Das Forças Armadas e do Poder Judiciário sob o Prisma dos Discursos Presidenciais Durante a Era Vargas e a República Populista
The Armed Forces and the Judiciary in the Brazilian Presidential Speeches during President Getúlio Vargas' Government and the Populist Republic
Reis Friede[1]
Resumo:
O presente artigo objetiva analisar os discursos presidenciais proferidos durante a Era Vargas e a República Populista, de modo a verificar como se operou a evolução do status institucional das Forças Armadas e do Poder Judiciário naquelas quadras, bem como identificar como se dava o pretérito emprego das Forças Armadas como instrumento de estabilização política.
Palavras-chave:
Forças Armadas. Poder Judiciário. Estabilização política.
Abstract:
The goal of the current article is to analyze the Brazilian Presidential Speeches during President Getúlio Vargas' Government and the Populist Republic, aiming to verify how the evolution of the institutional status of the Armed Forces and the Judiciary developed on that period, as well as to identify how the Armed Forces were deployed as an instrument of political stabilization back then.
Keywords:
Armed Forces. Judiciary. Political Stabilization.
1. Introdução.
A construção do presente artigo partiu de uma premissa: a de que os discursos, notadamente aqueles articulados por ocasião da assunção do mandato presidencial, abarcam, representam e refletem parte da história nacional, o que nos inspirou a analisar os pronunciamentos presidenciais realizados durante a Era Vargas e a República Populista.
Nesse sentido, FERNANDOLYRA, então Deputado Federal, na qualidade de líder do antigo Movimento Democrático Brasileiro(MDB), em discurso publicado no Diário do Congresso Nacional de 2 de abril de 1975, afirmou que os discursos, como testemunhos de uma época, “integram o acervo histórico de qualquer povo civilizado, valendo como fonte das mais originais e autênticas para fixar o grau de desenvolvimento político”. (BRASIL, 1975, p. 2)
Tendo em vista o escopo a ser alcançado pelo texto ora introduzido, a empreitada limitou-se a identificar, fragmentar e analisar, especificamente, o ponto de vista dos Presidentes da República dos aludidos períodos em relação às Forças Armadas e ao Poder Judiciário, de modo a buscar informações que possibilitassem verificar a respectiva trajetória institucional em momentos pretéritos.
Obviamente, como não poderia deixar de ser, permitimo-nos, em alguns momentos, extrair certas inferências dos fragmentos textuais transcritos, para, em seguida, consignar a nossa própria observação acerca dos fatos, tudo historicamente relacionado com o tema de fundo abordado no trabalho.
2. Dos Discursos da Era Vargas.
Na campanha presidencial de 1929, o então Presidente WASHINGTON LUÍS confere apoio a JÚLIO PRESTES (Presidente do Estado de São Paulo), candidato a Presidente, bem como a VITAL SOARES (Presidente do Estado da Bahia), pretendente ao cargo de Vice, rompendo, assim, com a denominada política do café com leite, numa alusão ao predomínio, respectivamente, de paulistas e mineiros no comando da República.
Os Presidentes dos Estados de Minas Gerais (ANTÔNIO CARLOS RIBEIRO DE ANDRADA), da Paraíba (JOÃO PESSOA) e do Rio Grande do Sul (GETÚLIO VARGAS) não concordam com a mencionada ruptura e lançam este último como candidato, bem como JOÃO PESSOA a Vice, apoiados, inclusive, pelo Tenentismo, movimento político-militar surgido na década de 1920.
JÚLIO PRESTES sagra-se vencedor nas eleições, mas sob protestos da oposição, que denuncia ter havido fraude eleitoral. Os Ministros das Forças Armadas, em 24 de outubro de 1930, depõem WASHINGTON LUÍS e impedem a posse do eleito (JÚLIO PRESTES). Em seguida, a Presidência é assumida (sem registro de investidura no livro de posse) por uma Junta Governativa (composta pelos Generais TASSO FRAGOSO e MENNA BARRETO, e pelo Almirante ISAÍAS DE NORONHA), sendo o Governo Provisório entregue, em 3 de novembro de 1930, a GETÚLIO VARGAS, o qual, obviamente, faz referências elogiosas ao movimento por ele liderado (e apoiado pelas Forças Armadas):
O Rio Grande do Sul, ao transpor as suas fronteiras, rumo a Itararé, já trazia consigo mais da metade do nosso glorioso Exército. Por toda parte, como, mais tarde, na Capital da República, a alma popular confraternizava com os representantes das classes armadas, em admirável unidade de sentimentos e aspirações. […].
Quando, nesta cidade, as forças armadas e o povo depuseram o Governo Federal, o movimento regenerador já estava, virtualmente, triunfante em todo o País. A Nação, em armas, acorria de todos os pontos do território pátrio. […].
Os resultados benéficos dessa atitude constituem legítima credencial dos vossos sentimentos cívicos: integrastes definitivamente o restante das classes armadas na causa da Revolução; poupastes à Pátria sacrifícios maiores de vidas e recursos materiais, e resguardastes esta maravilhosa Capital de danos incalculáveis.
Justo é proclamar, entretanto, senhores da Junta Governativa [Junta Militar], que não foram somente esses os motivos que assim vos levaram a proceder. Preponderava sobre eles o impulso superior do vosso pensamento, já irmanado ao da Revolução. Era vossa também a convicção de que só pelas armas seria possível restituir a liberdade ao povo brasileiro, sanear o ambiente moral da Pátria, livrando-a da camarilha que a explorava, arrancar a máscara de legalidade com que se rotulavam os maiores atentados à lei e à justiça – abater a hipocrisia, a farsa e o embuste. E, finalmente, era vossa também a convicção de que urgia substituir o regime de ficção democrática, em que vivíamos, por outro, de realidade e confiança. […].
Resumindo as ideias centrais do nosso programa de reconstrução nacional, podemos destacar, como mais oportunas e de imediata utilidade: […].
remodelação do Exército e da Armada, de acordo com as necessidades da defesa nacional; […].
reorganização do aparelho judiciário, no sentido de tornar uma realidade a independência moral e material da magistratura, que terá competência para conhecer do processo eleitoral em todas as suas fases; […].
Assumo, provisoriamente, o Governo da República, como delegado da Revolução, em nome do Exército, da Marinha e do povo brasileiro, e agradeço os inesquecíveis serviços que prestastes à Nação, com a vossa nobre e corajosa atitude, correspondendo, assim, aos altos destinos da Pátria. (BONFIM, 2004, p. 190-194)
A preleção antes sintetizada bem retrata o pretérito, frequente e conveniente emprego Forças Armadas por parte da classe política, exatamente o que fez VARGAS. Essa relação quase que simbiótica fica por demais comprovada nas linhas acima, notadamente quando o ditador-mor da República proclama assumir o governocomo “delegado da Revolução”, e “em nome do Exército, da Marinha e do povo brasileiro”.
Posteriormente, VARGAS, eleito, nos termos do art. 1º das Disposições Constitucionais Transitórias, governaria o País durante o período de 20 de julho de 1934 a 10 de novembro de 1937. Próximo do final do mandato, em 30 de setembro de 1937, o Governo Federal denuncia a existência de uma suposta manobra (Plano Cohen) arquitetada pelos comunistas com vistas à usurpação do poder, divulgação que causou grande sobressalto popular.
Com efeito, em 11 de novembro de 1937, após um novo golpe, igualmente sustentado pelas Forças Armadas, GETÚLIO institui o denominado Estado Novo, permanecendo no governo até 29 de outubro de 1945, período caracterizado por uma acentuada centralização do poder, bem como por um profundo nacionalismo e anticomunismo. O papel das instituições militares, no contexto de 1937, encontra-se bem reproduzido no discurso de posse de VARGAS:
A investidura na suprema direção dos negóciospúblicos não envolve, apenas, a obrigação de cuidar e prover asnecessidades imediatas e comuns da administração. Asexigências do momento histórico e as solicitações do interessecoletivo reclamam, por vezes, imperiosamente, a adoção demedidas que afetam os pressupostos e convenções do regime,os próprios quadros institucionais, os processos e métodos degoverno. […].
Nos períodos de crise, como o que atravessamos, ademocracia de partidos, em lugar de oferecer seguraoportunidade de crescimento e de progresso, dentro dasgarantias essenciais à vida e à condição humana, subverte ahierarquia, ameaça a unidade pátria e põe em perigo aexistência da Nação, extremando as competições e acendendo ofacho da discórdia civil. […].
Por outro lado, as novas formações partidáriassurgidas em todo o mundo, por sua própria natureza refratáriasaos processos democráticos, oferecem perigo imediato para asinstituições, exigindo, de maneira urgente e proporcional àvirulência dos antagonismos, o reforço do poder central. Issomesmo já se evidenciou por ocasião do golpe extremista de1935, quando o Poder Legislativo foi compelido a emendar aConstituição e a instituir o estado de guerra, que, depois devigorar mais de um ano, teve de ser restabelecido porsolicitação das forças armadas, em virtude do recrudescimentodo surto comunista, favorecido pelo ambiente turvo doscomícios e da caça ao eleitorado. […].
Colocada entre as ameaças caudilhescas e o perigo dasformações partidárias sistematicamente agressivas, a Nação,embora tenha por si o patriotismo da maioria absoluta dosbrasileiros e o amparo decisivo e vigilante das forças armadas,não dispõe de meios defensivos eficazes dentro dos quadroslegais, vendo-se obrigada a lançar mão, de modo normal, dasmedidas excepcionais que caracterizam o estado de riscoiminente da soberania nacional e da agressão externa. Essa é averdade, que precisa ser proclamada, acima de temores esubterfúgios.
É necessidade inadiável, também, dotar as forças armadas de aparelhamento eficiente, que as habilite a assegurar a integridade e a independência do País, permitindo-lhe cooperar com as demais nações do Continente na obra de preservação da paz. […].
Circunstâncias de diversas naturezas apressaram o desfecho desse movimento, que constitui manifestação de vitalidade das energias nacionais extra-partidárias. O povo o estimulou e acolheu com inequívocas demonstrações de regozijo, impacientado e saturado pelos lances entristecedores da política profissional; o Exército e a Marinha o reclamaram como imperativo da ordem e da segurança nacional. […].
Prestigiado pela confiança das forças armadas e correspondendo aos generalizados apelos dos meus concidadãos, só acedi em sacrificar o justo repouso a que tinha direito, ocupando a posição em que me encontro, com o firme propósito de continuar servindo à Nação. (BONFIM, 2004, p. 212-221)
Cumpre anotar o que disse VARGAS: o Estado,mesmo diante do patriotismo da maioria absoluta dosbrasileiros e do amparo decisivo e vigilante das Forças Armadas,não dispunha “de meios defensivos eficazes dentro dos quadroslegais”, o que demonstra, de certa forma, que o Judiciário da época era incapaz de solucionar, nos termos das balizas constitucionais, as crises experimentadas pela República.
Em 29 de outubro de 1945, com a deposição de VARGAS pelas Forças Armadas, JOSÉ LINHARES, então Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), assume o Governo, exercendo-o até 31 de janeiro de 1946, cuja posse, registre-se, ocorreu não no Congresso Nacional, mas no Gabinete do Ministro da Guerra, o General GÓES MONTEIRO.
Cumpre registrar, por oportuno, que qualquer análise que se empreenda a respeito do emprego das Forças Armadas durante a Era Vargas passa, invariavelmente, por uma reflexão acerca da pessoa de GÓESMONTEIRO, personagem que retrata quão envolvida com a política eram as Forças Armadas daquela ocasião. Resumidamente, apenas para citar alguns dos episódios que contaram com a participação do referido militar:
Em julho de 1922, [GÓES MONTEIRO] cursava a Escola de Estado-Maior do Exército, no Rio de Janeiro, quando eclodiu na cidade o levante tenentista do Forte de Copacabana, ocasião em que se colocou ao lado da legalidade. No ano seguinte, assessorou o governo gaúcho no combate aos rebeldes federalistas que haviam se insurgido no estado. Por sugestão sua, foram criados os corpos provisórios, a brigada militar controlada pelo governo do Rio Grande do Sul, que viria ter grande importância em episódios posteriores da história do país. Participou também da repressão ao levante tenentista deflagrado em 1924, em São Paulo, e à Coluna Prestes, o exército guerrilheiro que combateu o governo de Artur Bernardes percorrendo cerca de 25 mil quilômetros pelo interior do país, sob a liderança de Luís Carlos Prestes.
Em 1930, assumiu o comando militar do movimento revolucionário articulado para depor o presidente Washington Luís, já que Luís Carlos Prestes havia recusado o convite que lhe fora feito nesse sentido pelos líderes da conspiração, Getúlio Vargas à frente. Dirigia, então, o 3º Regimento de Cavalaria Independente, em São Luís das Missões (RS). Após participar do início do movimento em Porto Alegre, comandou o deslocamento das tropas revolucionárias em direção à capital federal, tendo recebido a notícia da deposição de Washington Luís quando se preparava para penetrar no estado de São Paulo, principal reduto situacionista.
[GÓES MONTEIRO] Passou, então, a desfrutar de grande prestígio junto ao novo governo, integrando o chamado Gabinete Negro, pequeno grupo que se reunia quase diariamente com o presidente Vargas, influenciando nos passos iniciais do novo regime. Foi ainda incentivador da Legião Revolucionária e primeiro presidente do Clube 3 de Outubro, organizações que visavam conferir maior coesão à atuação política dos revolucionários, principalmente dos tenentes, seus antigos adversários da década anterior.
Em 1931, chegou ao generalato e foi designado comandante da 2ª Região Militar, sediada em São Paulo. Nesse cargo, envolveu-se intensamente nos conflitos pelo controle do governo paulista, travados entre os tradicionais políticos paulistas e os tenentes revolucionários, a quem apoiava. Em maio de 1932, foi afastado do comando da 2ª RM por pressão da Frente Única Paulista (FUP), frente política que aglutinava os setores da política paulista que faziam oposição à intervenção federal no estado. Entre os meses de julho e outubro seguintes, ocupou posição de destaque na repressão à insurreição armada deflagrada pelos paulistas contra o governo federal.
Ainda em 1932, participou da comissão que elaborou o anteprojeto constitucional que serviu de base aos trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte, eleita em 1933. Nomeado ministro da Guerra por Vargas, em 1934, sua gestão foi marcada por intenso envolvimento nas disputas políticas. Durante os trabalhos da Constituinte, alimentou expectativas de se eleger indiretamente à presidência da República, mas seu nome não obteve apoio entre os parlamentares, que preferiram conceder um mandato constitucional ao próprio Vargas.
Em maio de 1935, deixou o ministério, mas continuou exercendo grande influência no governo. Dele partiu a proposta de fechamento da Aliança Nacional Libertadora (ANL), frente política que reunia diversos setores de esquerda no combate ao fascismo e ao imperialismo. Em seguida, participou com destaque da repressão ao levante que setores da ANL promoveram em novembro de 1935. A seguir, mesmo sem ocupar qualquer cargo formal no governo, passou a ser um dos elementos centrais no processo de fechamento do regime, que teve seu desfecho no golpe que instalou a ditadura do Estado Novo, em novembro de 1937. Nos meses anteriores, havia assumido a presidência do Clube Militar, em janeiro, e o comando do Estado-Maior do Exército (EME), em julho.
Em 1939, foi enviado aos EUA em missão militar, que objetivava promover uma maior integração entre os dois países no momento em que se iniciava a Segunda Guerra Mundial. Essa aproximação, realizada de maneira lenta mas sistemática, resultou na declaração de guerra do Brasil às potências do Eixo, em 1942, e no envio de tropas brasileiras à Itália, em julho de 1944. Em dezembro de 1943, afastou-se da chefia do EME.
Em agosto de 1945, reassumiu o Ministério da Guerra e, nos meses seguintes, articulou o golpe que afastou Vargas do poder, em dezembro daquele ano. Manteve-se à frente do ministério até setembro de 1946, quando o novo governo, chefiado pelo general Dutra, já havia tomado posse.
Em 1947, elegeu-se senador por Alagoas, na legenda do Partido Social Democrático (PSD). Em 1950, recusou convite de Vargas para ocupar o posto de vice-presidente em sua chapa, na eleição presidencial daquele ano. Nesse mesmo ano, não conseguiu obter sua reeleição ao Senado. (Fonte: FGV CPDOC)
Em adição, uma matéria publicada no jornal A Batalha, de circulação no Rio de Janeiro, edição nº 660, de 25 de fevereiro de 1932, p. 8, relata com fidelidade o envolvimento do aludido militar com a política:
Novas declarações do general Góes Monteiro
Quando saía do apartamento do general Isidoro Lopes, depois da longa conversa que teve com esse militar, o general Góes Monteiro foi abordado pelos jornalistas, e, como sempre, respondeu a todos as perguntas que lhe eram feitas. Com referência à frente única paulista, disse o seguinte:
– “Para o Brasil, para São Paulo e para nós revolucionários, isso não interessa. Acredito que não haja força política em condições de impedir a realização dos ideais que determinaram a revolução e que estão consubstanciados no programa do Club 3 de outubro. A fusão dos dois partidos só nos interessaria se ela nos apresentasse como resultante de um consenso para transformar os dois organismos num partido nacionalista que encarasse os problemas vitais do Brasil, a principiar pelo econômico e pela eliminação de todos os vícios do passado, inclusive a destruição do espírito oligárquico, do espírito regionalista e antinacionalista etc.
Desde que eles se transformam noutro sentido não acreditamos que possam apresentar alguma consistência. Essa frente única ou outra qualquer nas mesmas condições é falha. O programa revolucionário, segundo as diretrizes dadas pelo Chefe do Governo Provisório nas suas alocuções, é nacionalista-socialista”. (A BATALHA, 1932, p. 8)
A matéria jornalística acima faz referência ao denominado Clube 3 de Outubro, ou seja, uma associação política criada em 1931, no Rio de Janeiro, por pessoas (civis e militares) ligadas ao Tenentismo Nacionalista, e que apoiavam o Governo Provisório de VARGAS, cuja primeira diretoria tinha GÓES MONTEIRO como Presidente, entre outras lideranças (PEDRO ERNESTO, OSWALDO ARANHA, AUGUSTO DO AMARAL PEIXOTO, TEMÍSTOCLES BRANDÃO CAVALCANTI e outros). Em síntese, o grupo em tela surgiu em decorrência de atritos travados entre as forças políticas que sustentavam VARGAS, Chefe do Governo Provisório. Na ocasião, havia, de um lado, os denominados Tenentes; de outro, pessoas ligadas às oligarquias dissidentes e que haviam escorado a Revolução de 1930.
O Clube era favorável ao prolongamento do Governo Provisório, pois considerava que a reconstitucionalização do País acarretaria uma espécie de retorno ao domínio oligárquico, justamente aquele que havia sido deposto pela dita Revolução, e que tanto se tentava suplantar. Acreditava-se, ainda, que tal recuo inviabilizaria a realização das reformas necessárias ao País, as quais, na ótica da citada associação, deveriam ser implementadas antes de qualquer procedimento constitucional. Mesmo não sendo um partido político, é inegável que o Clube 3 de Outubro atuou como uma das forças que procuravam alicerçar o Governo VARGAS, tendo como norte um programa que continha, em suma, as seguintes diretrizes, entre outras: a) critica ao federalismo oligárquico típico da República Velha; b) defesa de um governo central forte; c) defesa da intervenção do Estado na economia e com o intuito de modernizá-la; d) eliminação do latifúndio; e) nacionalização de algumas atividades econômicas.
Nesse contexto, segundo a ótica de VIRGINIO SANTA ROSA, autor reconhecido pela análise empreendida sobre o fenômeno do Tenentismo, somente os militares, entre as forças políticas que deflagraram a Revolução de 1930, seriam dotados de força suficientemente capaz de concluí-la, evitando, assim, queas oligarquias retornassem ao poder. Vejamos a concepção que VIRGINIO SANTA ROSA possuía por ocasião dos anos 30 do século passado:
O Exército, pela própria natureza de sua função, é disciplinado e forte. A extrema organizaçãodas fileiras, a admirável solidez das forças morais da classe constituem uma extraordináriaexceção nas sociedades em princípio de dissolução. Daí o facílimo predomíniodos militares nas épocas anormais. Isso, e não o prestígio da baioneta e da espada, é queexplica a fatalidade histórica das ditaduras militares nos momentos críticos da vida dasnações […]. Só o Exército resiste por longo tempo, fortalecido e calmo, na sua missão demanter a ordem pública. E, naturalmente, chega a hora em que ele é obrigado a se sobreporàs outras classes e tem de se apossar do poder para evitar o desmoronamento total. (ROSA, 1932, p. 31-32)
Como se vê, as palavras de VIRGINIO SANTA ROSA, proferidas em longínqua data, revelam a concepção segundo a qual determinadas ações somente poderiam ser levadas a cabo pelas Forças Armadas, visão que ainda hoje reina em alguns segmentos da sociedade brasileira, fato que se comprova através de uma simples análise das noticiadas publicadas em virtude das manifestações realizadas em diversas capitais do País no dia 15 de março de 2015, em que alguns manifestantes pediram a intervenção militar no Governo eleito em 2014.
3. Dos Discursos dos Presidentes da República Populista.
3.1. Eurico Gaspar Dutra.
O Marechal EURICO GASPAR DUTRA, eleito pelo voto direto, inaugura mais um período de Governo republicano (de 31 de janeiro de 1946 a 31 de janeiro de 1951). Em seu discurso de posse presidencial, há citações não só à sua condição de militar, mas também ao papel das Forças Armadas:
Tendo desde a adolescência consagrado minha modesta existência aos árduos deveres militares, em cujo espírito de abnegação e disciplina se aprimora o culto da Pátria, espero concorrer para o engrandecimento das classes armadas, sobre cujos ombros repousa a segurança interna e externa do Brasil. […].
Soldado, subindo ao poder como simples cidadão, espero em Deus as forças necessárias para fazer um governo civil, honesto e útil, ao meu País, um governo que possa corresponder às exigências de tão grave conjuntura, atento sempre aos imperativos da opinião nacional. (BONFIM, 2004, p. 230-231)
Sobre os ombros das Forças Armadas repousa a segurança interna e externa do Brasil, disse DUTRA, frase que reforça a ideia de tutela exercida pelas instituições militares.
3.2. Getúlio Vargas.
Posteriormente, GETÚLIO VARGAS, com quase quatro milhões de votos, é eleito para o período de 31 de janeiro de 1951 a 31 de janeiro de 1956, suicidando-se, no entanto, em 24 de agosto de 1954. Na posse, ao discursar, GETÚLIO, referindo-se às circunstâncias do pleito eleitoral do qual saíra vitorioso, afirmou:
A eleição de 3 de outubrodesmentiu os seus presságios e também os argumentosengendrados que apenas escondiam os receios dumacompetição livre que permitisse ao povo exprimir a escolha ea preferência. A ordem não foi perturbada. Os poderespúblicos permaneceram nos limites constitucionais e nãoprecisaram extravasar para os recursos das medidas deexceção. A Nação não interrompeu o ritmo dos seus trabalhose atividades. O Governo Federal, os órgãos da magistratura eas Forças Armadas merecem louvores pela sua contribuiçãopara a lisura, a liberdade e a tranquilidade da propaganda e dopleito. (BONFIM, 2004, p. 238)
3.3. Café Filho.
Em 24 de agosto de 1954, com a morte de VARGAS, CAFÉ FILHO, na condição de Vice, passa a exercer o cargo em substituição ao titular, o que se dá até 3 de setembro de 1954, quando, então, é empossado como Presidente da República, permanecendo nesta condição até 31 de janeiro de 1956.
Em preleção proferida em 31 de agosto de 1954, CAFÉ FILHO destaca os meandros da crise (político-militar) que redundou no ato extremo de GETÚLIO. A leitura do texto permite sacar, novamente, a importância das Forças Armadas enquanto instrumento de estabilização em momentos de tensão:
Dirijo-me especialmente às gloriosas Forças Armadas, que souberam sempre identificar-se com os sentimentos do povo brasileiro e cuja colaboração neste instante é fundamental e decisiva, como esteios da ordem pública, da tranquilidade nacional e do regime da lei. (BRASIL, 1954, p. 9)
Em outro discurso, datado de 7 de setembro de 1954, CAFÉ FILHO sinaliza, mais uma vez, a consideração por ele assentada nas Forças Armadas enquanto instrumento de manutenção da unidade nacional:
Ao passar em revista, hoje pela manhã, as Forças Armadas de nossa Pátria, meu primeiro pensamento diante da ordem, do garbo, da beleza desse espetáculo, foi o de legítimo orgulho de brasileiro; mas logo, ao vê-las identificadas com o povo, que as aplaudia na transparente sinceridade da mesma comunhão, voltei as minhas cogitações para a ideia da unidade nacional, de que elas são o principal instrumento. (BRASIL, 1954, p. 2)
Os mencionados trechos são significativos quanto ao que se busca comprovar no presente trabalho, ou seja, o elevado status institucional exibido pelas Forças Armadas naqueles tempos, sobretudo em episódios de convulsão intestina e, em contrapartida, a concreta impossibilidade de o Judiciário atuar como fiel da balança, dirimindo os diversos conflitos que se sucederam ao longo da República Velha e da Era Vargas.
O instável quadro político-institucional daquela época era mesmo digno da preocupação presidencial. E as Forças Armadas seriam, como veremos, empregadas numa nova crise.
Nas eleições de 1955, CAFÉ FILHO não consegue emplacar o seu sucessor, o General JUAREZ TÁVORA, da União Democrática Nacional (UDN), sendo este derrotado pela chapa composta por JUSCELINO KUBITSCHEK, do Partido Social Democrático (PSD), e pelo Vice JOÃO GOULART, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Tenta-se impugnar o resultado das eleições, argumentando-se, para tanto, que JUSCELINO não obtivera a maioria do eleitorado. Afirma-se, outrossim, que a diferença (menos de 500 mil votos) entre o vitorioso e o derrotado corresponderia aos votos dos comunistas, os quais não poderiam estar representados no poder, por estarem impedidos de se eleger desde 1946. O Ministro da Guerra, General HENRIQUE LOTT assevera, então, que se deveria cumprir a Constituição, com a posse de JUSCELINO e JANGO. Adverte, inclusive, que o Exército estaria pronto para garantir a observância do Texto Constitucional.
A eleição de KUBITSCHEK e GOULART (aliança PSD – PTB) provoca o descontentamento da UDN e de alguns segmentos militares, agudando-se tal situação em 1º de novembro de 1955, por ocasião do sepultamento do General CANROBERT PEREIRA DA COSTA, o qual, naquela época, presidia o Clube Militar. Numa preleção durante o funeral, o Coronel JURANDIR DE BIZARRIA MAMEDE tece elogios a CANROBERT, destacando a ativa participação do militar falecido no movimento contrário a VARGAS, este “ressuscitado”, de certa forma, pela eleição de JANGO (como Vice) na chapa encabeçada por JUSCELINO. Da mesma forma, MAMEDE manifesta-se contra a posse dos candidatos eleitos, discurso que desagrada ao General LOTT, que exige para o mesmo uma punição exemplar, demanda que não é acolhida pelo Presidente CAFÉ FILHO, o qual, em seguida, afasta-se de suas funções por motivo de saúde, sendo a Presidência interina assumida, em 8 de novembro de 1955, por CARLOS LUZ, então Presidente da Câmara dos Deputados, que também se recusa a impor qualquer corretivo ao referido militar.
LOTT, contrariado, pede demissão da Pasta da Guerra. No dia 10 de novembro de 1955, numa reunião conduzida pelo Comandante da Zona Militar Leste, general ODÍLIO DENIS, os Comandantes das Guarnições do Distrito Federal, bem como o Comandante da Zona Militar Centro (São Paulo), General OLÍMPIO FALCONIÈRE, resolvem forçar o Governo a respeitar os valores militares (hierarquia e disciplina) e a punir MAMEDE. LOTT, por sua vez, acede ao movimento e o lidera. Em seguida, na madrugada de 11 de novembro do mesmo ano, tropas do Exército interditam o acesso ao Catete.
CARLOS LUZ, LACERDA, MAMEDE e outros embarcam e homiziam-se no navio Tamandaré e, já pela manhã de 11 de novembro, rumam para Santos, estratégia arquitetada pelo Brigadeiro EDUARDO GOMES, Ministro da Aeronáutica, que pretendia organizar a resistência (ao movimento liderado por LOTT) em São Paulo. FALCONIÈRE, que se encontrava no Rio de Janeiro, ruma para São Paulo a fim de assegurar o triunfo do movimento na região, sendo detido por Oficiais da Força Aérea. FALCONIÈRE, ao tratar com EDUARDO GOMES, informa ao Ministro estar agindo em prol da legalidade, sendo, então, libertado, e conseguindo chegar a São Paulo. Diante de tal quadro, CARLOS LUZ e os demais integrantes do navio Tamandaréretornam ao Rio de Janeiro, reconhecendo implicitamente a vitória de LOTT.
Em 11 de novembro de 1955, CARLOS LUZ é declarado pela Câmara dos Deputados impedido para o exercício da Presidência, assumindo (interinamente) o Vice-Presidente do Senado Federal, NEREU RAMOS. Novos embates surgem com a melhora do quadro de saúde do mandatário licenciado (CAFÉ FILHO), cujo retorno à Presidência foi obstado por intermédio de decisão exarada pelo Congresso Nacional, conforme Resolução de 22 de novembro de 1955. Assim, NEREU RAMOS governou o País durante o período de 11 de novembro de 1955 a 31 de janeiro de 1956.
3.4. Juscelino Kubitschek.
Contornada a crise, JUSCELINO é empossado para o período de 31 de janeiro de 1956 a 31 de janeiro de 1961. Do discurso proferido por ocasião de sua diplomação, em 27 de janeiro de 1956, no Tribunal Superior Eleitoral, não se extraem referências aos militares, como fizeram praticamente todos os Presidentes anteriores. JUSCELINO, diversamente, destaca o papel da Justiça Eleitoral na condução do pleito de 1955:
Não duvidamos, mesmo nas horas mais difíceis, que o nosso País já estivesse amadurecido suficientemente para que as regras e fundamentos da moral e do direito resistissem a toda sorte de desregramentos da paixão. O ato de hoje, neste Tribunal, fortalece o princípio de que não vinga mais entre nós o arbítrio e de que a lei é forte. Só se podem incluir, aliás, no número dos países civilizados aqueles em que as regras do jogo político são invioláveis, depois de aceitas. Só se podem considerar de fato constituídos em nação os povos para os quais a lei é objeto de acatamento, de limitação de sentimentos bruscos de desgoverno.
Não é apenas a nós, Senhor Presidente e Srs. Membros desta alta corte, a quem consagram Vossas Excelências supremos magistrados da República brasileira; o que se consagra aqui, também e muito mais, é a vontade popular, fonte de toda a autoridade nas democracias. O que proclama este Tribunal é a submissão à vontade do povo; o que defende o ato de hoje é a confiança e a esperança popular na lei. (BONFIM, 2004, p. 247)
Posteriormente, em 5 de junho de 1956, em visita ao Supremo Tribunal Federal, JUSCELINO volta a destacar o importante papel desempenhado pelo Poder Judiciário:
Declaro hoje, Senhores Membros do Supremo Tribunal Federal, e isto para honra minha e, sobretudo, de Vossas Excelências, que imaginei muitas vezes que nesta Corte Suprema da Justiça do meu País pudesse vir a decidir-se em última instância o destino da minha candidatura à Presidência da República. E nunca me arreceei deste desfecho. (BRASIL, 1956, p. 10)
A toda evidência, quis KUBITSCHEK se referir aos episódios que quase o impediram de subir ao poder. Outrossim, num claro recado a alguns segmentos militares que, como visto, tentaram evitar sua posse, JUSCELINO, ao conferenciar na Associação dos Ex-Combatentes, em 1º de março de 1956, disse:
Ainda éfato do dia a indisciplina de alguns poucos oficiais de nossas bravas forças aéreas que se voltaram contra o poder legitimamente constituído, que mal começara a sua difícil missão.
Mesmo sem maiores repercussões, circunscrita a uns poucos jovens, vítimas eles próprios de envenenadores desalmados e sem qualquer escrúpulo, mesmo constituindo um gesto de rebeldia quase solitário, quantos prejuízos para o país, quanto tempo perdido, quantos pretextos emotivos fornecidos para a má propaganda do Brasil no exterior!
Falando-vos exatamente no dia em que praticamente e sem maiores consequências é reduzido o foco de indisciplina, aproveito-me do ensejo para afirmar que o meu desejo de paz e de harmonia entre os brasileiros é cada vez mais ardente, é cada vez maior e mais firme. Em defesa da paz não recuarei um só momento em tomar todas as medidas necessárias e, também, todas as responsabilidades para a manutenção da ordem pública e da disciplina. Conto, para isso, com a firme decisão dos chefes militares, das três Armas, com o espírito de patriotismo que impera nas corporações e com a confiança do povo brasileiro, de quem sou servidor fiel. As forças armadas destinam-se a combater o inimigo externo e a manutenção da ordem pública e estão cada vez mais firmes no cumprimento dos seus deveres e nobres obrigações. (BRASIL, 1956, p. 3-4)
3.5. Jânio Quadros.
JÂNIO QUADROS, eleito pelo voto direto, assume o Governo em 31 de janeiro de 1961, em substituição a JUSCELINO. Seu discurso, da mesma forma que o do antecessor, exalta a Justiça Eleitoral, enaltecendo, por conseguinte, o Poder Judiciário, que naquela ocasião já começava a adquirir o status constitucional identificado na presente ocasião. QUADROS também não faz, pelo menos na alocução junto à Justiça Eleitoral, qualquer alusão às Forças Armadas:
Muitos são os caminhos para a conquista do Poder.
Viciosos, porém, se me afiguram todos aqueles que se apartam do voto do povo, deitado nas urnas soberanas.
Percorri a estrada legítima. E, por isso, a Justiça Eleitoral do meu País, mais uma vez, proclama esta verdade simples: a democracia só se define, só se afirma e consolida através do sufrágio.
É o direito à opção que faz os cidadãos responsáveis e as nações poderosas e permanentes.
De advogado que postulava interesses individuais a administrador dos interesses coletivos se não foi longa a minha jornada, foi ela suficientemente áspera para ensinar-me que a Justiça não é apenas um dos Poderes da República, mas, constitui, isto sim, essência desse mesmo regime.
Não há justiça onde as prerrogativas inalienáveis da condição humana possam ser postergadas por minorias que se afirmem pela força de um poder ocasional, ou pela implantação de uma filosofia de empréstimos.
[…]. a abolição do elemento servil; a afirmação do regime representativo; a estrutura federativa; a liberdade de opinião, de culto e de associação; a emancipação do poder judiciário; a relativa autonomia dos Estados e dos Municípios; as leis do trabalho com a sua própria judicatura; o voto secreto e universal; a criação da justiça eleitoral – eis algumas das decisivas conquistas que dão as verdadeiras e grandiosas dimensões do nosso progresso.
A Justiça Eleitoral teve de passar entre nós pelos estreitos caminhos da evolução e do aprimoramento, a que estão sujeitos todos os órgãos político-sociais. Contra poderosos fatores adversos, contra interesses mesquinhos e particularistas, pelo próprio viço da sua natureza ética, pela própria armadura moral dos seus componentes, conseguiu finalmente esta instituição atingir aquele grau de isenção e solidez que faz dela, a um tempo, símbolo e sustentáculo das garantias constitucionais vinculadas ao exercício do voto.
O aperfeiçoamento desta Justiça é a nossa grande conquista dos últimos tempos, aquela que mais fundamentalmente responde pela verdade, pela pureza, pela segurança do sufrágio. (BONFIM, 2004, p. 254-255)
Começava a se desenhar, assim, o status institucional da Justiça Eleitoral (vertente do Poder Judiciário), fato mundialmente reconhecido.
Não obstante, o governo de JÂNIO ressentia-se de uma base política de sustentação, uma vez que o PTB e o PSB dominavam o Parlamento Federal. Da mesma forma, enfrentava a oposição da própria UDN, inclusive de CARLOS LACERDA, então Governador do Estado da Guanabara. Em 25 de agosto de 1961, JÂNIO QUADROS renuncia ao mandato, pedido que é aceito pelo Congresso Nacional. Em seguida, nova crise se instalaria no País e, mais uma vez, as Forças Armadas seriam instadas a intervir.
3.6. João Goulart.
Por ocasião da renúncia de JÂNIO, JOÃO GOULART, Vice-Presidente, encontrava-se em viagem oficial à China. Em virtude disso, RANIERI MAZZILLI, Presidente da Câmara dos Deputados, assume o poder como substituto legal, governando o país por alguns dias (de 25 de agosto a 8 de setembro de 1961). Tendo em vista o indisfarçado alinhamento ideológico com o comunismo, a posse de JANGO foi vetada pelos Ministros militares (General ODÍLIO DENIS, da Guerra; Brigadeiro GRÜN MOSS, da Aeronáutica; e Almirante SÍLVIO HECK, da Marinha), deflagrando-se uma grave crise político-militar, sendo o impasse solucionado através da aprovação, pelo Congresso Nacional, em 2 de setembro de 1961, de uma Emenda Constitucional instaurando o regime parlamentarista no Brasil, o que, em tese, garantiria o mandato de GOULART até 31 de janeiro de 1966.
Assim, em 8 de setembro de 1961, JANGO assume a Presidência da República, em sessão solene no Congresso Nacional. Na mesma data, é empossado o primeiro Gabinete Parlamentarista, presidido por TANCREDO NEVES. Em janeiro de 1963, um plebiscito decide pelo retorno do presidencialismo, tendo JOÃO GOULART adquirido plenamente os poderes de Presidente.
Quando de seu pronunciamento de posse, GOULART dirige-se, de modo singelo, “às Forças Armadas, que permaneceram fiéis ao espírito da democracia e devotaram-se à proteção daordem jurídica”, bem como ao Judiciário: “Ao Poder Judiciário, desejo prestar uma homenagem toda especial, ao vê-lo cada vez mais prestigiado pela reafirmação popular de respeito e acatamento às leis”. (BONFIM, 2004, p. 263)
Em outra ocasião, quando articulava diretamente com os militares, GOULART tenta demonstrar certa deferência às Forças Armadas. Assim aconteceu, por exemplo, quando de sua visita ao Batalhão de Guardas Presidenciais (Guarnição Militar de Brasília), em 10 de janeiro de 1962:
Ao agradecer as palavras que acaba de me dirigir o Senhor Comandante desta unidade — o brioso Batalhão de Guardas Presidencial —, ao ensejo deste almoço, desejo manifestar minha particular satisfação por este encontro, sobretudo por me ser dado participar do convívio honroso e amigo da oficialidade que aqui serve. Tenho a satisfação de vos dizer, com o orgulho de brasileiro e de patriota, que à medida que vou mantendo contato com os chefes e os demais membros de nossas Forças Armadas, mais forte sinto em meu espírito a convicção de que a disciplina, a ordem e o patriotismo, que são o seu verdadeiro apanágio, é que permitem, ao Governo e ao povo, o clima de tranquilidade e de confiança que é, de resto, o único compatível com as nossas tradições. E sabem todos os patriotas brasileiros, todos aqueles que colocam acima dos interesses pessoais os interesses da coletividade nacional, que é justamente esse clima de tranquilidade e de confiança que está estimulando os nossos irmãos de todos os recantos da Pátria no sentido da luta pelo desenvolvimento de nossa economia.
Filio-me, com inabalável convicção, ao número daqueles que estão seguros de que a vitória da caminhada que ora estamos realizando, em busca da emancipação econômica nacional, depende, em grande parte, da disciplina e do patriotismo das nossas Forças Armadas.
Aqui, ao vosso lado, neste instante, sinto-me, felizmente, à vontade para vos afirmar — e o faço como Chefe da Nação — que o povo brasileiro sempre confiou nas suas Forças Armadas e que nelas nunca deixou de encontrar, nos momentos difíceis da nacionalidade, apoio decisivo no sentido da manutenção das instituições democráticas e aos seus anseios de paz e de progresso. (BRASIL, 1962)
Posteriormente, em 21 de fevereiro de 1962, na Vila Militar, no Rio de Janeiro, por ocasião das comemorações do 17º Aniversário da Tomada de Monte Castelo pela Força Expedicionária Brasileira (FEB), JANGO dirige-se novamente aos militares:
Na reverência aos heróis que perderam ou expuseram a vida naqueles grandes episódios, rendo as homenagens do meu apreço cívico, interpretando o sentimento unânime do povo brasileiro às valorosas Forças Armadas de nossa pátria. […]. Ninguém tem excedido as nossas Forças Armadas em fidelidade à democracia e no amor e devotamento às causas populares. O espírito dos mortos de Prano, Monte Castelo, Montese e Fornuovo di Taro revive, glorificado, no exemplo dos bravos soldados da democracia que, sob o mesmo esclarecido comando do seu antigo coronel, o então comandante do Sexto Regimento de Infantaria e hoje eminente General de Exército, Segadas Viana, asseguram a permanência de nossas instituições democráticas.
O exemplo profissional que o soldado brasileiro deu de sua bravura e de sua competência, lutando pelo ideal de nossa filosofia de vida, nos campos da Itália, e adaptando-se, sem dificuldade, ao manejo dos mais novos instrumentos de guerra, de par com as responsabilidades que nos cabem no cenário dos nossos compromissos internacionais, são elementos que nos fortalecem na convicção de que as Forças Armadas do Brasil devem ser dotadas, em permanente espírito de aperfeiçoamento, do instrumental imprescindível ao desempenho de sua tarefa, para que, a qualquer tempo, quando convocadas, possam manter as refulgentes tradições que constituem o nosso orgulho e a nossa honra. Quero também declarar que o Poder Executivo — que se estimula e fortalece com a vossa solidariedade — jamais poderá ser indiferente aos problemas humanos de vossa classe, agravados pelo processo inflacionário que o atual Governo encontrou em plena e desordenada ascensão. Esse processo se exprime na alta do custo de vida, que se torna mais penosa com o deslocamento profissional e a instabilidade de residência a que vossas funções vos sujeitam, e por isso há de constituir ponto destacado entre os deveres do Governo assegurar a oficiais e sargentos meios de proporcionarem às suas famílias uma vida tranquila e compatível com a elevada missão que lhes é confiada pela sociedade.
Estou convencido de que, nesta ordem de idéias, o Governo do Brasil não será insensível aos justos reclamos das Forças Armadas, depositárias do melhor do nosso patrimônio cívico. E não somente em relação às suas necessidades de aparelhamento material adequado, especialmente no que diz respeito à motomecanização e à modernização dos seus instrumentos de ação em combate, como, igualmente, no que se relaciona com o aperfeiçoamento do seu material de comunicações, estou seguro de que os recursos imprescindíveis serão postos à disposição dos seus objetivos fundamentais e inadiáveis.
Agradeço, em meu nome e no do Presidente do Conselho, Ministro Tancredo Neves, o calor e a simpatia de que nos cereais na acolhida que nos está sendo dispensada. Agradeço, de modo particular, ao Senhor Ministro da Guerra o testemunho, isento e autorizado, que acaba de transmitir à Nação sobre o esforço do Governo em servir ao País, o que não constitui mais que o dever precípuo dos que procuram desempenhar com lealdade os mandatos populares.
Continuaremos fiéis às imposições do nosso dever. A identificação, cada vez mais perfeita, entre as Forças Armadas e os legítimos anseios populares, dá-nos a certeza de que as reformas de base reclamadas pelo País poderão processar-se dentro da linha das tradições democráticas e cristãs que desejamos a qualquer preço preservar.
Manifestação como essa não pode deixar de representar conforto moral para um homem público, que foi chamado em circunstâncias difíceis a dar desempenho aos deveres impostos pela vontade popular e que não teve outra preocupação senão a de poupar o País e as suas instituições dos riscos que os ameaçavam, esperando encontrar, com a proteção de Deus, os meios de servir a sua pátria.
Senhores Ministros, Senhores Oficiais-Generais, Senhores Oficiais. Convido-vos a que levantemos as taças em memória dos nossos bravos que tombaram nos campos de batalha e pelo futuro glorioso das nossas Forças Armadas. (BRASIL, 1962)
No mesmo diapasão, em 10 de maio de 1962, no Quartel dos Dragões da Independência, no Rio de Janeiro, GOULART, por ocasião das comemorações do 154º Aniversário do Nascimento do Marechal MANUEL LUÍS OSÓRIO, discursou para um público de militares:
É-me profundamente grato participar da solenidade organizada pelo I Exército em homenagem ao grande soldado do povo, ao grande soldado da lei — o Marechal Osório. Através desta justa homenagem, o Exército reverencia a memória do patrono de sua gloriosa Cavalaria, nesta data tão significativa, que assinala o aniversário do nascimento do grande brasileiro.
Ao agradecer a saudação do ilustre comandante do I Exército, desejo recordar as palavras proferidas pelo Marechal Osório, nos últimos instantes de sua vida: “Tranquilidade, independência, pátria e liberdade”. Estas palavras permanecem cada vez mais vibrantes no espírito de nossas Forças Armadas. Fiel ao exemplo de Osório e ao exemplo de nossas Forças Armadas, tenho sempre presente o significado das palavras de Osório, que soube marcar, com sua bravura e seu patriotismo, as fronteiras de nossa pátria, como a dizer às futuras gerações que marcassem, também, com patriotismo e coragem, o caminho da independência do Brasil. Sinto-me, portanto, emocionado ao lembrar estas palavras do grande militar e, coerente com elas, tenho tido a preocupação de assegurar ao País um clima de tranquilidade e de compreensão propício à união calorosa da família brasileira. Tem sido também nossa preocupação ser fiel a todos os compromissos livremente assumidos pelo Brasil, dentro de uma linha de independência. E tem sido ainda nossa preocupação manter o País nesta caminhada pela emancipação econômica, que há de levar o povo brasileiro a melhores dias e a um respeito cada vez maior pelo sistema democrático em que vivemos.
Congratulo-me com todos os generais, com todos os oficiais, especialmente com aqueles que, abraçando a arma da Cavalaria, continuam fiéis ao símbolo de patriotismo e de confiança em nosso país, representado pela vida e pelo exemplo do Marechal Osório. Ao finalizar, levanto um brinde em homenagem a Osório, ao homem que, vindo das camadas mais vivas do povo, transformou-se em soldado, em general, em marechal e, sobretudo, num símbolo a ser seguido por todos os brasileiros. E, neste brinde, presto também minha homenagem ao glorioso Exército nacional. (BRASIL, 1962)
Apesar dessas referências elogiosas, a relação entre o Presidente da República e as Forças Armadas, a bem da verdade, estava definitivamente marcada desde o embate ideológico ocorrido por ocasião da renúncia de JÂNIO, cujo desenrolar histórico culminou com a assunção do poder pelos Militares.
4. Conclusão.
Da leitura do texto acima, mormente dos trechos extraídos a partir de determinados discursos proferidos pelos Presidentes da República nas denominadas Era Vargas e República Populista, é possível inferir que as Forças Armadas, naquelas quadras, ainda funcionavam como instrumento de estabilização política.
O Poder Judiciário da época não tinha condições de realizar tal tarefa, malgrado a existência de alguns sinais de seu fortalecimento institucional, que se comprova pela análisedo discurso proferido quando da diplomação de JUSCELINO KUBITSCHEK, em 27 de janeiro de 1956, realizado no Tribunal Superior Eleitoral, momento em que nenhuma alusão aos militares foi feita, tendo JUSCELINO, diversamente, destacado o papel da Justiça Eleitoral na condução do pleito de 1955.
5. Referências.
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BONFIM, João Bosco Bezerra. Palavra de Presidente: Discursos de Posse de Deodoro a Lula. Brasília: Senado Federal, 2004. v. 1. Disponível em: <http://joaoboscobezerrabonfim.com.br/wp-content/uploads/2013/04/palavra_de_presidente-texto.pdf>. Acesso em: 10 fev. 2015.
___________. Emenda Constitucional nº 4, de 2 de setembro de 1961.Institui o sistema parlamentar de governo. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc04-61.htm>. Acesso em: 20 fev. 2015.
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___________. Discurso do Presidente João Goulart no Batalhão de Guardas Presidenciais, em 10 jan. 1962.Disponível em: <http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/ex-presidentes/joao-goulart/discursos-1/1962/01.pdf/download>. Acesso em: 20 fev. 2015.
___________. Discurso do Presidente João Goulart por ocasião das comemorações do 17º aniversário da tomada de Monte Castelo pela Força Expedicionária Brasileira, na Vila Militar, Rio de Janeiro, em 21 fev. 1962.Disponível em: <http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/ex-presidentes/joao-goulart/discursos-1/1962/04.pdf/download>. Acesso em: 20 fev. 2015.
___________. Discurso do Presidente João Goulart no quartel dos Dragões da Independência, Rio de Janeiro, por ocasião das comemorações do 154º aniversário do nascimento do Marechal Manuel Luís Osório, em 10 mai. 1962. Disponível em: <http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/ex-presidentes/joao-goulart/discursos-1/1962/01.pdf/download>. Acesso em: 20 fev. 2015.
___________. Discurso proferido Deputado Federal FernandoLyra, na qualidade de líder do antigo Movimento Democrático Brasileiro(MDB), em discurso publicado no Diário do Congresso Nacional, em 2 abr. 1975. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/plenario/discursos/escrevendohistoria/destaque-de-materias/lei-da-anistia/Fernando Lyra 020475.pdf>. Acesso em: 27 fev. 2015.
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FGV CPDOC. Fatos e Imagens: artigos ilustrados de fatos e conjunturas do Brasil. Góes Monteiro. Disponível em: <https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/FatosImagens/biografias/goes_monteiro>. Acesso em: 3 jul. 2015.
SANTA, Virginio Rosa. A desordem: ensaio de interpretação do momento. Riode Janeiro: Schmidt, 1932.
[1]Desembargador Federal, Presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21), Professor Emérito da Escola de Comando e Estado-Maior (ECEME) e Professor Honoris Causa da Escola de Comando e Estado-Maior da Aeronáutica (ECEMAR). Site: https://reisfriede.wordpress.com/ . E-mail: reisfriede@hotmail.com .