Tahiane StocheroDo G1,
em São Paulo
Durante a ocupação do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, militares atuaram durante 19 meses como polícia dentro do próprio país. A necessidade de enfrentar um inimigo sem farda, de lidar com manifestações populares e de ser sensível aos problemas sociais da região fez o Exército perceber que é preciso investir na preparação da tropa.
Nos últimos anos, os militares têm sido cada vez mais empregados na Garantia da Lei e da Ordem (GLO), como a Constituição denomina a atuação das Forças Armadas em casos graves de segurança pública.
O G1 publica, ao longo da semana, uma série de reportagens sobre a situação do Exército brasileiro quatro anos após o lançamento da Estratégia Nacional de Defesa (END), decreto assinado pelo ex-presidente Lula que prevê o reequipamento das Forças Armadas. Foram ouvidos oficiais e praças das mais diversas patentes – da ativa e da reserva -, além de historiadores, professores e especialistas em segurança e defesa. O balanço mostra o que está previsto e o que já foi feito em relação a fronteiras, defesa cibernética, artilharia antiaérea, proteção da Amazônia, defesa de estruturas estratégicas, ações de segurança pública, desenvolvimento de mísseis, atuação em missões de paz, ações antiterrorismo, entre outros pontos considerados fundamentais pelos militares.
A formação dos soldados para esse tipo de ação – com técnicas, armas e doutrina bem diferentes do treinamento pesado que normalmente recebem para uma batalha – é um dos pontos-chave da Estratégia Nacional de Defesa.
“Somos Exército, treinados e preparados para a guerra. Precisamos atuar em operações de policiamento ostensivo e coisas do gênero quando convocados, é uma das nossas missões constitucionais. Mas, mesmo nestes momentos, não podemos perder a nossa característica intrínseca de Exército. Não somos polícia”, diz o coronel Vladimir Schubert Ferreira, que chefiou durante seis meses as tropas no Complexo do Alemão.
O coronel comanda o Centro de Instrução de Operações de GLO, localizado em Campinas (SP), que prepara combatentes para ações como a ocupação de morros no Rio de Janeiro ou durante greves das policiais Civil e Militar, uma atuação que vem cada vez mais aumentando.
Entre o final de 2011 e o início de 2012, o Exército foi convocado para manter a ordem em pelo menos seis Estados, devido a situações de caos na segurança e de greves nas polícias. Todos os aprendizados obtidos foram incorporados aos treinamentos, segundo o oficial.
O G1 acompanhou um treinamento em que militares simularam a invasão de uma casa para cumprir mandados de busca e apreensão de drogas e para prender criminosos em missão de segurança pública .
Nos últimos dois anos, militares foram colocados nas ruas durante greve das polícias no Nordeste (Bahia, Rondônia, Tocantins, Ceará e Maranhão). Além disso, operações conjuntas com a Marinha e a Aeronáutica estão sendo feitas a cada mês em áreas de fronteiras.
No Rio de Janeiro, a “Operação Arcanjo”, como o Exército denominou o cerco no Alemão, empregou 1.800 soldados para ocupar uma área de 10 quilômetros quadrados, com cerca de 400 mil pessoas. Foi o maior emprego interno de força militar desde que a prática foi autorizada pela Constituição de 1988 e regulamentada por uma portaria ministerial em 2001. Em 7 de julho desse ano, o Exército entregou oficialmente a segurança da comunidade ao Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE).
A previsão é que o uso militar interno do Exército aumente: o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) informou que cinco Estados, entre os quais o Rio de Janeiro, já pediram apoio militar durante as eleições municipais de outubro deste ano.
Ao G1, militares admitiram terem enfrentado mais dificuldade para trabalhar dentro do país do que no Haiti, onde o Exército comanda uma missão de pacificação e manutenção da ordem a serviço da ONU desde 2004.
“Esta ação no Rio nos trouxe muito aprendizado, principalmente por lidar com o tráfico de drogas", diz o general Tomás Paiva, que comandou a Força de Pacificação no Alemão e na Penha, no Rio, e foi subcomandante do batalhão brasileiro na missão de paz no Haiti em 2007.
"Diferentemente do Haiti, onde esse fator não interfere na vida cotidiana das pessoas, nas favelas do Rio o tráfico pode manipular e usar a população para seus objetivos e contra nós. É uma atividade, um negócio lucrativo, que eles querem continuar”, acrescenta o general Tomás.
“A maior dificuldade que temos aqui é de atuar contra brasileiros. É diferente das outras operações militares típicas, onde temos um inimigo físico definido, de uniforme. No confronto urbano, nós não podemos ver o inimigo do outro lado. O traficante, o ladrão e os suspeitos estão no meio do povo”, explica o coronel Vladimir Schubert Ferreira.
“Os criminosos usam a população para impor medo. Aqui dentro, no nosso país, as regras de engajamento (espécie de manual com as regras das ações militares) são mais rígidas. Respondemos por qualquer disparo feito. Já no Haiti, as regra da ONU são mais flexíveis”, acrescenta o coronel.
Emprego militar dentro do país
O professor e historiador militar Geraldo Cavagnari, criador do centro de estudos estratégicos da UNICAMP, critica o aumento do emprego militar no interior do país.
“O Exército não pode arcar com o compromisso que não lhe cabe, de ficar correndo atrás de bandido em morro. Ele pode e deve colaborar com os meios que possui, mas a diferença é muito grande. Militar tem uma visão diferente, de ordem e planejamento. Ninguém faz nada sem dar satisfação”, explica.
No confronto urbano, nós não podemos ver o inimigo do outro lado. O traficante, o ladrão e os suspeitos estão no meio do povo”
Vladimir Schubert Ferreira, coronel que chefiou tropas no Alemão
Foi o coronel Mário Sérgio, na época comandante-geral da PM do Rio, que pediu a ajuda do Exército para manter a ordem no Alemão, devido à falta de policiais no estado para manter a ocupação. “A missão do Exército seguramente foi cumprida", defende.
“O Exército fez um trabalho importantíssimo para manter a tranquilidade pública lá. Penso que o benefício foi duplo. A população ganhou em poder ficar em paz e ainda gozar de convívio próximo com o seu Exército, enquanto que os militares agregaram conhecimentos novos”, acrescenta o ex-comandante. “Mesmo o Exército não tendo tido uma atuação na esfera policial ‘desmanteladora’ de esquemas sutis criminosos que existem lá, já que seu aparelhamento não é para isso, foi pleno de sucesso na manutenção da paz social”, afirma o oficial.
Diferenças de atuação e dificuldades
Há diferenças entre segurança pública e Garantia da Lei e da Ordem. A primeira é responsabilidade dos estados, através da atuação das polícias Civil e Militar. A segunda é determinada pelo presidente da República, que convoca as Forças Armadas em casos extraordinários, quando, por exemplo, há pedido de um estado que enfrenta problemas de violência. Os militares, nesse caso, recebem poder de polícia – para revistar e prender suspeitos – em um espaço e período previamente estipulados.
No Rio, os militares enfrentaram dificuldades. A população fez protestos contra abusos de autoridade, tortura e excessos de disparos e do uso de gás lacrimogêneo. Houve confrontos entre as tropas e os moradores, que reclamavam da imposição pelos militares de toques de recolher durante festas noturnas na comunidade. “Tivemos dificuldade em ações de controle da população”, diz o coronel Vladimir.
“Eu senti mais dificuldade de atuar no Rio de Janeiro do que no Haiti. Porém, a ação aqui foi mais gratificante, pois eu vi o resultado ali, no rosto da nossa população. Eu estava fazendo algo pelo meu país”, diz o capitão Leandro Leite. Ele esteve no Haiti em 2010, logo depois do terremoto que matou 300 mil pessoas, ainda como tenente, e comandou uma companhia de 100 homens no Alemão, no primeiro semestre de 2012.
“O militar tem um pouco de dificuldade para o policiamento. É um emprego diferente. Você pode usar esse tipo de recurso em situações esporádicas. A atitude de um policial é diferente da atitude de um soldado. Somos treinados para combater”, define.
O general Tomás Paiva aponta outra diferença: nas patrulhas, o soldado do Exército nunca fica sozinho – sempre há um sargento com experiência. “Os policiais têm o conhecimento do dia a dia, sabem identificar o bandido.”
No Alemão, segundo ele, criminosos usavam mulheres e crianças para transportar armas e drogas buscando burlar o monitoramento. “Passamos então a empregar soldados femininas no nosso grupo. Elas tinham facilidade para conversar com mulheres, idosos e crianças. Conseguiam boas informações”, relembra.
O Exército também cometeu erros no Rio. Em outubro de 2011, um cabo foi ferido por um tiro acidental na cabeça, disparado pela própria arma. Meses antes, em janeiro, outro soldado morreu em um posto de observação instalado em uma das estações do teleférico. Inquérito Policial Militar concluiu, um mês depois, que ele tinha sido atingido por um disparo acidental, feito por um colega de farda.
“Pode haver casos de excesso de uso da força, disparos acidentais, que são apurados. Mas o índice de acertos foi superior ao de erros. Há situações em que a população reclama. A PM também enfrenta isso”, diz o comandante do centro de instrução de GLO.
Centro prepara militares
Todos os sargentos e oficiais que trabalharam no Alemão e nas greves das polícias receberam treinamento de uma semana em Campinas (SP). De volta a suas unidades, eles passaram as instruções aos soldados. A preparação inclui instrução de lutas, uso de armas não letais (sprays, bombas de gás e luz, espingarda com bala de borracha), técnicas de patrulhamento, blitz, abordagem, revista e entrada em residências para cumprir mandados de busca e apreensão. “Temos condições de preparar a tropa para empregar em qualquer lugar e a qualquer hora, seja em uma ação em São Paulo ou em qualquer estado do país”, afirma o coronel Vladimir.
Pode haver casos de excesso de uso da força, disparos acidentais, que são apurados. Mas o índice de acertos foi superior ao de erros" Vladimir Schubert Ferreira, coronel que chefiou tropas no Alemão
“Uma das coisas que percebemos no Alemão é que, em muitas ocasiões, ao usarmos gás, ele acaba se dispersando e atingindo pessoas não envolvidas, entrando em casas e prejudicando a população", diz o coronel.
"Estamos trabalhando para desenvolver novos tipos de munição não letal, para podermos, eventualmente, atirar de uma distância menor, minimizando o impacto, adequando-se à atuação em favelas. A maior preocupação é respeitar a população e evitar os danos colaterais (como os militares chamam civis mortos ou feridos em operações)”, explica ele.
Entre os aprendizados incorporados, segundo Vladimir, está a necessidade de trabalhar integrado com a comunidade através das mídias sociais. "Recebemos fotos e denúncias em tempo real sobre as chateações dos moradores e sobre reuniões dos criminosos", exemplifica.
Criado em 2005, o centro de GLO é pequeno: tem capacidade para 42 alunos e deve ser ampliado para a construção de uma cidade cenográfica no próximo ano. No local, as tropas simularão incursões em áreas urbanas e terão mais espaço para táticas de tiro. “O exército está entrando de corpo e alma nisso”, admite o comandante do centro.