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Afinal, quem inventou o avião?

Filipe Vilicic

Nesta semana, assino uma reportagem biográfica sobre o genial brasileiro Alberto Santos Dumont, em razão dos 110 anos de sua decolagem com o 14 Bis e dos 115 de seu voo de dirigível em torno da Torre Eiffel. Agora, ao se pensar em Dumont, a primeira questão que vem à cabeça é: foi ele mesmo que criou o avião?

Alguns (em especial, americanos e brasileiros com síndrome de vira-lata, que gostam de rejeitar os heróis nacionais) defendem que, na real, foram os irmãos americanos Wright. Há, ainda, os que apontam o francês Clément Ader, responsável por cunhar o termo “avião” e que afirmava que fazia, ainda no século XIX, experimentos secretos com máquinas do tipo para militares de seu país. E aí, como fica?

Defendo a tese defendida por dois biógrafos ouvidos por mim, o holandês Albert Chapin e o brasileiro Henrique Lins de Barros: não há um pai da aviação, ou do avião. Na indústria da tecnologia, são raros os momentos históricos nos quais se atribui uma invenção a somente um nome.

Exemplo: se perguntarem pelas ruas quem criou o smartphone, muitos indicarão, de pronto, Steve Jobs. O mesmo nome seria destacado em relação ao primeiro computador pessoal. Contudo, veja só, já se idealizavam misturas de telefones com computadores desde a década de 1910, em ideias capitaneadas por gente do calibre de Nikola Tesla. Nas lojas, existem smartphones desde os anos 90. Só que foi Jobs quem deu a cara que conhecemos ao aparelho e o tornou viável para o dia a dia, com seu iPhone.

O mesmo vale para o computador pessoal, esse que colocamos em nossas mesas de trabalho. Seria errado esquecer, por exemplo, da famosa The Mother of All Demos (A Mãe de Todas as Demonstrações), na qual, já em 1968, o americano Douglas Engelbart (muito antes de Jobs) exibiu como funcionaria um PC (com mouse e tudo). Acabou o mérito de Jobs? Claro que não, pelo contrário. Mais uma vez foi ele, ao lado de outro Steve, o Wozniak (Woz, pros íntimos), quem deu forma à invenção e à levou ao público.

O que isso tem a ver com o avião? “Há vários pais das aeronaves e da aviação, em geral”, simplificou Chapin, biógrafo de Dumont. “Um inventava uma coisa ali, outro acrescentava um novo elemento, até o negócio decolar”, acrescentou. No caso do 14 Bis, de Dumont, o brasileiro misturou invenções alemãs, francesas e americanas (incluindo dos Wright) para criar sua máquina voadora.

Assim como ele emprestava seus inventos (em opção que hoje seria tido como bem contemporânea, mas vista como inocente no início do século XX), sem cobrar pelas patentes, a colegas aviadores. Todos esses, por exemplo, devem muito a outro brasileiro, Bartolomeu Lourenço de Gusmão – que, em 1709, demostrou à corte portuguesa o funcionamento de seu invento, o balão.

Entretanto, o povo adora ter 1 inventor. Somente 1. Não 2, 3, 4… Cai bem para os livros de história, certo? Se for assim, Dumont é o nome. Não Clément Ader, muito menos os Wright. Na reportagem da Revista VEJA, destacam-se infográfico que comprovam o ineditismo do brasileiro.

Primeiro, por que não Ader, que, em termos de datas, seria o pioneiro:
— não se sabe se as aeronaves dele eram dirigíveis (ou seja, se podiam ser guiadas ou se voavam sem controle);
— nem se podiam decolar e pousar sozinha;
— muito menos se eram seguras;
— e, isso tudo, por ele não ter feito exibições públicas ou, ao menos, a comissões de especialistas em aviação (requisitos para qualquer experimento científico que se preze).

Aí, no início da década de 1910, criaram-se as regras claras para o que seria definido, afinal, como um avião (ninguém tinha visto um, logo era impossível saber ao certo):
1º Deveria decolar por meios próprios, sem o uso do impulso do vento ou de outros aparelhos;
2º Precisaria voar ao menos 100 metros, sem acidentes;
3º O pouso (e, também, a decolagem) tinha de ser em terreno plano e horizontal, novamente sem ajuda externa ;
4º Caberia a uma comissão de especialistas observar e avaliar o feito.

“Funcionava como na Olimpíada”, pontuou o biógrafo Henrique Lins de Barros. “Se o Usain Bolt corre, mais rápido que qualquer um, 100 metros, na frente do público, em evento especial, acompanhado por pessoas que medem a performance, atesta-se a façanha e ela vira um recorde”, completou. “Agora, se um atleta diz, só diz, que foi bem mais veloz correndo 100 metros na frente de sua casa, sem testemunhas que valham, além de familiares, amigos e afins… isso não vale”.

Os Wright se encaixam na segunda categoria. A começar, a único prova de que eles voaram antes vieram deles mesmo, num telegrama. De testemunha, só tinham familiares e funcionários contratados pela dupla. Nada de especialistas, a não ser os próprios Wright. Ainda assim, eles demoraram anos para avisar ao mundo que teriam cumprido com o objetivo.

Alguns defendem que o sigilo se devia a quererem vender o projeto. Pois bem, a maior organização francesa de aviação ofereceu uma fortuna para que eles o demonstrassem em público. Recusarem. Na sequência, contudo, aceitariam vender, por bem menos, o projeto, para a mesma instituição (que não quis). Só que havia um grande “porém”, no período: o avião deles só decolaria ou com um impulso externo (como uma catapulta), ou com a ajuda de um vento a 40 quilômetros por hora (a exemplo de um planador), como se fez na primeira viagem deles, em 1903.

Ou seja, o aparelho dos Wright não atendia aos critérios científicos estabelecidos. Indo além, dentro das especificações, não seria muito distinto dos que Clément Ader alegava (assim como alegavam os Wright) ter fabricado, bem antes. Os americanos, portanto, equivaleriam a um atleta que diz, só diz, ter superado Bolt, às escondidas, correndo em frente a amigos.

# Em 2003, americanos tentaram reproduzir o voo dos Wright, no vídeo deste link. Note como o Flyer dos irmãos só sai do chão, por pouquíssimo tempo, com a ajuda de um vento a 30 quilômetros por hora (no caso de Dumont, essa não era uma necessidade, pois a máquina decolava com o torque do próprio motor) #

Mesmo assim, termino retomando a ideia inicial: na real, não existe um pai da inovação. Tratou-se de uma colaboração colaborativa. Agora, se é para entrar nos livros de história, o mérito é de Dumont. Ponto. Assim como uma glória bem maior dele: a de, cinco anos antes, em 1901, ter sido o primeiro ser humano a realmente controlar um objeto voador, circundando a Torre Eiffel com seu dirigível nº 6.

Aceitem, brasileiros. Essa honra – e o polêmico herói que a fez – nos pertence.

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