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CCOPAB – Tudo de novo no “front”

Roberto Kaz e Daniela Dacorso

Terça-feira, duas da tarde, Rio de Janeiro. Um homem de camisa branca se aproxima, cambaleante, de um grupamento do exército. Ele grita, cai no chão, leva as mãos à barriga manchada de tinta vermelha. A encenação é acompanhada de perto por uma centena de oficiais fardados, sentadosem cadeiras de plásticos que, ouvidos atentos ao professor, escutam:

— Num incidente como esse, o comandante vai definir se tem condição de remover o haitiano ou não. Vai decidir se pode retirar o efetivo militar do local. Alguma pergunta?

Perguntas feitas ("É permitido revistar mulheres?", "Quanto tempo dura uma patrulha?"), segue-se ao próximo exercício: como reagir a uma manifestação civil no Haiti. A cena ocorreu dez dias atrás no Centro Conjunto de Operações de Paz do Brasil Sérgio Vieira de Mello, batalhão na Vila Militar de Deodoro responsável por treinar as tropas brasileiras escaladas em missões de paz pelo mundo.

Criado em 2010 pelo ministério da Defesa, o local abriga cursos intensivos sobre as regras das Organizações das Nações Unidas (ONU), instituição civil internacional que, entre outras funções, intervém em países assolados por guerra, ausência de poder, miséria ou violência generalizada.

Das 15 missões de paz tocadas pela ONU hoje, o Brasil participa de oito (há membros das três forças armadas na Colômbia, na Libéria e na Costa do Marfim, por exemplo). Mas a "menina dos olhos" por assim dizer, continua sendo o Haiti, um general brasileiro exerce o comando de 6.914 militares perten- centes a pelo menos dez nações (o número, que tem diminuído gradativamente, vai cair para 6.270 em julho, quando parte o próximo pelotão). A maioria do contingente é formada pelo Exército nacional.

— A ONU não tem exército próprio. Ela usa as tropas dos países membros — explica o coronel Luiz Fernando Baganha, de 47 anos, comandante do Centro Conjunto.

— Desde que começou a missão no Haiti, em 2004, já enviamos 30 mil militares das três forças armadas. Para integrar uma missão de paz, um oficial (militar de alta patente) precisa voluntariar-se — e aguardar, pacientemente, o momento de ser escolhido, o que pode levar até três anos. Quando isso acontece, ele

— e o grupamento que lhe é subordinado — fica, por um período de 13 meses, voltado exclusivamente à empreitada (o salário chega a dobrar em função da viagem). São seis meses de treinamento no Brasil, seis meses de missão in loco e um mês de acompanhamento psicológico após o retorno.

— Eles não voltam de uma situação extrema de guerra, já que se trata de uma missão de paz. Mas também não voltam de Paris — explica o coronel Baganha. — É importante acompanhar.

O treinamento funciona num esquema de pirâmide. Primeiro, o Centro Conjunto recebe os oficiais

— vindos de batalhões de todo o país —, que permanecem internados por duas semanas. Nesse período, eles chegam a ter 12 horas diárias de aulas sobre direitos humanos, normas do Conselho de Segurança da ONU e legislação do país a ser ocupado. Aprendem o histórico da missão de paz, são instruídos a se prevenir contra enfermidades locais, a prestar primeiros socorros, a manejar cadáveres de estrangeiros. E como se trata de um contingente militar, fazem exercícios de proteção a comboios, transporte de prisioneiros e, claro, tiro ao alvo, num simulador.

— Na verdade, ensinamos como controlar o tiro numa situação de paz — esclarece Baganha.

— Pego um soldado treinado para a guerra e o ensino a trabalhar num contexto novo, em que o uso da força deve acontecer só em caso de defesa de civis, das instalações da ONU e de si mesmo. Corrido o período de internato, os oficiais voltam aos batalhões, para repassar o ensinamento a soldados, cabos e sargentos. No mês que antecede a partida, os 1.200 homens ganham o capacete azul claro (marca da ONU) e se reúnem numa cidade com cenário similar ao de Porto Príncipe, capital do Haiti, para simulação.

— É o gran finale — orgulha-se o coronel. — Montamos, com a população local, todo tipo de situação que pode ocorrer. Já fizemos isso em Florianópolis, Natal, Pelotas, e aqui no Rio, perto da Vila Militar. O próximo vai ser em Cuiabá. Capitão do 20º Regimento de Cavalaria Blindada, de Campo Grande, Marcos Bussinger, de 34 anos, irá pela primeira vez ao Haiti. Está ansioso.

— Vários conhecidos que estiveram lá dizem que a situação está mais pacífica. Mas a polícia haitiana ainda precisa de acompanhamento — aponta.

— Vou levar um efetivo de 147 homens. Dá uma certa apreensão preparar a tropa para atuar num país diferente. Capitão de corveta da Marinha, Henrique Amaral, de 38 anos, é mais escolado: será sua segunda visita ao país caribenho (ele também já integrou uma missão brasileira na Namíbia).

— Fui em 2004, com o primeiro contingente, num momento tenso. Cuidei da Cité Soleil, que é o bairro mais violento de Porto Príncipe.

Era tiroteio todo dia, com bala para o alto, que nem nos morros daqui. — lembra. Dessa vez, Amaral estará à frente de 147 fuzileiros navais do 2º Batalhão de Infantaria, do Rio de Janeiro:

— É a maneira que a gente tem de colocar o ensinamento em prática, de se sentir útil, representando o Brasil — diz. Major do Exército canadense, Frederic Harvey estava na Vila Militar com 13 soldados, para acompanhar a preparação.

Aos 39 anos, ele já atuou nas guerras da Bósnia e do Afeganistão, e se prepara para comandar uma equipe canadense no Haiti — que, assim como um pelotão paraguaio, estará subordinada ao Exército brasileiro

. — É uma oportunidade de recomeço — conta. — De 1947 até 2004, nos dedicamos quase exclusivamente às missões de paz. Depois, nos juntamos às forças americanas. A maior parte das nossas tropas é jovem, e não sabe o que é ser agente da paz. Voltaremos à nossa natureza. País com mais tradição conciliatória que belicosa, o Brasil teve pouca influência militar internacional até assumir o comando das tropas no Haiti, em 2004 (a missão conta ainda com um chefe civil, o diplomata canadense Nigel Fisher).

A empreitada, que até novembro de 2012 havia custado R$ 1,9 bilhões aos cofres públicos (cerca de 25% do valor foi ressarcido pela ONU) atendeu a um anseio das forças armadas de colocar seu conhecimento em prática, e do governo Lula de conquistar um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU.

— Para as forças armadas, há sempre o interesse em se adestrar — diz o coronel Baganha.

— É um ganho em termos de qualificação, e podemos usar a experiência adquirida em operações por aqui. Mas, sobretudo, é um interesse do Brasil. Ele aponta ainda motivo diplomático:

— O Haiti é o primeiro país independente da América Latina. Temos uma ligação cultural. Em nove anos no Haiti, o Brasil teve 23 baixas (18 em função do terremoto que devastou o país, em 2010). Foi comandado por oito generais. Promoveu um amistoso da seleção nacional contra a haitiana.

A violência diminuiu para uma taxa de sete assassinatos por 100 mil habitantes (menor que a do Rio). Mas em termos de corrupção, o país continua em 165º lugar segundo a Transparência Internacional. A lista tem 176 países. A missão, na melhor das hipóteses, termina em 2016.

— A ideia é trocar o efetivo militar por policial, e sair com a expectativa de que não vai retornar o conflito — diz o coronel Baganha. — O problema é que o Haiti é complexo. Quando as coisas vão bem, passa um furacão ou vem um terremoto e acaba com tudo.

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