Coronel Alfredo de Andrade Bottino
Comandante do 1º Batalhão de Guardas
I. Introdução
Toda operação proporciona oportunidades para que se aprendam ensinamentos que podem aperfeiçoar e desenvolver nossas doutrinas. Assim, é muito importante que após essas experiências sejam realizadas análises pós-ação e discussões, além da confecção de relatórios para que sejam tiradas lições aprendidas. Este artigo tem por objetivo apresentar os ensinamentos colhidos durante o emprego dos cães do 1º Batalhão de Guardas, “Batalhão do Imperador – 1823”, na Operação Arcanjo.
II. A Operação Arcanjo
As áreas do complexo de favelas da Penha e do Alemão, na Zona Norte do Rio de Janeiro, foram dominadas, durante anos, pelo crime organizado até dezembro de 2010 quando as Forças de Segurança iniciaram a pacificação desta região, sob o comando do Exército Brasileiro. Foi a primeira vez que nossos soldados atuaram em uma operação desta envergadura com estas características, em território nacional. Já tínhamos realizado isto no Haíti.
A Força de Pacificação foi criada pela Diretriz Ministerial Nr 15/2010, de 4 de dezembro de 2010, e visava promover a garantia da lei e da ordem naquela área de operações interditada às forças policiais pelo narcotráfico. A competência e o profissionalismo dos militares foram demonstrados durante as ações realizadas pelas diversas tropas que se sucederam ao longo de 20 meses de ocupação.
A atuação do Exército se deu em um conflito de 4ª geração (G4G ou 4GW) e teve como missão a manutenção da ordem pública no Estado do Rio de Janeiro por meio da pacificação das comunidades dos complexos de favelas da Penha e do Alemão, realizando a condução de Operações tipo Polícia, Operações Psicológicas e atividades de Inteligência e Comunicação Social, caracterizando a multidimensionalidade das ações.
Ao longo da pacificação foram apreendidas armas e munições de diversos calibres, carregadores, granadas, grande quantidade de drogas, além de muitos reais e dólares. Foram também recuperados vários automóveis e motos roubados, e várias prisões e detenções de suspeitos aconteceram. É importante ressaltar que neste período de ocupação não houve mortes por confrontos armados.
Aconteceram centenas de reconhecimentos em vias de acesso às comunidades e milhares de postos de bloqueios foram montados. Foram realizadas, ainda, operações de busca e apreensão (OBA), isolamentos de áreas, ações cívico sociais e voos de reconhecimentos na área ocupada. De todas estas, apenas a última não teve a participação de Cães Militares.
III. O Cão Militar no Exército Brasileiro
Os cães acompanham os homens há muito tempo. Isso pode ser confirmado nas cavernas onde foram encontrados desenhos que mostram a ligação de nossos ancestrais com lobos, em trabalho mútuo.
Mas, foi na era moderna que o emprego dos cães para fins militares foi mais evidenciado. Nos conflitos mundiais os cães eram utilizados no apoio médico, para transporte de feridos, nas comunicações levando mensagens, na colocação de fios de telégrafos e no transporte de munições, armas e suprimentos.
Eram utilizados também em ações de sabotagem nas trincheiras e como esclarecedores, o que diminuía as baixas de humanos nas patrulhas. Os campos de prisioneiros eram fechados com cercas e fortemente vigiados por guardas e cães. A União Soviética utilizou cães suicidas, armando-os com bombas para conter o avanço das divisões Panzer Alemães. Por sua vez, os alemães foram pioneiros na utilização de pastores como cães paraquedistas.
O Exército Brasileiro sistematizou a utilização de cães por meio da Portaria Nr 318-GB, de 12 de outubro de 1967, que aprovava o Manual de Campanha C 42-30 (Adestramento e Emprego de Cães de Guerra), e da Portaria Nr 932, de 24 de junho de 1970, que autorizava o emprego de Cães de Guerra nas Organizações Militares de Polícia do Exército, no Curso de Operações na Selva e Ações de Comandos e na Brigada de Infantaria Paraquedista.
O cão é uma opção vantajosa para emprego nas operações, pois: poupa a vida do militar, proporciona um impacto psicológico na força adversa, sua silhueta é pequena, seu deslocamento é rápido (10 m = 2 segundos), o gás lacrimogêneo não afeta o cão, e é preciso na localização de materiais ilícitos e pessoas.
Como uma arma não letal, o cão de guerra, se empregado corretamente, proporciona um aumento do poder de combate. O efeito psicológico que o animal oferece é muito importante para o sucesso de uma missão, principalmente se as ações se desenvolvem em áreas urbanas, onde o efeito colateral de uma operação mal sucedida pode trazer consequências danosas à força. “insucessos no nível tático provocam resultados desastrosos no nível estratégico.” (UFRJ, 2011)
IV. O “Real Canil do Imperador”
O canil do 1º Batalhão de Guardas foi inaugurado em 11 de fevereiro de 1999, para apoiar as diversas atividades da Unidade, particularmente as operações de garantia da lei e da ordem que o Batalhão realiza como uma de suas missões doutrinárias.
O canil é a Seção de Cães de Guerra do Batalhão, e está subordinado à Companhia de Comando e Serviços. É comandado por um oficial subalterno e está sob a supervisão técnica de uma oficial veterinária. A seção subdivide-se em: Subseção de Cães de Polícia, Subseção de faro e Subseção de “Dog Show”, cada uma sob comando de um sargento. Todos os integrantes do canil são possuidores do Estágio de Adestrador de Cães de Guerra (EACG), inclusive os cabos e soldados que são encarregados dos cuidados diários de limpeza e alimentação de seus respectivos cães.
O plantel do Batalhão, atualmente, é constituído por 18 cães dentre as seguintes raças: Rottweiler, Pastor Belga de Malinois, Retriever do Labrador, American Staffordshire Terrier, Dogo Argentino e Golden Retriever. O cão de guerra do 1º BG é empregado nas operações de acordo com sua especialização. Desta forma, ele executará desde as tarefas mais simples como guarda de instalações, até o faro de explosivos.
No Batalhão os cães de guerra são reconhecidos desde os primeiros dias de vida, quando é observado o seu “drive”. São observados seu temperamento, nível de caráter, e virtudes e a seleção é feita destinando-o para a atividade que ele irá desempenhar como cão de guerra. Basicamente, os Rottweiler e os American Staffordshire Terrier são destinados para o ataque e guarda, os labradores como farejadores e os Pastores Belga de Malinois acumulam dupla função, ataque/guarda e faro. Para as demonstrações, são utilizados os animais mais dóceis pela importância do contato com o público assistente, especialmente as crianças.
Para o desempenho das funções o animal e o soldado precisam estar sintonizados para se criar um laço de confiança. Este binômio cinófilo-cão é uma arma poderosa pois, o seu treinamento e a convivência constante, estabelecem vínculos que duram a vida inteira fazendo com que o cão jamais deixe de obedecer seu adestrador, sendo capaz de chegar às últimas consequências para proteger seu amigo. Por este motivo, o cão do 1º BG é considerado como mais um soldado em nossa Unidade.
No dia-a-dia os cães do Real Canil do Imperador treinam pelo menos duas horas por dia (uma hora pela manhã e uma hora à tarde). Estes trabalhos são executados pelos militares da seção de cães de guerra, com seus respectivos animais e seguem uma rotina diária. Inicia-se com o Treinamento Físico Militar logo pela manhã, onde os cães realizam corridas ou caminhadas ou natação e prosseguem à tarde com adestramentos específicos (faro, ataque e “Dogshow”). Estes treinamentos são intensos porém, não comprometem a integridade física dos animais. Diariamente, os cães são submetidos à higiene diária e pelo menos uma vez por semana à avaliações veterinárias
O 1º BG ministra o Estágio de Adestrador de Cães de Guerra (EACG) que tem por objetivo habilitar oficiais e praças do Exército e de outras Instituições para o manejo de cães para o emprego militar. Os candidatos, com seus cães, passam por um processo seletivo que enfoca, entre outros atributos, os da área afetiva que os qualifica de forma a compor em um binômio de trabalho.
O EACG tem duração de seis semanas e apresenta a seguinte grade curricular: noções de veterinária; cinofilia; cinotecnia; psicologia canina; treinamento físico militar com cães; adestramento de cães prático e teórico; operações com cães; legislações caninas; e manejo e administração de canil.
V. Os Cães do 1º BG na Operação Arcanjo
Durante a pacificação das comunidades dos complexos da Penha e do Alemão, O Exército empregou diversas tropas, dentre elas: a Brigada de Infantaria Paraquedista, do Rio de Janeiro; a 9ª Brigada de Infantaria Motorizada (Escola), do Rio de Janeiro; a 4ª Brigada de Infantaria Motorizada, de Minas Gerais; a 11ª Brigada de Infantaria Leve (GLO), de São Paulo e tropas do Comando Militar do Sul, dos estados do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina e Paraná. Em apoio a todas estas tropas, atuaram os cães de guerra do 1º Batalhão de Guardas. Ao longo dos 20 meses de ocupação, diversas operações foram realizadas e, nas de maior vulto, as Grandes Unidades solicitaram o apoio do Canil do Batalhão.
Dependendo das características de cada operação foram empregados animais específicos. Assim, nas operações de busca e apreensão (OBA) foram utilizados os cães da subseção de faro. Mas, dependendo do material a ser procurado (drogas, ou armamento e munição, ou explosivos) cães especialistas eram acionados. Nesta subseção o canil conta com dois cães para farejamento de drogas (cocaína, maconha, crack), e dois cães para farejamento de pólvora, armamento, munição, e explosivos.
Os cães de ataque, da subseção de Cães de Polícia, foram empregados juntamente às tropas de choque do 1º BG, que, em muitas ocasiões, atuaram como reserva da Grande Unidade apoiada. Até mesmo os cães de demonstração da subseção de “Dogshow” realizaram apresentações para população, no contexto das missões de comunicação social.
Como instrumento de persuasão, os animais mais ferozes foram empregados, principalmente, nas ocasiões em que houve a possibilidade de perturbação da ordem, como por exemplo na entrada dos bailes “Funk”, nos finais de semana.
A presença do cão na área de operações potencializou a demonstração de força por parte da tropa empregada devido ao alto poder de intimidação que o animal causava, na medida em que o possível transgressor temia ser mordido.
Durante a pacificação, os patrulhamentos a pé nos becos e vielas foram intensificados. Nestas missões o emprego dos cães se fez muito necessário, pois, devido a compactação do cenário, a presença do animal protegia a patrulha, já que o cão iniciava a varredura das edificações, bem como antecipava a presença de algum agressor.
A Serra da Misericórdia é um conjunto topotático que divide os complexos da Penha e do Alemão, sendo coberto por vegetação da Mata Atlântica, e possuindo uma pedreira. Esta região foi ocupada por tempo limitado por uma subunidade do 1º BG. Durante esta ocupação que durou cerca de 15 dias, os cães do Batalhão foram empregados na guarda das instalações montadas em sua crista topográfica e nos “checkpoints” nas principais vias de acesso que conduziam de um complexo a outro.
Nos Postos de Bloqueio e Controle de Vias Urbanas (PBCVU), montados pelas tropas nas ruas das comunidades, os cães do 1º BG foram empregados na varredura de automóveis e bolsas. Em algumas ocasiões a tropa de choque, formada por um pelotão do 1º BG (O Comando Militar do Leste passou esta tropa ao controle operacional do comando da Força de Pacificação para algumas missões), foi empregada como reserva das Grandes Unidades empregadas.
Nestas oportunidades, atuou para o controle de distúrbios durante manifestações de moradores realizadas por ordem dos traficantes. Os moradores das comunidades eram manipulados pelos criminosos para estressar e humilhar as tropas para que estas tivessem uma reação desproporcional e atingissem a população (inocentes ou não). Nestas operações os cães foram empregados e demonstraram ser importante ferramenta para ser dispensado o uso da arma de fogo, além de aumentar o poder de combate, pelo seu alto poder de intimidação.
O Exército foi sabotado durante todos os meses de ocupação, porque dificultou o acesso de narcotraficantes a pontos importantes das comunidades, antes dominados pelo crime organizado. Essas “Zonas de Exclusão” representaram uma eficaz estratégia para manutenção do controle da área pacificada. Com auxílio de cães, em algumas dessas operações, as tropas atuaram nas entradas das comunidades, evitando a circulação de armas e drogas na região.
Outras ações importantes que contaram com o auxílio dos cães do 1º BG, foram as apreensões de armas (até uma criança com deficiência mental foi apreendida). Também foram capturadas armas caseiras, algumas delas confeccionadas com garrafas “pet” vazias, dentro das quais eram colocadas pólvora e giletes, e fogos de artifícios adaptados com mais pólvora, bolas de gude e pregos.
Pode-se concluir parcialmente que durante a Operação Arcanjo as diversas tropas que estiveram envolvidas nas ações de pacificação contaram com o importante apoio dos Cães de Guerra do 1º BG.
V. Conclusão e Lições Aprendidas
A doutrina de emprego dos Cães de Guerra no Exército Brasileiro ainda está em evolução. Este artigo buscou reunir as experiências vividas durante a Operação Arcanjo pelos Cães de Guerra do 1º BG, com a finalidade de aperfeiçoar esta doutrina e torná-la mais próxima da realidade para que o adestramento seja o mais eficaz possível.
O efetivo de cães do Exército Brasileiro ainda é pequeno, mas deve aumentar por causa do sucesso e da necessidade dos animais em ações que exigem controle e segurança e por ser uma ferramenta para se dispensado o uso da arma de fogo, principalmente nos grandes eventos que acontecerão no Brasil nos próximos anos, como Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas em 2016.
O uso de cães nas operações é muito importante pelas vantagens que os atributos naturais destes animais proporcionam, quando bem empregados em prol da Força Terrestre. Entretanto, verificou-se que quando empregados em áreas desconhecidas, o monitoramento da saúde dos cães por meio de hemograma completo e pesquisa de hematozoários, deve ser reduzido de 6 meses para 3 meses. Isto foi comprovado porque alguns cães empregados estiveram em áreas infestadas por RHIPICEPHALUS SANGUINEUS (carrapato vermelho) e adquiriram ERLICHIOSE e BABESIOSE (hemoparasitoses transmitidas pelo carrapato), que tiraram estes animais de combate para que pudessem ser tratados.
Constatou-se que o tempo de exposição dos cães por períodos prolongados é improdutiva e prejudicial para os animais, tendo em vista o estresse e as doenças respiratórias a que ficam expostos os cães. Assim, é importante que o tempo de emprego desses cães não seja maior que 12 horas, intercalados com um tempo de descanso de no mínimo 24 horas.
Outro aspecto importante, observado durante as ações, foi a falta de conhecimento da doutrina e emprego dos cães por parte da tropa apoiada, que, muitas das vezes, o fazia equivocadamente. Por este motivo, é interessante que todos saibam qual a melhor forma de emprego dos animais.
É muito importante a utilização dos cães nos patrulhamentos, principalmente no cenário de favelas, onde a segurança da equipe é fundamental, pois, o cão realiza a varredura das edificações vielas e veículos, bem como denuncia a presença da força adversa. Como demonstração de força, a presença dos animais na área de operações urbana aumenta o poder de persuasão na medida em que o agressor ou manifestante receia ser mordido. A característica de não letalidade do cão o torna uma arma imprescindível nas operações urbanas, conforme nos afirma VALLE (2009): “nenhum dano por mordedura de cães será maior que um tiro errôneo, pois, pelos danos e locais onde os cães foram treinados a morder, não levaria nenhuma pessoa ao óbito”.
Como instrumento de Comunicação Social os cães mostraram-se primordiais. Durante as apresentações nas escolas e praças dos complexos de favelas da Penha e do Alemão observou-se a grande quantidade de moradores assistentes, particularmente crianças, o que se apresentou como uma oportunidade ímpar para propaganda de nossas ações, sendo peça importante na campanha psicológica. Nas ações de inteligência os cães atuaram na busca de armamentos, munições e drogas, atuando nas Operações de Busca e Apreensão (OBA).
Sendo assim, pode-se concluir que a utilização dos Cães de Guerra do 1º BG contribuíram para o sucesso da Operação Arcanjo, e para a consolidação da imagem da Instituição.
Referências:
– Exército Brasileiro .Comando de Operações Terrestres. Emprego do Cão de Guerra. Caderno de Instrução 42-30/I – 1ª edição 2010
– Normas para o Controle de Caninos no Exército Brasileiro. Exército Brasileiro. Comando Logístico. Portaria Nº 018 – COLog, de 14 de dezembro de 2010.
– Valle, Victor Batista do. O Uso de Cães como Ferramenta da Resolução de Ocorrências. Série Práticas e Saberes Policiais Nº 1, ano 1, abril de 2009.
– Bryson, Sandy. Police Dog Tactics. 2º Edição. EUA. Bookmart Press. 1996.
– Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Curso de gestão Estratégica Internacional. Guerra de 4ª Geração e Narcoterrorismo no Brasil. Vympel 1274. 2011.