Júlia Dias Carneiro
Com seu fim pré-determinado para o dia 31 de dezembro deste ano, a intervenção federal no Rio tem o desafio de "minimizar os índices de criminalidade no Estado" e de trazer as estatísticas criminais a "patamares suportáveis" – mas também de promover mudanças estruturais duradouras para que eventuais melhoras não sejam suspensas nessa mesma data marcada. Porta-voz da intervenção federal, o coronel Roberto Itamar diz que os objetivos vêm sendo perseguidos com planos e metas detalhados, rebatendo críticas de falta de rumo.
"Militar não faz nada sem planejamento. O planejamento estratégico foi feito, está em vigor, está sendo cumprido. A impressão de que não há planejamento é completamente errônea", diz, em conversa com a BBC Brasil no Centro Integrado de Comando e Controle (CICC), no Centro do Rio.
É lá que o gabinete da intervenção sobre a gestão da segurança pública no Rio está baseado desde que foi criado por decreto do presidente Michel Temer no dia 16 de fevereiro, recorrendo de forma inédita a uma cláusula da Constituição Federal para por fim ao "grave comprometimento da ordem pública" no Rio.
Temer nomeou o general Walter Braga Netto como interventor, mas o coronel Itamar tem feito a interlocução com a imprensa diante da raridade das entrevistas concedidas por seu chefe.
Prestes a completar três meses, a intervenção ainda não conteve a escalada de criminalidade no Rio. Coronel Itamar diz que o gabinete está sob pressão para mostrar resultados, mas que as "ações estruturantes" que vêm sendo tomadas "demoram mais tempo para produzir efeitos" – listando medidas para equipar e aprimorar treinamento e condições de trabalho das forças de segurança.
Ele afirma que as Unidades de Polícia Pacificadora nas favelas do Rio não vão acabar e que seu fortalecimento tem "todo o apoio" da intervenção federal.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
BBC Brasil – Quando a intervenção foi decretada, muitos especialistas consideraram que, mesmo que não trouxesse mudanças de longo prazo, poderia ter efeito paliativo e aumentar a sensação de segurança temporariamente. Mas não temos visto uma melhora, pelo contrário, a situação continua piorando. Por quê?
Coronel Itamar – O aumento nos índices de criminalidade no Rio já vem de muito tempo e motivou vários projetos, como o decreto assinado pelo presidente da República em julho do ano passado, autorizando o uso das Forças Armadas em operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO).
O decreto de intervenção federal em fevereiro veio reforçar essas medidas. Os altos índices de criminalidade são a própria razão da intervenção. É importante frisar que a intervenção federal não é uma intervenção militar. É administrativa, é gerencial. Porque ela pretende permanecer, e não é com ações de curta duração que vai se resolver o problema da criminalidade.
Ela tem duas vertentes para minimizar esses índices. Uma é pelas ações emergenciais – que são as ações de força, de contenção da criminalidade. Outra é através de uma reestruturação dos órgãos de segurança pública, de uma melhoria na sua capacidade operativa, administrativa, financeira, recuperando essas instituições e dando a elas a autoridade de instituições de Estado.
As ações emergenciais às vezes têm uma percepção mais rápida, a curto prazo, porque você coloca pessoas e tanques nas ruas, faz cerco a uma comunidade, apreende fuzis ou drogas, e isso é rapidamente percebido. Já as ações estruturantes demoram mais para produzir efeitos. Demandam tempo medidas como mudanças na chefia policial, a alteração de normas internas, ou o treinamento de policiais que estavam fora de atividade para aumentar o policiamento nas ruas.
BBC Brasil – E essas medidas estruturantes estão em andamento?
Coronel Itamar – Sim. Estamos com cerca de três meses de intervenção. É um tempo curto para que esses resultados sejam percebidos. Como também é curto o tempo da intervenção, com prazo para terminar no dia 31 de dezembro, e uma pressão muito grande por resultados. A sociedade quer ver resultados. Isso é plenamente compreensível. O cidadão quer ter a sua sensação de segurança aumentada.
BBC Brasil – E dá para obter mudanças nesse curto prazo?
Coronel Itamar – Esse é o desafio. Fazer com que haja um equilíbrio entre as ações emergenciais – que têm um efeito de curta duração, porque quando os policiais se retiram do local a criminalidade volta – e as ações estruturantes, que são permanentes. Se você reestrutura as forças de segurança e elas cumprem o seu papel constitucional, fazem o policiamento de modo eficiente, isso permanece.
O que se pretende deixar como legado é pôr fim ao grave comprometimento da ordem pública e trazer os índices de criminalidade a patamares suportáveis, ou os mínimos possíveis, para que a população passe a ter essa sensação de segurança garantida permanentemente. E não apenas durante a intervenção federal ou o policiamento ostensivo com tropas ou tanques nas ruas. Senão, quando eles saem, isso acaba.
Esse é o grande desafio da intervenção federal. Minimizar esses índices nesse curto espaço de tempo. Temos muita confiança de que vai acontecer e que muito brevemente teremos uma clara melhoria nos índices de criminalidade do Rio. Já estamos observando essa tendência em nossos órgãos de inteligência e esperamos que em breve as estatísticas confirmem uma queda.
BBC Brasil – Quando a intervenção foi decretada, críticos alertavam para o risco de aumentar o número de mortes em confrontos no Rio e de violações de direitos humanos. Nas ações emergenciais de que o senhor fala, vimos ações polêmicas nos últimos meses, como a operação que matou oito pessoas na Rocinha e a prisão de 159 pessoas em uma festa em Santa Cruz promovida por milicianos, prendendo um número enorme de pessoas que não estavam sendo investigadas. Por que esses padrões continuam se repetindo?
Coronel Itamar – Esse temor com relação à intervenção federal não se justifica, pelo argumento de que a intervenção é gerencial, administrativa. O braço de contenção dos índices criminalidade são as forças da segurança e a Garantia da Lei e da Ordem e esses são episódios de curta duração…
BBC Brasil – Mas se o General Braga Netto está na posição de governador na área de segurança pública, não dá para separar tudo, alguém tem que assumir a responsabilidade.
Coronel Itamar – Sem dúvidas. Mas o que quero dizer é que o temor inicial de que haveria violações pelo uso das Forças Armadas não se justifica. Porque não aconteceram incidentes quando as GLOs começaram, e a tendência é que violações continuem não acontecendo. Há uma preocupação muito grande das Forças Armadas com relação a isso (direitos humanos).
Com relação à festa dos milicianos, todas as pessoas que estavam tinham conhecimento de estarem na festa e foram mantidas presas por ordem da Justiça, e respondem a um processo com direito a ampla defesa, tudo dentro da normalidade jurídica do Brasil. As pessoas que foram presas estão respondendo a um processo e, se forem inocentes, vão provar sua inocência, não tem qualquer problema. Aquelas que estão envolvidas nesse processo e não conseguirem provar sua inocência…
BBC Brasil – Mas a prisão tem que ser fundamentada numa suspeita concreta. Senão você está interrompendo a vida de pessoas inocentes.
Coronel Itamar – Mas você já está presumindo a inocência… Nós todos devemos presumir a inocência. Mas tinha muito mais gente naquela festa do que foram detidas, e as que foram detidas foram com alguma razão. Uma quantidade grande foi detida, e por isso teve tanta repercussão. Mas todas as pessoas estão respondendo ao processo dentro da normalidade.
Com relação a ser uma reação à milícia, várias operações já tinham sido realizadas objetivando não só milícias como traficantes.
Para a intervenção, não existe distinção entre milícias e traficantes. O que existe são pessoas que estão agindo fora da lei. São criminosos. Várias ações de inteligência estão sendo tomadas contra milicianos e criminosos. Essa ganhou um especial destaque pela envergadura e quantidade de presos.
BBC Brasil – Um dos grandes problemas da segurança no Rio é a corrupção policial. No prazo curto da intervenção, é possível de fato atacar esse problema?
Coronel Itamar – Desde o início existe essa preocupação e essa cobrança. Isso exige o fortalecimento das corregedorias. E há uma preocupação muito grande de que esse processo de fortalecimento seja conduzido pelas próprias instituições, para que tenha permanência.
A intervenção tem um tempo curto de vida e essas medidas precisam ser continuadas, senão não resolve. Senão sai a intervenção e volta o problema da corrupção, do serviço mal prestado…. Se esses problemas continuarem depois, a intervenção não serviu para nada. Não deixou o seu legado. Por isso foram nomeados chefes e comandantes que pudessem conduzir esse processo.
O interventor tem dito que os PMs são responsáveis pelo próprio fortalecimento da Polícia Militar. Não só pela autoconfiança que eles têm que adquirir através melhor treinamento, capacitação pessoal e equipamentos, como também pela moral e ética do seu trabalho. O cidadão fluminense tem que ver o policial com respeito, como uma autoridade. Isso tem que ser reconquistado pela corporação. Essa confiança foi perdida e tem que ser reconstruída.
As corregedorias são um braço importante da reestruturação e da recuperação da confiança. As instituições têm que provar de dentro delas próprias que elas eliminam os maus profissionais.
BBC Brasil – Isso envolve um foco maior em coibir a violência policial? Houve um aumento grave do número de autos de resistência no último ano.
Coronel Itamar – Sim, claro. As corregedorias acompanham os procedimentos corretos dos agentes da lei, atuando em nome da lei. Eles têm de seguir protocolos, e aqueles que não seguirem serão sancionados por isso.
BBC Brasil – A vereadora Marielle Franco foi assassinada um mês após o decreto da intervenção. Nesta semana vimos novos desdobramentos nas investigações, com uma testemunha apontando para o suposto envolvimento de um vereador e um policial preso. Como o senhor vê esse desdobramento? Quanto ainda falta para elucidar o caso?
Coronel Itamar – O caso do assassinato da Marielle e do seu motorista aconteceu durante o período da intervenção, mas não tem ligação direta com a intervenção. O processo investigatório tem todo o apoio da intervenção federal para que seja elucidado com celeridade, eficiência e responsabilidade.
A investigação vem sendo conduzida com todo o cuidado e sigilo para que não seja prejudicada. Alguns fatos paralelos, não oficiais, têm sido veiculados pela imprensa e só comprometem a celeridade da investigação.
BBC Brasil – Essas informações não deveriam ter vindo a público?
Coronel Itamar – Fatos que são divulgados não ajudam as investigações, muito pelo contrário. Prejudicam, dificultam a coleta de provas. Mas a investigação está seguindo o seu curso com toda a responsabilidade, eficiência e prioridade.
O caso da Marielle aconteceu durante o período da intervenção, mas só confirma, só reforça, a necessidade de alcançarmos os objetivos da intervenção. Não foi um questionamento, uma reação à intervenção. Assim como todas as outras mortes que acontecem, só reforça o objetivo da intervenção federal.
BBC Brasil – E os objetivos quanto às Unidades de Polícia Pacificadora? A notícia de mudanças e fechamentos de UPPs causou ansiedade nas comunidades e na cidade e não deixou claro o que está sendo planejado.
Coronel Itamar – O projeto das UPPS está sendo conduzido pela própria Polícia Militar, que está aprimorando-o. As UPPs não vão terminar. É um projeto de reestruturação, de aperfeiçoamento, de apuração de resultados. Isso vai continuar sendo conduzido durante a intervenção e talvez até depois. Enquanto estivermos com a intervenção, o fortalecimento das UPPs tem todo o nosso apoio.
Mas não se pode revelar as mudanças em cada UPP de antemão porque isso causaria uma desestabilização muito grande.
O que foi noticiado até agora foi baseado em um estudo de 2017. Aquelas informações já não correspondem à realidade hoje. As mudanças vão ser à luz de estudos atuais. E serão reveladas à medida que forem efetivamente realizadas para que não causem desestabilização nem maiores problemas à segurança no Estado.
BBC Brasil – No início do mês, um relatório do Observatório da Intervenção, da Universidade Cândido Mendes, afirmou que a intervenção está "sem programa, sem resultado, sem rumo". A falta de planejamento foi uma crítica à intervenção desde o início. Ela está sem rumo?
Coronel Itamar – Militar não faz nada sem planejamento. O planejamento estratégico foi feito, está em vigor, está sendo cumprido. As metas estabelecidas estão sendo cumpridas. A impressão de que não há planejamento é completamente errônea. As ações são reveladas à medida que são executadas e que for de interesse para a intervenção. Estamos falando de segurança pública. Qualquer informação sobre planos e objetivos pode prejudicar seu rendimento.
BBC Brasil – O governo federal liberou R$ 1,2 bilhão para a intervenção, quando o general Braga Netto falou que seriam necessários ao menos R$ 3 bilhões. Isso vai prejudicar os planos?
Coronel Itamar – O interventor federal falou a um grupo de deputados que as necessidades do gabinete de intervenção eram de R$ 3,1 bilhões. Desses, ele explicou que R$ 1,5 bilhão eram dívidas do governo do Estado. Mas a responsabilidade sobre essas dívidas continua sendo do governo do Estado, e muitas já foram resolvidas. Os R$ 1,5 bilhão restantes eram, sim, aportes necessários segundo os nossos cálculos para poder conduzir as ações até o fim do ano. Mas uma parcela desse total também compete ao governo estadual. A outra parcela seria aportada pelo governo federal. Que são esses R$ 1,2 bilhão.
BBC Brasil – Então o gabinete está satisfeito com os recursos aportados pelo governo federal?
Coronel Itamar – Sim, uma vez que ele atende os objetivos estabelecidos até o momento. E considerando-se que é uma intervenção cooperativa com o governo do Estado, que se comprometeu não apenas a pagar os atrasados como também a continuar honrando os compromissos que tem daqui para a frente.
Os recursos estão disponíveis, mas como é dinheiro público, há exigências legais para que seja usado, procedimentos previstos pela lei de licitações e contratos. Foi criada uma secretaria no gabinete de intervenção para gerenciar esses recursos. A equipe está preparando os processos administrativos necessários para que eles sejam empenhados dentro do prazo previsto. Mas existe um tempo legal pra que isso seja realizado. São processos extensos.
BBC Brasil – O clima no Rio hoje lembra o dos anos 1990, com moradores assustados com a escalada de violência, tiroteios frequentes, vias fechadas, gente querendo ir embora, turistas com medo de vir…
Coronel Itamar – A segurança tem afugentado as pessoas, os turistas, a realização de eventos no Rio. Existem áreas complicadas que demandam ação. Existe criminalidade, existe sim. Mas isso está sendo objeto de uma preocupação muito grande dos órgãos de segurança pública. As polícias estão se esforçando muito para conter isso, e têm esperança de que num curto prazo isso possa regredir.
Queremos passar essa imagem positiva para o restante do mundo. Precisamos fazer correções, sim, mas o Brasil não é um país que está totalmente perdido no que diz respeito à segurança pública. Estamos passando por um momento difícil, mas em breve vai melhorar, e os resultados vão aparecer. É preciso que a população confie no trabalho que está sendo realizado e colabore na medida do possível, com compreensão e paciência.