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A função interacional dos brados de guerra

Ten Cel QCO Daniela Bruno Corbari Corrêa

Existe uma prática comunicativa bastante comum entre militares de Forças Armadas de diversos países do mundo. A mesma prática é verdadeira no Exército Brasileiro: a utilização de brados de guerra durante os intercâmbios interacionais. Inúmeros brados são adotados na caserna.

A adoção destes ou daqueles, a meu ver, nada tem de arbitrária, dependendo, entre outros aspectos, da identidade do grupo que os usa. Há brados característicos dos integrantes de determinadas tropas, como a de montanha, por exemplo.

Algumas organizações militares, assim como as unidades subordinadas ao Comando Militar da Amazônia; a Brigada de Infantaria Pára-quedista, no Rio de Janeiro; os Regimentos e Esquadrões de Cavalaria por todo o Brasil; o Comando de Operações Especiais, em Goiânia, entre outros, adotam seus brados característicos, que, com o passar dos anos, tornam-se parte das tradições e até mesmo da história de cada organização militar. Tomemos como exemplo o brado “BRASIL”.

Ele é usado em inúmeras situações interacionais, parecendo “substituir” uma fala menos opaca, aparentemente mais lógica ou compreensível aos que não fazem parte do grupo. “BRASIL!” é enunciado em cumprimentos entre militares do tipo “Bom dia”, “Boa tarde”. Igualmente parece ser usado no lugar de “Obrigada”, “De nada”, “Vamos lá!”, “Força!”, “Ânimo”, “Sim, senhor”, “Não, senhor”, “Estou bem”, “Estou mal”, “BRASIL!”.

O mesmo brado faz-se ouvir também como resposta a qualquer ordem recebida (“Tenente, reúna todos os homens do seu pelotão e cerre comigo em 5 minutos”), além de ser proferido como exclamações mediante fatos e acontecimentos surpreendentes, positivos ou não (“FO negativo pra você!”). “BRASIL!” poderia ser proferido e “entendido” tanto como pronta resposta a uma ordem, quanto como resposta a uma simples colocação em uma conversa entre pares, do tipo expressão de contentamento ou descontentamento, para concordar ou discordar, repreender, gratificar, elogiar, para conferir um tom jocoso ou um tom sério à interação.

Enfim, parafraseando o filósofo Derrida, quando se referia à desconstrução (“Desconstrução é tudo”): “BRASIL!” é tudo. Atentemos, porém, para um intrigante “senão” cético que ameaça a legitimidade dos brados de guerra da caserna.

Já que a mesma forma de expressão pode ser proferida em uma infinidade de situações interacionais, tomando significados por vezes antagônicos, é seguro que justamente em interações baseadas nos pilares da hierarquia e da disciplina, em que impera a certeza da verdade, fiar-se no brado?

O brado realmente funciona nas interações mesmo com todo o deslizamento de sentido que oferece dadas as diferentes e contraditórias situações em que é empregado?

Eles constroem verdades, mundos e identidades ou apenas denotam o enfeitiçamento do qual a linguagem é capaz? Não seria o brado uma ilusão para conferir identidade a quem o usa?

Em artigo com o mesmo título do texto deste blog, ofereço um estudo detalhado do caso das interações com brados de guerra. Nele, examinei a dicotomia entre o pensamento cético e o pensamento essencialista sobre a linguagem, buscando, em Wittgenstein, uma perspectiva alternativa que permita superar essa oposição binária.

A íntegra do artigo poderá ser consultada tão logo seja publicada em periódico da AMAN. Por hora, ofereço o texto sobre o qual meu leitor se debruça. O ceticismo linguístico é a descrença na potência da linguagem como um lugar de compreensão.

Diferentemente da ideia dos filósofos essencialistas, o ceticismo linguístico postula que a linguagem não se presta a dizer nem o real nem a verdade, já que sobre “real” e “verdade” também paira a dúvida cética.

Posto que a descrença na potência da linguagem como lugar para a compreensão tem sido, ao longo da história, uma sombra nos espectros epistemológico e ontológico de “certezas”, volto ao estudo de caso em questão. Ao observar mais atentamente as interações nas quais o brado de guerra é enunciado, tal discussão faz-se bastante oportuna.

Sendo tão fluido a ponto de adaptar-se a enquadres antagônicos, qual fosse líquido ou gasoso, o “poder de fogo” comunicativo do brado de guerra pode denunciar a desconfiança em relação à linguagem, trazendo tal dúvida às trincheiras deste trabalho.

Assim, respeito a posição do cético e, para não ocorrer em argumentos que trivializam esta posição, ofereço a seguir uma leitura cética do caso que estudo. Parafraseando Oswaldo Porchat, ao duvidar dos discursos das filosofias, é natural, então, que eu seja tentada a ver nessas interações com brados de guerra meros jogos de palavras, jogos engenhosos e complicados, mas que, uma vez analisados, não posso mais levar a sério.

Brados de guerra seriam brinquedos com a linguagem usados por pessoas enfeitiçadas e seduzidas pela ilusão que tais brinquedos criam. Na visão do cético, as interações com brados de guerra constituem “o teatro do parecer ser” proporcionado pelo feitiço que a palavra evoca. Qualquer sentido que o brado pudesse trazer seria aparência, ilusão de comunicação, compreensão ou entendimento.

Esta peça teatral encenaria um mundo, de acordo com Montaigne, em “Apologia a Raymond Sebond”, criando uma espécie de redoma. Segundo este filósofo, a verdade (e também a verdade do brado) estaria muito distante e nosso conhecimento acerca dela estaria submetido à fragilidade dos nossos sentidos e paixões.

Como confiar na verdade evocada por um brado de guerra que ao ser enunciado traz consigo as almas apaixonadas dos que o pronunciam, pessoas iludidas por seus próprios sentidos?

Que razão, afinal, podem oferecer interações mediadas pelos sentidos e pelas emoções humanas? A posição cética gera, assim, verdadeiro terror. Aceitá-la placidamente na contemporaneidade, momento em que a linguagem é o alvo desta artilharia de dúvidas, seria o mesmo que nos perder na deriva interpretativa da literatura, de tudo o que é escrito ou falado.

A deriva interpretativa levaria também ao relativismo moral, uma vez que não haveria crédito para a interpretação de leis ou códigos de conduta. Na filosofia da ciência, observaríamos a precariedade da verdade científica.

Na teoria antropológica, as dúvidas sobre o que vem a ser uma cultura impediriam qualquer estudo de ser realizado. O cético gera o caos. Certo é, porém, que o brado funciona, sim! O brado tem valor real nas interações entre militares.

Proponho aqui uma visão sinóptica da linguagem, isto é, ao estudar as interações entre militares com atenção aos brados de guerra por eles enunciados, todas as respostas de que preciso para entender o que se passa só poderão ser encontradas na interação em si. Nada precisa ser buscado fora do jogo, pois nada existe que não no jogo.

Qual um jogo, a linguagem da caserna também possui regras constitutivas. Regras interacionais, regras da conversação, culturalmente combinadas, contextuais e situadas. As possibilidades de utilização do brado “BRASIL!” são infinitas, porém, devem obedecer a uma regra conversacional para que possam fazer sentido.

Uma vez capaz de usar o brado em uma interação, são sabidas as regras e já se compreende todo o sistema, isso porque os jogos de linguagem estão imersos em nossa forma de vida.

As formas de vida são as práticas de uma determinada comunidade linguística, como é o caso da comunidade formada por militares de um mesmo quartel, que conseguem se comunicar e dar novos lances nos jogos de linguagem combinados no fluxo da vida de suas comunidades interpretativas.

O que se vê é que os brados de guerra funcionam nos jogos de linguagem em que são empregados. Nesta comunidade interpretativa, a caserna, os brados soam pertinentes e fazem sentido para aqueles que os proferem envolvidos nas interações.

Os membros da caserna parecem se entender, ou parecem interpretar, sem maiores dificuldades, o significado do brado em suas infinitas possibilidades de enunciação, prosseguindo na interação, sendo capazes de dar o outro lance neste jogo de linguagem.

O brado, ainda que seu sentido seja deslizante, fluido ou mutante, funciona em qualquer interação, confere identidade, sensação de pertencimento, reforça e mantém laços e espírito de corpo, condição fundamental para a sobrevivência de qualquer instituição cujos pilares baseiam-se em valores socialmente construídos.

O signo linguístico, no corpo do brado de guerra, faz reverberar a ideologia institucional. Funciona como catarse em momentos de vibração da tropa. Ressoa imputando valores e qualidades a quem o pronuncia. A enunciação do brado traz consigo uma realidade ideológica que não pode calar, que exige ser ouvida.

O brado religa visões de mundo, consciências, ideologias, identidades; religa também as partes constituintes de organizações socioculturais, estruturações político-econômicas, modos de vida e sistemas pedagógicos. Por ser signo, o brado constitui um instrumento racional e vivo da sociedade em foco, é epifania ideológica cada vez que é pronunciado.

Brados de guerra proporcionam, no mínimo, trocas interacionais, construindo pontes interpessoais valiosas entre comandantes e comandados, entre pares. O Brado é uma ferramenta linguistica a ser empregada de forma perspicaz pelo líder. Brado, logo existo! Brados, assim entendidos, livram-nos de um solipsismo que abriria abismos epistemológicos e ontológicos.

E isso já seria o bastante quando o que se pretendia investigar era a potência da linguagem como lugar para o entendimento. Afinal, ceticismo em excesso também é uma forma de crendice. Como diria Wittgenstein, há que se chegar à rocha dura. “BRASIL!”

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