Kleber Farias
Ascom – MD
Em fevereiro de 2004, uma resolução do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) decidiu criar uma missão de paz para restabelecer a segurança e normalidade institucional do Haiti, país da América Central que sofreu sucessivos episódios de turbulência política e violência.
Desde sua criação, a Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (Minustah) tem um oficial militar brasileiro como comandante-geral das forças de paz no país caribenho – cargo nominado pela ONU de force commander, ou comandante da força, em uma tradução literal. Atualmente, cabe ao general de divisão Ajax Porto Pinheiro a tarefa de comandar um efetivo total de 2.370 homens, de 19 diferentes nacionalidades.
No começo deste mês, o general recebeu uma equipe da Assessoria de Comunicação do Ministério da Defesa em seu gabinete, em Porto Príncipe. Ele falou sobre a experiência de comandar militares de vários lugares do mundo, os desafios de se estar à frente da missão e a importância para o Brasil de contribuir com o sucesso da Minustah. Confira, abaixo, a íntegra da entrevista.
MD: General, qual é o papel do Brasil dentro da Minustah e quais são as implicações para o País em se ter um force commander brasileiro?
General Ajax: A participação do Brasil na Minustah remonta a 2004. Nós fomos a primeira tropa a desembarcar naquela grande crise que o país se viu envolto, com a saída abrupta do presidente da época. Nós fomos os primeiros a chegar. Tropas americanas tinham vindo num problema de emergência e, em seguida, a ONU chegou aqui.
E depois foram chegando as outras tropas de países contribuintes. Mas o Brasil sempre manteve o maior efetivo de tropas no Haiti. Na época em que nós tínhamos aqui quase 9 mil militares de várias nacionalidades, sempre o contingente predominante foi o brasileiro.
Hoje, nós temos 2.370, dos quais 978 são brasileiros. Então, isso dá pouco menos que a metade. E a importância é pela influência regional que nós exercemos. É uma área de interesse nossa – América Central e Caribe. E é uma forma de contribuir para a estabilização do Haiti, que é um país que vive de crises sequenciais.
Eles estiveram em crises aqui em 1991, muito sérias. Nas décadas anteriores, com o Papa Doc, Baby Doc, o país vivia uma constante instabilidade política. Nos idos de 1970, houve uma tentativa de golpe de Estado contra um dos Duvalier, o pai. Em 1991, outra crise, governo provisório. Em 1994, retornou Aristide. Eleições, em 2004. Então, o Haiti vive esses momentos de instabilidades constantes, é rotineiro. A cada 10 anos, a cada 15 anos, o Haiti passa por uma crise muito séria.
E o Brasil e as tropas da ONU estão aqui para manter – e temos mantido em 11 anos já – essa tranquilidade no país. A presença do Brasil é muito importante. Para as Forças Armadas, é a oportunidade que nós temos de treinar a nossa logística.
Não é fácil trazer toda uma estrutura para uma ilha do Caribe. Isso envolve um deslocamento de material, de tropas. As tropas, ao virem para cá, treinam no país, e esse treinamento tem evoluído muito – eu comparo com 2010, quando eu preparei a tropa para ir ao Haiti, com as tropas que chegam hoje, cada vez mais bem preparadas.
E isso é bom para o Exército, porque, como nós revezamos tropas a cada seis meses, todas as brigadas, no caso do Exército do Brasil, e dos fuzileiros navais, estão em constante aperfeiçoamento e evolução, porque a doutrina que se usa aqui com a tropa permanece. Ela volta para o Brasil com os militares. Ela é aperfeiçoada. Então, eu diria que essa missão tem sido uma grande escola.
Por que o force commander da Minustah é sempre um brasileiro?
Hoje, a ONU tem 16 missões no mundo, sendo a maioria delas na África. Ou seja, há 16 force commanders mundo afora. Por exemplo, no Líbano, tem force commander italiano e espanhol. Tem um force commander chinês no Sudão do Sul; um paquistanês, no Saara Ocidental. Então, cada país tenta exercer influência na ONU para que o líder militar da missão seja do seu país.
É um sinal de prestígio ter um general seu comandando tropas internacionais. O Brasil conseguiu, quando veio para o Haiti, negociar e estabelecer que o force commander daqui seria brasileiro. E o deputy, o segundo, general de brigada, do Chile.
E a ONU aceitou que o force commander se mantivesse sempre com o Brasil. Poderia ter mudado. Então, eu diria que é uma disputa política na ONU. Eu acho que é salutar, é saudável, tem que ser assim, para que os comandantes sejam dos seus países. Aqueles países que têm mais influência na ONU, em termos de missão de paz, que contribuem com mais tropas, têm mais chance de emplacar um force commander.
Para o Brasil, é um sinal de grande prestígio. Eu já sou o 11° brasileiro na função, desde 2004. E espero que, se a missão continuar, se mantenha assim, e venha outro brasileiro para me substituir.
O senhor já comandou o Brabat (Batalhão brasileiro de infantaria e força de paz) em uma ocasião anterior. O que a experiência durante esse período acrescentou à sua bagagem militar?
A minha tropa foi treinada em 2009. Era uma tropa da Brigada Paraquedista. O coração do meu batalhão era a Brigada de Infantaria Paraquedista do Rio de Janeiro. Havia tropas da 9ª Brigada de Infantaria Motorizada, que também fica no Rio; e tropas da 4ª Brigada, que é de Minas. Na época, o efetivo brasileiro era de 1.300 soldados, e aí eu estou incluindo uma tropa que não pertence formalmente ao Brabat, que são os engenheiros e os fuzileiros navais – e, na época, eu tinha um pelotão paraguaio dentro do batalhão brasileiro também.
Essa tropa treinou em 2009 para assumir as funções a partir de janeiro de 2010. A principal missão nossa, para a qual nos preparamos, eram as eleições que ocorreriam em 2010, à semelhança do que está ocorrendo aqui novamente. Essas eleições, no entanto, só foram ocorrer bem depois, porque no dia 12 de janeiro de 2010 veio o terremoto. A primeira leva de tropa minha saiu do Rio no dia 10. Chegaram aqui no dia 11. No dia 12, os soldados, 130 meus, que estavam aqui, já foram para as bases iniciar o processo de substituição, assumir novas funções.
Teve uma reunião na sede da ONU, que na época ficava em um antigo hotel, o Christopher,e ali já morreram os primeiros brasileiros. A partir daí, a missão mudou. Eu, no Brasil, não sabia o que estava acontecendo. A segunda leva de soldados veio para cá no dia 12 e não conseguiu descer do aeroporto, porque a torre estava inoperante, a pista tinha rachado.
Não tinha como descer aviões no Haiti no dia 12 de janeiro. Esse avião, com 130 soldados – a segunda leva -, retornou para o Brasil. Nós reajustamos, tiramos alguns militares dele e eu entrei nesse avião com meu Estado-Maior e meu subcomandante – que, inclusive, só viria depois. Nós mudamos os planos e eu vim pra cá no dia 20 de janeiro, na semana seguinte ao terremoto. A partir daí, a experiência foi totalmente diferente daquela para a qual nós tínhamos treinado.
Nós havíamos treinado para uma eleição e não tinha mais eleição. Os criminosos estavam todos soltos, porque o principal presídio do país caiu. Eles foram liberados, estavam no pátio na hora do terremoto e fugiram. Os que estavam presos, a própria polícia soltou, porque não tinha como mantê-los presos – iriam morrer nas celas. Isso aconteceu em toda a Porto Príncipe. Mesmo nas celas afastadas, eles foram liberados, porque não tinha mais policial, não tinha mais guarda penitenciário.
E aí, a partir da segunda semana após o terremoto, nós passamos a prendê-los novamente. E a missão do batalhão também era fazer ajuda humanitária até as 14h, todos os dias. De 14h até o dia seguinte, nós nos equipávamos e íamos prender as gangues de Cité Soleil, Mart San, Croix-des-Bouquets e outras regiões, na capital inteira. Na época, essa tarefa ficava a cargo apenas das tropas brasileiras.
E isso durou até meados de março. Havia dias em que nós prendíamos uma quadrilha inteira reunida, tramando alguma coisa. A gente chegava, cercava e prendia quinze pessoas, de uma vez só. E eram de alta periculosidade, eram os bandidos condenados que estavam soltos. Outros, não tão perigosos, mas a gente prendia e entregava para a polícia. Foi um período muito conturbado.
Nesse momento, chegaram tropas internacionais que não pertenciam à ONU. Os americanos estavam aqui, com algo em torno de 15 mil militares. Essas tropas deles estavam indo ou voltando do Afeganistão e Iraque, eram tropas muito bem treinadas, mas não participavam da segurança. A segurança era problema nosso.
Eles participavam de ajuda humanitária. Então, nós entregávamos diariamente em torno de 80 toneladas de alimentos do World Food Programme. Oitenta toneladas de alimento implica dizer que é o que o Brasil entrega em quatro dias quando tem uma grande crise de enchentes ou seca. Em um mês, nós entregamos 30, 50, 60 toneladas.
E aqui, tem vezes que a gente entrega 80 por dia. Teve um dia que nós entregamos 320 toneladas. Eram 10, 12 carretas com gêneros. E entregávamos junto com os americanos. Fazíamos aquelas filas intermináveis de milhares de pessoas. As senhas eram entregues no dia anterior, para haver justiça na distribuição. Uma coisa que a gente aprendeu na época é que, nessas crises muito graves, tem–se que agir com rigor.
Não dava para fazer aquelas filas como se faz na entrega de gêneros no Natal no Brasil, em que as pessoas estão felizes, vêm cantando na fila. Aqui, não. Aqui era uma questão de sobrevivência. Então, quem vinha receber gêneros vinha numa situação instável, às vezes tendia a descambar para a violência, e aí as tropas tinham que impor a regra para que uma doação de gêneros não se transformasse num desastre.
Às vezes, a gente tinha que fazer com blindados: nós cercávamos e as pessoas faziam fila. E eram milhares. Entregávamos senhas e só entravam nas filas as mães. Não entregávamos gêneros nem para crianças e nem para homens. O homem porque nós descobrimos que eles pegavam os gêneros e trocavam por favores sexuais, bebidas, vendiam. A mulher tem mais senso de proteção: ela pega a comida e leva para a família.
Aí, a gente entregava o pacote de gênero. E no dia seguinte, a gente mudava os locais, para não repetir. E foi feito assim, com alimentação, com água. Medicamentos a gente entregava nos postos, porque não se pode distribuir remédios nas ruas. Esses gêneros vinham da WFP, que tinha grandes depósitos aqui no centro industrial deles. Nós protegemos esse centro porque, quando saíamos com as carretas, houve casos de assalto. Paravam as carretas e roubavam tudo o que tinha dentro.
E não dava para reagir. E tinha também as doações brasileiras. Essas doações, o batalhão brasileiro entregava em locais que nós tínhamos interesse em manter o bom relacionamento com a população. As que vieram da ONU, a ONU dizia o local. Nós fazíamos entregas de senhas, segurança e distribuição. E assim nós fomos vivendo durante 15 dias.
A engenharia teve um trabalho muito grande nessa época, que era recolher os corpos e enterrá-los em valas coletivas de 200, 100, 50 pessoas. Registrávamos e enterrávamos. A parte de saúde do Brabat e da engenharia trabalhou muito, criou quase um hospital improvisado, porque, nessa hora, era muito problema de saúde. Dentro do Brabat, teve amputações de pernas, de braços, e depois era tratado até estabilizar e a pessoa voltava para sua casa. Mas o Brabat foi um local onde se teve muito drama.
O Haiti inteiro teve 40 mil amputados. Até hoje eles estão por aí. No aniversário do terremoto, esse ano, eu fui a Léogâne, que é onde foi o epicentro do terremoto, e fui ver uma competição de handicap, de pessoas com deficiência, com amputações. A maioria amputados. Tinha muita gente amputada. Foi muito grave lá, assim como em Porto Príncipe também. E parte dessas pessoas foi salva pelo Brabat, engenharia… Os médicos todos ficaram voltados para isso aí. O hospital argentino também.
Nós tínhamos os militares e civis da ONU, que precisavam ser curados também. Foram mais de 150 mortos da ONU. Foi o maior desastre, a maior perda que as Nações Unidas tiveram numa missão ao longo da história. Morreram chineses, filipinos, brasileiros… Foi um choque. Foi uma experiência mais de vida do que militar. A tropa reagiu muito bem. Os soldados sentiram muito. Eles tinham 19 anos.
Iam à rua e viam tanta desgraça, e voltavam abalados para o batalhão. E eu proibia, dentro do batalhão, de falarem de terremoto. Então, dentro do batalhão eu incentivava e os forçava a estar sempre fazendo treinamento físico, correr, fazer musculação, ouvir música, contar piada. Era uma forma de não trazer o clima de desgraça que tinha na cidade pra dentro do batalhão. Eu dizia a eles que eles tinham que agir como médicos e dar esperança para o paciente.
Nessa época, nós tivemos que recuar duas bases. Uma era no Forte Nacional, que caiu, e onde morreram três. A outra, a Base Tebo, na área de Cité Soleil, também sofreu o terremoto – era uma área que nós alugávamos. Então, no primeiro momento, todo o batalhão recuou, porque não tinha mais onde ficar lá fora e aí a missão mudou. A tropa aprendeu a ser flexível. Na época, era flexibilidade, iniciativa e adaptabilidade. As três características da tropa.
General, vamos voltar à sua atuação como force commander da Minustah. O senhor falou que existe uma tropa de 2.370 homens sob seu comando. Quais são os países, como é essa composição, quantas nacionalidades e como é lidar com idiomas e culturas diferentes?
Nós temos hoje, na Minustah, sob meu comando, 10 unidades. São três batalhões de infantaria: o batalhão brasileiro, o batalhão chileno – no norte do país, que tem tropas de El Salvador e de Honduras -, e um batalhão com tropas do Uruguai e Peru. Temos também duas companhias de engenharia: uma brasileira e uma paraguaia.
Temos um hospital de campanha, argentino. Duas companhias: uma seria equivalente à polícia do Exército do Brasil, que é da Guatemala; e outra das Filipinas. E ainda duas unidades de aviação: uma do Chile, com dois helicópteros bell, e uma de Bangladesh, com três helicópteros russos MI17. Ah, dentro do batalhão do Chile também tem três oficiais do México, que é algo inédito.
É a primeira missão de paz em que o México participa. Além dessas que eu falei, existem no meu Estado-Maior 63 oficiais, desses países que eu já citei, e mais oficiais do Nepal, Sri Lanka, Jordânia, Estados Unidos, Canadá, Equador e Bolívia, que não têm tropas, mas têm coronéis, tenentes-coronéis… Então, nós temos 10 quarteis e 2.370 homens. Nesses quarteis, temos a representação de 12 países. Além desses países, no meu Estado-Maior tem mais sete países. É um total de 19 nacionalidades aqui.
O maior desafio para mim, no force commander, é ser respeitado por essas tropas, porque eles são muito bem preparados, já têm experiência de outras missões. São de países que vivem desafios em outros cenários – e eu diria que os principais são os americanos e os canadenses.
Há oficiais do Canadá e dos Estados Unidos aqui que já participaram de missões de combate no Afeganistão, por exemplo. São oficiais que têm experiências em situações críticas e os outros são todos muito bons, os países mandam os melhores oficiais deles.
De todos, Brasil inclusive. É um grupo muito bom. Mas é um grupo que cobra muito. Eles são exigentes. Eles não são fáceis de serem convencidos, não. Eles precisam acreditar. E isso para mim, talvez, seja o maior desafio que eu já enfrentei na vida. Antes, eu comandava um batalhão de brasileiros. Queiram ou não, eles estavam sob os regulamentos disciplinares do Brasil.
Em termos até de disciplina, era muito mais fácil de conduzir. Com esses oficiais aqui, é uma outra situação. A carreira deles não depende de mim no futuro. Eles sairão para os seus países e nós, provavelmente, nunca mais iremos nos ver. E eles têm vida própria no seu país, têm uma carreira própria. Assim, é um desafio conduzir esse grupo em crises.
E tem dado certo. Eles são muito bons, são muito competentes. Aos desafios nossos de segurança, quando vêm, a resposta é muito rápida, é muito eficaz, tanto do planejamento nosso quanto da tropa. De todas as tropas. E tem sido muito gratificante isso aqui. Mas o maior desafio é uma missão com 19 nacionalidades, vivendo momentos de tensão, fazer com que esse grupo produza o resultado eficaz para a ONU, que é o que nós estamos fazendo aqui.
E não podemos falhar. Eu não posso falhar. A tropa não pode falhar. E o grupo entende que estamos todos no mesmo barco. Se alguém falhar, todos vão falhar. É um lema que eu aprendi com eles, que os outros force commanders trouxeram essa ideia para cá e, até agora, tem tido resultado.
General, como foi a sua escolha para o cargo de force commander da Minustah? Como tem sido voltar a viver no Haiti?
Eu estava numa missão do Exército da Argentina, em Buenos Aires, no dia 30 de agosto. Foi quando soube do falecimento do meu amigo Jaborandy [então force commander da Minustah]. No dia seguinte, eu recebi uma ligação do meu chefe, no Brasil, general Modesto, dizendo que eu era voluntário para o Haiti. E aí quando eu dei a notícia para minha esposa, ela não gostou.
Para ela, a minha fase de Haiti já tinha passado, lá em 2010. E aí eu disse que quem iria decidir era a ONU, não era eu. Eu entrei numa roda viva: voltei para o Brasil no dia 6 de setembro, depois, no dia 8, eu comecei a ler alguma coisa em inglês, para treinar para a entrevista da ONU, que não é fácil – é uma videoconferência que dura, no mínimo, 30 minutos, num telão com três militares de Nova York entrevistando a gente, com dificuldade de sons… A entrevista foi feita na sede do Ministério da Defesa, em Brasília.
Na entrevista, não pode ter ninguém na sala, não pode ter anotação, não pode ter nada. Cada um dos entrevistadores faz três a quatro perguntas longas, com respostas longas também. Querem saber tudo. E aí eu sobrevivi. Éramos três generais concorrendo. Mas a ONU achou que, naquele momento, eu era para ser o indicado. Durante uma viagem para o Paraná, numa missão do Departamento Geral de Pessoal, onde eu era vice-chefe, eu recebi a ligação dizendo que eu tinha sido o escolhido para a Minustah. Tive apenas dois dias de preparação de mala.
Peguei meus dois sacos de viagem verde-oliva, coloquei tudo que eu achava precisar e vim embora no dia 4 de outubro. Então, do dia que eu soube do falecimento do Jaborandy até o meu embarque, entrevista, viagem, preparação, foi um mês. Desde então, sou um funcionário civil da ONU. Eu não recebo salário pelo Brasil, eu não tenho vínculos com o Brasil, eu não pago imposto no Brasil – eu pago da ONU.
E a grande experiência de vida que eu tenho aqui é que eu estou me tornando quase independente. Eu entrei no Google e tenho aprendido a cozinhar. Esse tem sido o meu maior desafio. Durante mais de 50 anos, eu nunca cheguei perto de um fogão, a não ser para fazer café e fritar ovo. Agora eu já consigo fazer frango guisado. E é uma experiência tão boa que eu, inclusive, filmo e mando para casa, para minha esposa. Tudo é experiência de vida, fazer comida é uma experiência bacana. Eu cuido de plantas também, que é o meu hobby.
Como o senhor avalia a contribuição do braço militar da Minustah para a força policial local do Haiti: o que é repassado e que legado está sendo deixado? E do ponto de vista da população, como a atuação militar da Minustah ajuda o país a se reerguer?
Hoje, a polícia do Haiti tem em torno de 11.500 homens. Até dezembro desse ano, ela prevê chegar em 15.600. Esse é o número que a ONU considera ideal para que eles assumam de vez a segurança do país. Isso pode ocorrer em dezembro.
O treinamento é realizado na academia e ele foi patrocinado pelo Canadá. Uma formação técnica trazida de vários países, mas principalmente os canadenses resolveram assumir essa responsabilidade. O Canadá tem ligações muito fortes com o Haiti. Há um milhão de haitianos vivendo no Canadá hoje. Tem um voo regular de Montreal para Porto Príncipe, diariamente.
Os turistas que agora já começam a vir para o Haiti, eles são a maioria do Canadá. Os policiais do Haiti já aprendem muito conosco quando fazem operações conjuntas. Tanto com o Chile, Uruguai, Peru e Brasil. De outubro até agora, nós já fizemos mais de 250 operações conjuntas. Agora, nesse momento, tem soldados haitianos fazendo patrulhas conjuntas com as tropas brasileiras, por exemplo, em Cité Soleil.
Esse mês de março, nós vamos fazer 11 operações em Cité Soleil, em que as tropas da polícia haitiana participam também. Quando elas vão juntas, eles aprendem conosco como nós procedemos, táticas, como que nós agimos e isso tudo é ensinamento. Aos poucos, eles vão assimilando esse conhecimento.
Às vezes, o Brabat faz treinamentos com eles antes de irem para essas operações: normas, formas de agir, de atirar, de progredir, de se proteger. É um trabalho muito importante que o Brabat faz. O Chile, o Uruguai, o Peru fazem também. E isso é um aspecto que tem sido bom. Agora em março, nós vamos fazer seis operações usando os helicópteros do Chile e de Bangladesh. Nessas seis idas pelo país, eles, os policiais haitianos, vão também. Levam parte dos soldados especiais deles para atuar junto conosco. Tem sido feito assim.
É grande a contribuição que vamos deixar aqui com a polícia, principalmente na parte operacional. Quanto à população, até hoje, depois de 11 anos, eles ainda admiram e respeitam as tropas da ONU. O que não é usual em todas as missões. Há uma tendência de desgaste nos últimos anos. A população começa a reagir porque nós somos uma tropa de fora. Eu sou um general de um país estranho.
Não é uma boa imagem a de um general de outro país circulando fardado nas reuniões com as suas autoridades. Não é agradável para eles. Não seria uma imagem agradável no Brasil eu ver um general de outro país, que comanda as tropas de outros países, circulando nos meus palácios, digamos assim. Tem que entender isso aí. Eu entendo. E por isso que nós devemos ter muito tato, muito cuidado com as nossas ações. O grande legado que a ONU está criando é a estabilidade, a segurança no país.