- Paula Adamo Idoeta
Ao longo de oito meses, um dia comum na vida da ex-fuzileira naval americana Jessica Goodell no Iraque consistiu em ir a campo recolher pedaços dos cadáveres de seus companheiros de Exército mortos em combate.
A tarefa seguinte era unir os corpos despedaçados, identificá-los e juntar os pertences pessoais – fotos e cartas, principalmente – dos soldados mortos, para enviá-los às famílias.
Seis anos depois de ter voltado do Iraque, Goodell, 28 anos, conta em um livro recém-lançado os traumas e a solidão do retorno à vida civil e seus questionamentos quanto ao sentido dos oito anos de guerra – em um momento em que se aproxima o prazo para a retirada americana do país árabe, no final deste ano.
"Eu não sei se valeu a pena (ir à guerra)", disse Goodell à BBC Brasil por telefone dos EUA. "Eu estava constantemente trabalhando com restos humanos. Isso me fazia pensar no porquê de aquelas pessoas estarem perdendo suas vidas."
O batalhão de Goodell, chamado de Unidade Funerária, se revezava entre as tarefas de recolher os corpos em campo e identificá-los no acampamento, funções que faziam com que fossem rejeitados pelos demais fuzileiros, diz ela.
"Nosso batalhão era para os fuzileiros o que os fuzileiros são para boa parte dos Estados Unidos: fazíamos as coisas que tinham que ser feitas, mas das quais ninguém queria saber."
No livro Shade it Black – Death and After in Iraq (editora Casemate Publishing, ainda inédito no Brasil), ela relata que certa vez teve de identificar uma sacola que continha apenas as cabeças decepadas de soldados mortos em combate. "Isso força você a admitir sua própria morte como uma possibilidade real."
Volta para casa
O regresso à vida civil foi difícil e solitário. Ela foi diagnosticada com estresse pós-traumático e depressão. "É realmente difícil processar (as recordações). Por muito tempo, não saí do meu apartamento. Só saía para comprar comida, e mesmo assim acompanhada. Até hoje não tenho muitos amigos", relata.
As lembranças do Iraque eram um tema pouco mencionado nas conversas com os demais fuzileiros. Os amigos e a família não perguntavam sobre o ocorrido na guerra, "então eu não falava a respeito".
A primeira pessoa com quem conversou foi um professor de sua universidade, John Hearn, que a estimulou a escrever suas memórias e seus pesadelos em um diário. Os escritos acabaram se tornando o livro Shade it Black, do qual Hearn é coautor.
"Agora, relendo o livro e falando a respeito, vejo que me ajudou muito. Sinto também que estudar (ela tenta obter um PhD em terapia psicológica) e ter objetivos na vida (são coisas que) me salvaram."
Não foi o que aconteceu com um ex-fuzileiro companheiro de batalhão de Goodell, que mandou um bilhete a ela afirmando que planejava cometer suicídio.
"A guerra pode acabar, mas seus efeitos ficam nas sociedades por muito tempo. E muitas vezes nos esquecemos de que isso vale também para o outro país, para as outras pessoas que perderam suas vidas. Não foi só (uma despesa) no orçamento americano."
Retirada americana
Goodell diz ter sentido "pressionada" a se alistar para a Guerra do Iraque após voltar com seu batalhão de um período em Okinawa, no Japão. Como não havia vagas para mecânicos – sua função original nos Marines – ela acabou entrando na Unidade Funerária.
"O que (os comandantes) nos diziam é que íamos ajudar os iraquianos. Que eles precisavam de nossa ajuda. (Mas) não vejo, a partir de minha experiência, como a força militar poderia ajudá-los."
Desde a invasão americana, em 2003, já morreram na guerra do Iraque mais de 100 mil civis (segundo contabilidade do site Iraq Body Count) e 4,4 mil militares americanos.
Um acordo prevê a retirada dos 47 mil soldados restantes dos Estados Unidos – que já não têm mais função de combate no Iraque – até 31 de dezembro de 2011, mas autoridades americanas deram indicativos de que esperam que o governo iraquiano solicite uma prorrogação em sua permanência.
Para Leon Panetta, diretor da CIA e chamado por Barack Obama para ser o futuro secretário da Defesa dos Estados Unidos (sua aprovação depende do Congresso), a situação no Iraque ainda é "frágil", e a presença da Al-Qaeda não foi dissipada.
Questionada se se arrepende de ter se alistado, Jessica Goodell citou uma frase do linguista e intelectual de esquerda Noam Chomsky, que diz que o único jeito de acabar com o terrorismo é deixar de participar dele. "Não posso voltar atrás, apenas aprender com isso e com o que os EUA estão fazendo no exterior", diz ela.