"Deus salvou a nossa vida." Foi a essa conclusão a que chegaram Julio do Valle e outros três soldados da Força Expedicionária Brasileira (FEB) depois de terem escapado de uma explosão na cidade de Montese, no norte da Itália.
Integrantes do batalhão de saúde, os quatro jovens procuravam um posto médico em meio ao bombardeio de tropas alemãs na cidade. Eles não encontraram o local e decidiram se sentar em frente a uma casa abandonada.
"Passou alguém que disse para entrarmos, porque ali era muito perigoso. Mal passamos a porta e caiu uma granada bem onde a gente estava", lembra o ex-combatente de 93 anos. "Foi uma tristeza ali dentro, aquela fumaça, cheiro de bomba, muita poeira. Nós saímos, e as padiolas [espécie de maca] que deixamos na frente da casa estavam estraçalhadas."
Eles se reuniram depois para tentar saber quem foi a pessoa que os alertou sobre o perigo. "Não vimos chegar e não vimos indo embora, não lembramos da fisionomia. Ninguém sabia responder. Então, chegamos a uma conclusão: foi Deus", conta, chorando.
Solidariedade
Julio do Valle servia o Exército brasileiro como enfermeiro no hospital militar em São Paulo quando foi convocado para lutar com os aliados na Itália, durante a Segunda Guerra Mundial. Em um ano, ele viu e vivenciou as dores do conflito.
"O brasileiro aprendeu a guerrear na guerra. Nunca tivemos instruções sobre como deveríamos colocar um ferido na padiola, por exemplo", relata.
A batalha de Montese, em abril de 1945, foi um dos conflitos mais violentos enfrentados pelos pracinhas brasileiros contra os alemães. Valle conta que, numa noite fria e escura, a única luz era das granadas que caíam.
"Com o clarão, nós conseguíamos procurar os feridos", conta. "Todo o tempo em que estive na guerra, eu nunca escutei um brasileiro dizer 'não'. Nós nunca deixamos um ferido para trás, onde quer que ele estivesse."
A fome castigava os civis italianos, principalmente nas cidades. Valle dividiu todas as refeições. "As pessoas estavam morrendo de fome. A única coisa que fazíamos era dividir um pouco a comida com os italianos. Dava muita pena. Na hora da refeição do Exército brasileiro, formavam-se duas filas: uma de soldados e outra de civis. Eles iam lá pegar o restinho que sobrava."
Lembranças
Mesmo em meio a mortes e ao sofrimento dos soldados brasileiros, Valle teve momentos de alegria. Ele e um colega estavam em Pisa e toparam com duas italianas. Eles subiram na torre e ficaram cantando músicas italianas.
"Elas fumaram todo o cigarro que nós tínhamos", ri. "E foi apenas uma amizade mesmo, ficamos curtindo aquele momento raro de alegria. Aquilo me dá uma saudade…", diz o pracinha.
Quando terminou a Segunda Guerra, em 8 de abril de 1945, ele estava na província de Alexandria, em Piemonte, onde ficavam os prisioneiros alemães. De lá, fez a viagem de regresso para o Brasil. "Quando anunciaram o fim da guerra, foi uma bebedeira só. Acabamos com o vinho da cidade."
Irmãos brasileiros em lados opostos na Segunda Guerra
Era 1938. Gerd Emil Brunckhorst via o irmão pela última vez, na Baía de Guanabara. Paul Heinrich, de 16 anos, seguia de navio para a Alemanha, onde faria um tratamento médico. Com o início da Segunda Guerra, ficou retido no país e, em 1943, foi recrutado pelo Exército de Hitler.
Na manhã de 11 de julho de 1944, Gerd estava de volta ao cais do porto. Mas, desta vez, avistava o enorme navio americano que o levaria para a campanha da Força Expedicionária Brasileira na Itália. Descendentes de alemães, os irmãos lutaram em lados opostos.
"Quando eu já estava na Itália, soube de uma carta dele escrita à minha tia, de agosto de 1944, dizendo que ele iria embarcar em direção ao front russo. Depois disso, não voltou mais. A gente não sabe exatamente quando ele morreu", conta Gerd, hoje com 95 anos.
Paul era o caçula entre quatro irmãos. Os pais tinham deixado a Alemanha em 1910 com destino ao Brasil. Com um problema glandular, o rapaz de 16 anos não passava de um metro e meio de altura.
"A família o mandou à Alemanha para que talvez a mudança de clima desse um impulso para ele, mas não foi", lamenta. Impedido de deixar o país e convocado pelo Exército nazista, Paul passou a trabalhar em uma fábrica de munições e, já no fim da guerra, foi enviado para a Frente Oriental, o principal palco de conflitos entre o Reich e a União Soviética.
"Como cidadão brasileiro, ele não era obrigado a servir ao Exército Alemão, mas até ficou orgulhoso quando foi convocado já no fim da guerra", recorda Gerd. "Foi uma grande perda para a nossa família."
Um pracinha
Depois de estudar na Deutsche Schule, hoje Colégio Porto Seguro, em São Paulo, Gerd se mudou para o Rio de Janeiro. Ele trabalhava numa companhia de seguros marítimos fundada por alemães na capital carioca.
A entrada do Brasil na Segunda Guerra, com o ataque de submarinos do Eixo contra navios brasileiros, acentuou ainda mais o projeto nacionalista de Getúlio Vargas, que via alemães e teuto-brasileiros como uma ameaça.
O comando da empresa onde Gerd trabalhava foi alterado. "O novo diretor me chamou no escritório e falou para eu ir embora", lembra. "Eu argumentei que sou brasileiro e que estava com as minhas obrigações militares em dia, mas não adiantou. Depois de quase um mês em casa, me encostaram em uma seção de preenchimento de formulários."
Mas não passou muito tempo até que Gerd fosse enviado para a guerra. "Um praça bateu na porta da minha casa e entregou minha convocação para a Força Expedicionária Brasileira. Tinha sido rebaixado no trabalho por ser descendente de alemães, mas para 'boca de canhão', me achavam bom", ironiza.
Gerd se apresentou no dia seguinte, e viajou a Mato Grosso para receber treinamento. "Os descendentes de alemães eram de segunda, terceira ou quarta geração. Eles já não tinham mais ligação com o nazismo. Nós que éramos a primeira geração brasileira, ainda falávamos alemão em casa, mas nos sentíamos brasileiros."
A viagem para a campanha brasileira na Itália estava próxima. "Quando encostei do armazém 10 do Rio de Janeiro estava lá aquele navio monstruoso. Descemos até o quarto porão, na linha d’água. Minha beliche estava bem na pá do navio, o alvo predileto dos submarinos", relembra, sorrindo.
"Na noite seguinte, Getúlio Vargas apareceu: 'Brasileiros!', com aquele jeitinho de gaúcho. De manhã cedo, já estávamos saindo da Baía Guanabara e só tocavam canções patrióticas. 'Nós somos a pátria amada, fiéis soldados'. O Rio de Janeiro ficava para trás."
A viagem durou 13 dias. Eles seguiram escoltados por navios brasileiros e, depois de atravessar o Estreito de Gibraltar, foram levados até Nápoles, no sul da Itália, pelos ingleses.
No escuro
Trilíngue, Gerd foi um dos primeiros a desembarcar como intérprete dos oficiais brasileiros. Ele integrava o 9º Batalhão de Engenharia, a primeira unidade brasileira a entrar em ação na Segunda Guerra para construir estradas e pontes.
Ele e cinco mil homens seguiram para um vale coberto por carvalhos, oliveiras, nogueiras e faias para montar o primeiro acampamento.
"Uma banda de pracinhas começou a tocar. Imagine cinco mil homens cantando Aquarela do Brasil naquele escuro. Foi uma emoção, uma coisa que eu nunca esqueci", conta emocionado.
A missão de Gerd durou cinco meses. Um acidente, em novembro de 1944, determinou o caminho de regresso, que seria tão cheio de aventuras quanto à ida para a Itália.
Ele já tinha problemas no joelho e sofreu uma fratura enquanto preparava uma instalação sanitária. Ferido, Gerd passou a servir de intérprete entre pacientes brasileiros e médicos estrangeiros nos hospitais.
"Estávamos em Livorno, e um companheiro falou que havia um soldado alemão prisioneiro. Fui conversar com ele. O interessante sabe o que é? O soldado seja amigo, seja inimigo é solidário com o outro soldado", diz.
De volta a Nápoles, Gerd deu início à volta ao Brasil junto com outros feridos. "Entrei numa enfermaria apenas com pessoas que tinham perdido membros do corpo, civis e soldados. Era um salão enorme. Um rapaz que tinha perdido os dois braços pediu para fumarmos um cigarro juntos", conta.
Ele e outros dez pacientes viajaram de avião de Nápoles para Orã, na Argélia, de onde partiram para o Marrocos. "Atravessamos a cordilheira do Atlas. Estava um frio danado dentro do avião, que não era revestido. Descemos numa cidade no meio do deserto do Saara para abastecer e, no meio da noite, chegamos em Dacar, no Senegal. De lá, atravessamos o oceano até o Rio Grande do Norte", recorda o pracinha.
De lá, passaram uma noite no Recife, em meio a percevejos. "Do outro lado do corredor, tinha o setor de pacientes com doenças venéreas." Da Bahia, seguiram para o Rio de Janeiro. "Fomos em cinco pacientes num furgãozinho onde cabiam duas pessoas até chegar ao Hospital Central do Exército. O meu padrinho me recebeu e, olha só, ele assistiu ao meu nascimento."
Indagado sobre qual foi a aventura maior – ir para a Itália ou voltar de lá – Gerd não sabe responder.
Quando a Segunda Guerra terminou, em 8 de maio de 1945, o ex-combatente soube da notícias pelos jornais. Para ele, já era esperado.
"Quando ocorreu a invasão do sul da França, eu ainda estava na Itália. Eu vi uma corrente sem fim de aviões atravessando o céu na madrugada. Vi aquilo e pensei: 'É uma guerra perdida'."