Tahiane Stochero
Mais de cinco anos após pacificar Cité Soleil, área considera pela Organização das Nações Unidas (ONU) como a mais pobre e violenta do Haiti, o Exército brasileiro voltou, em agosto deste ano, a enfrentar grupos armados. Em um dos tiroteios, soldados do Mato Grosso do Sul ficaram encurralados e tiveram que realizar 20 disparos de fuzil, o que não ocorria desde 2007.
Cité Soleil é reduto de rebeldes que apoiavam o ex-presidente Jean Bertrand-Aristides, e se tornou conhecida internacionalmente como uma "fortaleza" onde grupos armados impunham terror à população. Foi a queda de Aristides, em 2004, durante um princípio de conflito civil, que fez a ONU criar a missão de paz para estabilizar o país caribenho (chamada de "Minustah") O Exército brasileiro comanda a Minustah e possui o maior efetivo – cerca de 1.300 soldados – e é responsável por cuidar de Cité Soleil.
Entre 2006 e 2007, uma série de operações, comandadas pelo Brasil, prenderam e mataram vários criminosos. Desde então, a Polícia Nacional Haitiana (PNH) começou a atuar na região. A situação de relativa tranquilidade acabou entre junho e agosto de 2013. Diante da indefinição de um cronograma para as eleições, que devem ser realizadas em 2014 para o Senado e as prefeituras, grupos armados apoiados por grupos políticos voltaram a se enfrentar em Cité Soleil, preocupando a ONU.
Os assassinatos, considerados raros até então, passaram a ser frequentes. Foram de 5 a 10 por semana em uma área de 5 km quadrados. Corpos decapitados, comuns entre 2004 e 2007, voltaram a ser encontrados nas ruas, e tiros ouvidos todas as noites pelos 140 soldados brasileiros, que são originários de Mato Grosso do Sul e estão morando dentro da favela.
Um dos confrontos ocorreu quando 16 soldados brasileiros ficaram encurralados em Boston, uma das áreas disputadas pelos criminosos. “Eu dei o primeiro tiro”, diz o capitão Victor Bernardes Faria, de 32 anos, que comanda a companhia do Brasil em Cité Soleil.
Ele estava junto com os soldados em uma patrulha à noite quando a troca de tiros entre as gangues começou.
“Vi um homem de longe apontando uma arma na minha direção e depois vi o clarão do disparo dele”, conta o oficial, que estava com mais 8 soldados em um beco de uma rua. Mais à frente, na mesma rua, um sargento que comandava o restante do grupo também foi alvo de tiros e revidou.
O comandante lembra ter orientado o subordinado a não avançar, pois os bandidos estavam logo a frente e, se seus soldados saíssem do local onde estavam abrigados, estariam em perigo.
Faria pediu apoio de blindados dos Fuzileiros Navais e do Destacamento de Operações de Paz (DOPaz), a tropa de elite que o Exército possui no Haiti para ações de risco, para resgatar os soldados encurralados.
“Por sorte nenhum dos meus homens ficou ferido. Nossa maior preocupação é com efeito colateral (feridos ou mortos civis nos confrontos). Mas os soldados foram treinados e só atiram quando conseguem identificar e ver o alvo (um suspeito)”, afirma o capitão.
Estes foram os primeiros disparos reais na vida do oficial, que trabalha no 47º Batalhão de Infantaria, em Coxim, no Mato Grosso do Sul. Casado e sem filhos, Faria acredita que os disparos não foram direcionados contra a tropa do Brasil, mas sim, de um confronto entre os bandidos.
Ao contrário de 2007, quando a ONU autorizava o Exército a ter ações pró-ativas e atacar as gangues, hoje esta responsabilidade é da polícia haitiana. O Brasil só dá o apoio necessário. A ONU fez uma investigação sobre o caso e, segundo o capitão, encontrou cartuchos de fuzis e pistolas no local do confronto, tanto usados pelo Exército brasileiro quanto pelos criminosos.
População diz que violência voltou
“Os brasileiros entraram aqui em Cité Soleil em 2006 e 2007 e pacificaram, prenderam todos os bandidos. Antes a violência era ruim, os criminosos atiravam todas as noites, a gente não podia sair de casa. Os brasileiros acabaram com aquilo. Agora que os brasileiros passaram para nossa polícia agir, a situação voltou a piorar. Todos os dias os bandidos atiram aqui”, diz o aposentado Merat Jean, de 57 anos, que mora em Boston, área disputada por gangues.
Para poder patrulhar a região à noite, o Exército colocou em postes lâmpadas que são alimentadas por energia solar. O país não possui um sistema de distribuição de energia elétrica e boa parte da capital, Porto Príncipe, fica às escuras à noite.
A tropa brasileira é chamada diariamente para atender casos de brigas – algumas acabam em morte ou ferimentos graves, provocados por pedras e facas. "A população ainda não confia na PNH. O efetivo deles aqui é pequeno, são 6 a 8 policiais por dia, um carro e eles não fazem patrulhamento nas ruas. As pessoas confiam nos brasileiros para passar informações, mesmo a base da polícia sendo aqui do meu lado", diz o capitão.
"Mas agora a missão mudou e minhas tropas não podem atacar os bandidos, sou a terceira opção. Temos sempre que deixar a polícia haitiana e a polícia da ONU atuarem primeiro", acrescenta ele.
A previsão da ONU, conforme o comandante da Minustah, general brasileiro Edson Pujol, é que a missão chegue a cerca de 3.300 militares em 2016. Os soldados brasileiros devem ser os últimos a deixar a missão, que conta com tropas de 19 países.
"Estamos aqui basicamente para ajudar a PNH a manter um ambiente seguro para que as organizações tanto internas quanto externacionais possam trabalhar. Acho difícil chegar em 2016 e tirar toda a tropa, isso vai ser avaliado anualmente. Vai depender das condições do país de se autogerenciar. No caso da segurança, em especial as condições da polícia de assumir as responsabilidades", aponta.