Chico Otávio, enviado especial
Jornal O Globo
BORDEAUX, FRANÇA – No pátio que separa as duas unidades da Dassault Aviation em Bordeaux, a bandeira do Brasil tremula ao lado da francesa. O segundo executivo na hierarquia da empresa abre um sorriso para receber o visitante. A poucos metros dali, os empregados estão montando mais seis exemplares de uma das mais poderosas e versáteis máquinas de guerra do planeta. Mas não há segredos ou limites ao visitante, que tudo vê, ouve e até toca, a ponto de sentar-se na cadeira do piloto e manusear os joysticks que manobram o aparelho e disparam bombas e mísseis.
Como toda empresa que disputa uma concorrência, a Dassault se esmera para demonstrar que o seu produto é melhor do que o dos concorrentes – no caso, os americanos da Boeing e os suecos da Saab. Mesmo para quem não é um estudioso da guerra moderna, como o visitante brasileiro, é difícil não se impressionar com o Rafale, a última geração de caças franceses, que é montado em Bordeaux e está sendo oferecido ao governo brasileiro.
O Rafale não participa de uma concorrência de rotina. Iniciado há quase duas décadas, tendo atravessado quatro governos e um bombardeio de polêmicas, intrigas e teorias conspiratórias, o processo de escolha dos caças que protegerão os céus brasileiros, chamado de programa FX-2 (começou FX), representa para a Dassault muito mais do que um bom negócio. Para os franceses, está em jogo uma tradição de seis décadas de construção de aviões de combate, que pode chegar ao fim quando decolar de sua fábrica, em Bordeaux, o último dos 300 caças Rafale encomendados pelo governo francês, único cliente do consórcio formado para produzir o avião.
A tecnologia empregada no avião, um destruidor praticamente indestrutível, lançou a Dassault e seus dois parceiros no consórcio, a Snecma (fabricante de motores) e a Thales (sistemas eletrônicos), num paradoxo. Por ser tão completo e versátil, podendo operar em pistas terrestres e porta-aviões, levando mais de dez toneladas de armamentos, o caça vai aposentar todos os demais aviões de combate em operação nas Forças Armadas francesas, que poderão encolher dos atuais 700 aviões para os 300 ( Rafale) sem perder o poderio. Muito pelo contrário: menos aviões, mais poder de fogo.
Além do potencial bélico, assegurado pela parafernália de radares e sensores que carrega, o avião, cujas asas são feitas de compostos de carbono, foi concebido para durar quatro décadas, tempo suficiente para o desenvolvimento do avião do futuro (que será invisível aos radares e dispensará a necessidade de pilotos). Para não parar a linha de produção, o consórcio liderado pela Dassault precisa abrir novos mercados. E as três empresas estão convencidas de que a saída está em dois integrantes do Bric (grupo de países emergentes que inclui Brasil, Índia, China e Rússia), talvez os únicos que reúnam condições e necessidade de contar com a aeronave: Índia e Brasil, onde o Rafale foi selecionado para disputar a última etapa do processo de escolha do caça de soberania aérea.
Sorte para o repórter brasileiro que conheceu o programa e recebeu dos engenheiros da Dassault e da Thales, onde esteve a convite dos fabricantes, informações que, nos tempos em que a Otan enfrentava a Guerra Fria, nem o mais competente espião russo seria capaz de obter. Aliás, essa é a diferença que a Dassault quer marcar frente à concorrência: a disposição manifesta de transferir para os brasileiros toda a tecnologia que o país quiser, mesmo em questões vitais, como aviônica, gerenciamento de alvos por radares e emprego de fibras de carbono na construção de asas e outras partes de aeronaves, militares ou civis.
Mas os franceses têm perguntas a fazer. Querem saber o que pode acontecer com o FX-2 no governo Dilma. Não escondem a frustração com o governo Lula, quando esperavam que a visita do presidente Sarkozy ao Brasil, em 2009, pudesse alavancar a disputa. A Dassault tem pressa. Dos 300 caças encomendados pelo governo francês, 100 já foram entregues. Faltam dois terços da compra e, depois, é o fim da linha.
Dois anos após a seleção dos três aviões finalistas no Brasil, não há sinais de preferência por um ou por outro.
A briga pelo negócio, que já pesou mais para o lado dos franceses, parece agora estar mais equilibrada. O sueco Gripen, da Saab, com apenas um motor, é o mais barato dos três (em torno de 30 milhões de dólares a unidade). Peca pela baixa autonomia para operar nas dimensões continentais do Brasil. Já o americano F-18, da Boeing (com dois motores), é o avião com eficiente folha de serviços prestados a guerra aérea. Mas especialistas não o classificam como de última geração. E os americanos são os menos dispostos a repassar saberes aos brasileiros.
E o Rafale? O maior obstáculo, sem dúvida é o custo. Cada um dos 36 caças que a FAB pretende comprar não sairia por menos de 80 milhões de dólares, o que o torna o avião mais caro entre os três. O negócio todo, incluindo o fornecimento dos armamentos e de suporte técnico, chega a 8 bilhões de dólares, um desembolso considerável para um país cuja única guerra em andamento é contra a pobreza.
Para dobrar os brasileiros, a Dassault garante que, além de não se opor à transferência de tecnologia, conta com a palavra de Sarkozy, de que terá o aval do governo francês para o financiamento do programa. Outro ponto a favor é a parceria entre a Thales e a brasileira Omnisys, de São Bernardo do Campo, na área de radares, tráfego e vigilância aérea.
A visita do repórter brasileiro à sombra do pavilhão nacional é mais uma manifestação do interesse francês pelo programa. Dias antes uma delegação de parlamentares de Brasília merecera igual atenção.
O repórter Chico Otávio viajou a convite da empresa Dassault Aviation.