Sérgio de Oliveira Netto
Procurador Federal. Mestre em Direito Internacional (Master of Law), com
concentração na área de Direitos Humanos, pela American University – Washington College of Law. Especialista em Direito Civil e Processo Civil. Professor do Curso de Direito da Universidade da Região de Joinville – UNIVILLE (SC).
RESUMO: Este trabalho analisa a questão referente às normas que autorizaram o abate de aeronaves que sejam consideradas hostis, no período da Copa do Mundo.
Desde o ano de 1998 que está em vigor no Brasil, a permissão legal para o abate de aeronaves consideradas hostis. Esta disposição foi adiciona ao art. 303, do Código Brasileiro de Aeronáutica, que passou a constar com a seguinte redação:
Da Detenção, Interdição e Apreensão de Aeronave
Art. 303. A aeronave poderá ser detida por autoridades aeronáuticas, fazendárias ou da Polícia Federal, nos seguintes casos:
I – se voar no espaço aéreo brasileiro com infração das convenções ou atos internacionais, ou das autorizações para tal fim;
II – se, entrando no espaço aéreo brasileiro, desrespeitar a obrigatoriedade de pouso em aeroporto internacional;
III – para exame dos certificados e outros documentos indispensáveis;
IV – para verificação de sua carga no caso de restrição legal (artigo 21) ou de porte proibido de equipamento (parágrafo único do artigo 21);
V – para averiguação de ilícito.
§ 1° A autoridade aeronáutica poderá empregar os meios que julgar necessários para compelir a aeronave a efetuar o pouso no aeródromo que lhe for indicado.
§ 2° Esgotados os meios coercitivos legalmente previstos, a aeronave será classificada como hostil, ficando sujeita à medida de destruição, nos casos dos incisos do caput deste artigo e após autorização do Presidente da República ou autoridade por ele delegada. (Incluído pela Lei nº 9.614, de 1998)
Foi necessário esperar seis longos anos para que, enfim, fossem editados os mecanismos regulamentadores. Disciplinando os procedimentos para a realização do chamado “tiro de destruição.”
Veio, então, o Decreto n° 5.144/04, que “…estabelece os procedimentos a serem seguidos com relação a aeronaves hostis ou suspeitas de tráfico de substâncias entorpecentes e drogas afins, levando em conta que estas podem apresentar ameaça à segurança pública” (art. 1o). Os arts. 5° e 6°, descreve o modus operandi para a realização do abate da aeronave hostil, nos seguintes termos:
Art. 5o A medida de destruição consiste no disparo de tiros, feitos pela aeronave de interceptação, com a finalidade de provocar danos e impedir o prosseguimento do vôo da aeronave hostil e somente poderá ser utilizada como último recurso e após o cumprimento de todos os procedimentos que previnam a perda de vidas inocentes, no ar ou em terra.
Art. 6o A medida de destruição terá que obedecer às seguintes condições:
II – registro em gravação das comunicações ou imagens da aplicação dos procedimentos;
III – execução por pilotos e controladores de Defesa Aéreaqualificados, segundo os padrões estabelecidos pelo COMDABRA;
IV – execução sobre áreas não densamente povoadas e relacionadas com rotas presumivelmente utilizadas para o tráfico de substâncias entorpecentes e drogas afins…
Entrementes, também foi necessário promover a modificação do Código Penal Militar, para o especial fim de trazer para a competência da Justiça Militar, os eventuais julgamentos sobre casos envolvendo a interceptação e destruição de aeronaves[1].
Pois, do contrário, se não fosse efetivada esta modificação, os pilotos da Força Aérea Brasileira, e todos os demais envolvidos na missão, teriam que ser processados e julgados pelo Tribunal do Júri da Justiça Comum, na hipótese de ser considerado que a missão de interceptação e destruição da aeronave foi feita em desconformidade com os parâmetros legais de regência. Fato que, além de trazer intranquilidade aos envolvidos nestas missões (pois os jurados do conselho de sentença poderiam não ter a exata dimensão de todos os aspectos inerentes à uma operação militar tensa como esta), também poderia comprometer interesses de segurança nacional.
Posto que, num julgamento perante o Tribunal do Júri da Justiça Comum, teriam que ser dados detalhes dos sistemas operacionais, capacidades bélicas e outros assuntos que não podem ser abertamente revelados. Porque exporiam o sistema de segurança nacional, e poderiam ser utilizados por organizações criminosas, que pretendessem se esquivar deste sistema proteção da nação.
Descrito este contexto, surge, agora, nova preocupação das autoridades militares, no que concerne à denominada Lei do Abate durante o período da Copa do Mundo de 2014. Isto porque, toda a normatização está direcionada para o abate de aeronaves realizado em regiões de fronteira, longe dos grandes conglomerados urbanos. Bem como porque os dispositivos legais conduzem ao entendimento de que somente as Força Aérea Brasileira (FAB) estaria autorizada a efetivar o “tiro de destruição.”
Todavia, na Copa do Mundo de 2014, não apenas a Força Aérea Brasileira, mas também o Exército e a Marinha, participarão do esquema de segurança. E também estarão nos locais de realização dos jogos da COPA com baterias antiaéreas (artilharia antiaérea) em terra e no mar, com capacidade para derrubar aeronaves consideradas hostis.
Diante deste contexto, surgem as seguintes indagações: a) somente os pilotos da aeronáutica estão autorizados a abater aeronaves hostis, ou também a Marinha e o Exército, poderão efetuar o “tiro de destruição”; b) o abate destas aeronaves poderá ocorrer, por exemplo, nas proximidades dos locais de realização dos jogos da COPA (que são, em geral, áreas urbanas densamente povoadas), se por acaso uma aeronave for considerada hostil, e estiver se dirigindo para estes estádios de futebol.
Uma leitura superficial dos comandos legais acima transcritos, pode levar ao entendimento de que o abate da aeronave hostil poderia, sem dúvida, ser também realizado pela Marinha e pelo Exército, assim como sobre áreas urbanas. Posto que, uma vez classificada como hostil, e se a aeronave tiver ingressado nas áreas de exclusão de voos (divididas imaginariamente em várias camadas – tendo como ponto de referência o local da realização dos jogos), os militares estariam autorizados a efetuar o tiro de destruição.[2]
Ocorre que, uma análise mais aprofundada destes textos legais, revelará que esta permissão não está expressa na lei. E, por conseguinte, dependeria de manobras hermenêuticas para se extrair este conteúdo da norma.
A preocupação dos militares, com razão, é com a hipótese de haver a real necessidade de abater uma aeronave, com o uso de artefatos bélicos não apenas da FAB, mas também da Marinha ou do Exército, e pior, sobre áreas urbanas, densamente habitadas.
O perímetro mais distante da zona de exclusão, segundo o esquema de segurança montado, é de 7.2Km do local do jogo. Ora, um pequeno avião consegue facilmente imprimir uma velocidade aproximada de 300km por hora, ou mais. Numa velocidade destas, em poucos segundos, se não interceptado, este avião já estaria nas proximidades do estádio de futebol.
Os militares, então, ficariam com a responsabilidade de abater esta aeronave (na hipótese de não terem sido bem sucedidas as contramedidas dissuasórias, como o tiro de advertência com munição luminosa, ou os contatos via rádio).
Mas, sabendo destes percalços jurídicos anteriormente mencionados, pode ser que o militar, que deve executar a missão, vacile por alguns instantes, até que efetue os disparos necessários para abater a aeronave (receoso, obviamente, das consequências legais deste seu ato, diante da situação normativa imprecisa disciplinadora da matéria). Estes segundos podem ser preciosos, e se houver uma real má intenção do piloto da aeronave hostil, poderia ser o suficiente para lhe dar a oportunidade de arremessar seu avião sobre o local dos jogos.
Ou seja, se o militar da Marinha ou Exército derrubar a aeronave, poderá ser posteriormente questionado, pois não era da Aeronáutica. E mesmo que fosse da Aeronáutica, poderia enfrentar acusações, por ter causado a queda de um avião em zona densamente povoada (ao contrário ao que dispõe a legislação).
E ainda, se eventualmente o militar encarregado da interceptação não efetuar o tiro de destruição, e houver um ataque terrorista, o militar poderá ser responsabilizado por omissão. Por não ter efetuado a interceptação da aeronave hostil.
Noutros dizeres, caberia ao Presidente da República, que editou o decreto regulamentador, fazer a correção do seu texto, por meio de novo decreto. De maneira a elucidar estas questões, e a assumir a responsabilidade pelo que possa acontecer.
O que não se pode admitir, é que esta omissão do Presidente da República comprometa o esquema de segurança (e a vida de inocentes), e possa gerar responsabilização dos militares envolvidos na missão. Que ficariam expostos a eventuais responsabilizações, diante das incertezas jurídicas geradas pela regulamentação da Lei do Abate.
Art.9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:
…
Parágrafo único. Os crimes de que trata este artigo quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil serão da competência da justiça comum, salvo quando praticados no contexto de ação militar realizada na forma do art. 303 da Lei no 7.565, de 19 de dezembro de 1986 – Código Brasileiro de Aeronáutica. (Redação dada pela Lei nº 12.432, de 2011)
As áreas de exclusão aérea serão ativadas somente nas cidades-sede e tem sua ativação de acordo com horário do início do jogo:
· Para a abertura e encerramento, as áreas serão ativadas três horas antes e quatro horas após o início do jogo.
· Para os jogos da primeira fase da competição, o tempo de restrição será de uma hora antes e três horas depois.
· Nas demais fases, uma hora antes e quatro horas depois.
…
Aeronaves envolvidas nas ações de defesa aérea – Aeronaves de caça F-5M de alta performance e de ataque leve A-29 Super Tucano, helicópteros AH-2 Sabre e o H-60 Black Hawk da Força Aérea Brasileira serão usados diretamente para as ações de defesa aérea. As aeronaves estarão voando em todas as cidades-sede, durante a ativação das três áreas de exclusão aérea (proibida, restrita e reservada). Aviões-radar E-99, que executa alerta aéreo antecipado, também voarão durante o período. O sistema de defesa aeroespacial também inclui a artilharia antiaérea da Marinha, do Exército e da Força Aérea Brasileira. “A defesa aérea trabalha em camadas, em cada uma há uma ferramenta”, explicou o Chefe do Estado-Maior do COMGAR.
Caso uma aeronave entre em uma das áreas de exclusão, serão tomadas medidas de policiamento aéreo com a finalidade de averiguar a identidade da aeronave, forçá-la a modificar sua rota e persuadi-la a obedecer as ordens da defesa aérea. Essas medidas começam a valer ainda na área branca, cuja distância do estádio pode ultrapassar os 100 km.
Atualmente, o decreto 5.144 de julho de 2004, que rege o artigo 303 do Código Brasileiro de Aeronáutica, possibilita a FAB executar a lei do tiro de detenção, mas tem limitação. Concebida para combater tráfegos ilícitos na fronteira seca, a lei precisaria ser alterada para atender as peculiaridades do evento, incluindo também a artilharia antiaérea das Forças Armadas. “A proposta de minuta de um novo decreto já foi enviada pelo Comando da Aeronáutica ao Ministério da Defesa”, informou o Major-Brigadeiro…
Disponível em: http://www.fab.mil.br/noticias/mostra/18005/COPA—Aeronáutica-esclarece-medidas-de-restrição-de-voos-nas-cidades-sede