sistemas críticos da infraestrutura nacional.
O controle criminal progressivo das periferias, comunidades e zonas logísticas de Caucaia interfere de maneira decisiva sobre a liberdade de manobra das forças de segurança, criando zonas de negação territorial, áreas inacessíveis e ambientes hostis à presença do Estado. Trata-se de um ambiente operacional que impõe restrições severas à mobilidade de agentes públicos e ao exercício pleno da autoridade estatal.
Sob a ótica da inteligência de Estado e da Defesa Nacional, o cenário de Caucaia já ultrapassou, há muito, os limites de um problema de segurança pública municipal ou mesmo estadual. Trata-se, em essência, de um problema estratégico de interesse nacional — onde o crime organizado, por meio da conquista territorial e da corrosão econômica, passou a comprometer elementos centrais da segurança, da economia e da logística do Estado brasileiro no Nordeste.
UMA FRAGMENTAÇÃO TERRITORIAL EM CURSO
A consolidação das facções criminosas em Caucaia transcende, de maneira inequívoca, a esfera da segurança pública convencional. O estágio atual de dominação territorial, capacidade financeira e estrutura bélica dessas organizações projeta o município para um novo patamar de criticidade: o de uma Zona de Interesse Estratégico Nacional sob ameaça direta de forças criminosas com características operacionais próprias de um ator irregular.
Não se trata mais de um fenômeno localizado ou restrito a dinâmicas de violência periférica. O crime organizado em Caucaia adquiriu escala, densidade e projeção estratégica suficientes para produzir efeitos diretos sobre estruturas sensíveis do Estado brasileiro — impondo um novo tipo de risco que excede em muito as capacidades ordinárias das forças policiais estaduais e que exige uma abordagem integrada de Segurança e Defesa.

Em fevereiro de 2025, a Receita Federal apreendeu 133,5 kg de cocaína ocultos em um contêiner de polpa de manga congelada, no Porto do Pecém — com destino final ao mercado europeu, via Portugal. A apreensão evidencia o emprego do Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP) como rota estratégica do tráfico internacional de drogas, consolidando o Ceará, e em particular Caucaia e sua zona de influência, como corredor logístico de exportação ilícita em larga escala.
As facções que operam em Caucaia já não se limitam à ocupação de comunidades vulneráveis. Evoluíram para um modelo de macro criminalidade com capacidade de projeção sobre zonas rurais, polos industriais, infraestruturas críticas e corredores logísticos estratégicos — convertendo áreas tradicionalmente vistas como seguras ou vitais para a economia regional em ambientes de alto risco operacional.
O impacto desta realidade sobre ativos estratégicos do Estado brasileiro é direto, crescente e inaceitável sob qualquer perspectiva de Segurança Nacional.
A localização de Caucaia — em posição contígua ao Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP) —, somada ao controle parcial exercido pelas facções sobre vias logísticas, comunidades portuárias e territórios adjacentes, cria um cenário de vulnerabilidade que já ultrapassou o nível de alerta tático e demanda reconhecimento no plano estratégico nacional.
O risco operacional no entorno do Porto do Pecém — peça central na arquitetura logística do Nordeste e vetor essencial para exportações de minério, aço, energia, grãos e insumos industriais — não pode ser subestimado ou tratado com soluções locais limitadas. A infiltração criminosa em empresas de transporte, prestadores de serviços, segurança privada, construtoras e comércio regional é um fato documentado e operante nas dinâmicas das facções locais.
Neste ambiente, o crime organizado deixou de ser um mero problema de violência urbana para se posicionar, na prática, como um ator irregular dotado de:
- Poder de fogo relevante;
- Financiamento autônomo;
- Base territorial consolidada;
- Capacidade de dissuasão local;
- E instrumentos de controle social.
Estas são, por definição, características estruturantes de ameaças assimétricas contemporâneas — fenômenos que tradicionalmente ingressam no campo das preocupações permanentes de Defesa Nacional.
A possibilidade concreta de que organizações criminosas possam:
- Expulsar empresários;
- Paralisar obras de infraestrutura;
- Interditar áreas inteiras;
- E influenciar a cadeia logística de um porto estratégico nacional;
…coloca o problema de Caucaia em outro patamar analítico. Não se trata mais de segurança pública estadual: trata-se da preservação da integridade econômica, territorial e logística de uma zona estratégica da Federação.
O abandono econômico de Caucaia por parte de empresários e investidores — já em curso —, se mantido ou ampliado, consolidará, no médio e longo prazo, um vácuo de desenvolvimento que tende a ser integralmente ocupado pela economia criminosa paralela, alimentando um ciclo de pobreza, violência e domínio territorial permanente pelas facções.
Negligenciar Caucaia hoje é correr o risco real de comprometer, de maneira irreversível, a segurança logística, a liberdade econômica e a capacidade de projeção estratégica do Nordeste brasileiro amanhã.