Paulo Guedes: “sobra suja” do neoliberalismo
Lorenzo Carrasco e Geraldo Lino
O ministro da Economia Paulo Guedes, que age como uma espécie de supremacista tupiniquim, parece ter um apreço especial por superar-se a si próprio em manifestações públicas da sua visão do mundo darwinista social, em geral, cada qual mais ultrajante que a anterior.
Entre várias outras, já criticou os pobres por “consumirem” todo o dinheiro que recebem, rotulou funcionários públicos de “parasitas”, reclamou da “festa danada” de viagens de empregadas domésticas à Disney, afirmou que o Estado “perderia dinheiro” ajudando as pequenas empresas na pandemia e protestou que o Estado não poderia financiar um sistema de saúde para “todo mundo que quer viver 100 anos”.
Fiel ao seu estilo, a mais recente supera as anteriores em incontinência verbal, falta de sensibilidade e má-fé, ao afastar de si próprio qualquer responsabilidade pela calamitosa situação socioeconômica do País. Em uma videoconferência com a Associação Brasileira de Supermercados (Abras), em 17 de junho, cujo tema era o combate à fome na pandemia, o ministro incluiu no problema os hábitos alimentares da classe média. Em suas palavras: “O prato da classe média europeia, que já enfrentou duas guerras mundiais, são pratos relativamente pequenos. E os nossos aqui, fazemos almoços onde às vezes há uma sobra enorme. Isso vai até o final, que é a refeição da classe média alta. Até lá há excessos… Precisamos dar incentivos para o que é jogado fora possa ser endereçado aos mais necessitados (O Estado de S. Paulo, 17/06/2021).”
De fato, o desperdício de alimentos é um problema sério, e não só no Brasil. Em todo o mundo, perde-se em média cerca de um terço dos alimentos produzidos, em decorrência de pragas, condições meteorológicas adversas, deficiências de transporte e armazenamento e maus hábitos alimentares. Porém, se críticas aos hábitos individuais são válidas em conversas informais entre pessoas privadas, de modo algum, tal analogia condenatória em um debate público para a discussão de políticas públicas é justificável, quando se trata de um ministro de Estado responsável pela economia nacional. Ainda mais, em um momento em que quase 60% da população padece de algum grau de insegurança alimentar, devido a uma crise para a qual o governo não oferece qualquer solução efetiva.
Diante da enorme repercussão negativa, Guedes tentou se justificar e acabou piorando a situação, afirmando em nota que se referia “à ‘sobra limpa’, que significa, justamente, não os restos no prato, mas panelas de alimentos preparados e não consumidas de arroz, feijão, frango, por exemplo, que em condições de higiene, temperatura e condicionamento, possam manter a qualidade do alimento (O Estado de S. Paulo, 19/06/2021)”.
Os maus hábitos individuais não foram a causa de mais de 125 milhões de brasileiros terem encerrado 2020 enfrentando insegurança alimentar; ela deve ser buscada entre os níveis recordistas de desemprego, subemprego e desalento, que afetam cerca de 45 milhões de pessoas. E o problema tende a agravar-se, em função da alta dos preços dos alimentos – paradoxal, enquanto o País registra a maior produção de alimentos de sua história.
Por outro lado, a sugestão de agregar as “sobras” alimentícias às políticas públicas nem pode ser considerada um lapso freudiano, pois Guedes nunca escondeu o seu profundo desprezo por todos os que se encontram abaixo do seu nível social, em especial, à grande maioria de pobres incapazes de “capitalizarem os seus recursos”.
A rigor, o ministro estrela do presidente Jair Bolsonaro simboliza uma “sobra suja”, o modelo econômico neoliberal, já descartado até mesmo no país onde o aprendeu, os EUA. Ali, o presidente Joe Biden pretende enfrentar o período pós-pandemia com um pacote de US$ 2,2 trilhões em investimentos públicos, iniciativa que deve provocar urticária nos neoliberais brasileiros.
Em lugar algum onde foi aplicado, o “choque liberal” (que Guedes prefere rotular “social-liberal”) gerou os resultados prometidos – maiores eficiência econômica e prosperidade e menores custos para produtores e consumidores. Ao contrário, os seus principais resultados foram a concentração de renda, aumentos da desigualdade e dos custos produtivos e sociais – como se observa em outro país de referência do ministro, o Chile, às voltas com sérias convulsões sociais decorrentes de quase meio século de experimentos neoliberais.
Sem falar na corrupção endêmica proporcionada pelos altos negócios gerados pela onda de privatizações de empresas estatais, que constituiu uma das marcas registradas da febre neoliberal e da “globalização” financeira gerada por ela, a partir da década de 1980.
Neste quesito, um país emblemático é o México, onde o presidente Andrés Manuel López Obrador tem se empenhado em desfazer parte dos estragos causados pelas “reformas” neoliberais iniciadas na presidência de Miguel de la Madrid (1982-1988) e mantida pelos seus sucessores. AMLO, como é conhecido, tem dado atenção especial ao setor energético, recuperando o papel do Estado na indústria petrolífera e na geração de energia. Neste setor, tem se empenhado em revisar contratos leoninos que passaram a condicionar a expansão da oferta de eletricidade aos interesses privados, com a construção de usinas termelétricas alimentadas a gás natural importado dos EUA, para cuja remuneração dos seus operadores algumas usinas hidrelétricas eram contratualmente obrigadas a permanecer inativas (modelo cujas graves deficiências foram escancaradas pela onda de frio que atingiu o Texas e paralisou o fornecimento de gás ao México, em fevereiro último – ver Resenha Estratégica, 24/02/2021). E, da mesma forma, investe na ampliação da malha ferroviária, entre outros, com o Trem Maia, ferrovia de 1.500 quilômetros na Península de Yucatán, e o corredor transoceânico no Istmo de Tehuantepec, os maiores projetos de infraestrutura do país em décadas.
E vale registrar que a “rebelião” antiliberal do presidente mexicano não provocou qualquer “fuga” de investimentos estrangeiros diretos no país, os quais se mantêm em uma faixa de US$ 30-35 bilhões anuais desde 2014, com uma queda para US$ 29,1 bilhões em 2020, devido à pandemia (à frente do Brasil, com US$ 24,8 bilhões, tendo o País registrado uma queda de 60% em relação a 2019).
No Brasil, para ficarmos apenas no setor elétrico, vale recordar as consequências da adoção da agenda neoliberal: de uma das menores tarifas de eletricidade, o País passou a ter a segunda mais alta do mundo, segundo a Agência Internacional de Energia; de um sistema de base hidrelétrica que tinha condições de suportar até dois anos de estiagens, as dispendiosas termelétricas já respondem por cerca de um quarto da geração, enquanto os reservatórios das hidrelétricas se tornam cada vez mais vulneráveis a estiagens como a deste ano (ver Lorenzo Carrasco e Geraldo Luís Lino, “Eletrobras: ‘apagão mental’ promove privatização”, MSIa Informa, 02/06/2021).
Não por acaso, uma pesquisa da insuspeita Fundação Getúlio Vargas mostra que apenas 71% dos brasileiros acreditam no trabalho como forma de progredir, o índice mais baixo na América Latina. O estudo mostra que os 50 milhões de jovens entre 15 e 29 anos formam “uma juventude decepcionada em níveis recordes, sem perspectiva de trabalho e insatisfeita com a condução do País”. E 47% deles sairiam do País se tivessem oportunidade (Folha de S. Paulo, 20/06/2021).
No jornal Valor Econômico de 21 de junho, uma manchete autoexplicativa e simbólica desse deplorável cenário: “Economia mostra retomada sem empregos.”
Na realidade, em toda a Ibero-América, os operadores neoliberais não têm passado de facilitadores da entrega do patrimônio do Estado e da desregulamentação das economias, em favor dos grandes fundos financeiros depredadores, os maiores beneficiários da “globalização”. Longe de pensarem na economia real, suas motivações não vão além dos lucros dos acionistas e dos bônus dos executivos, na estreita contabilidade algébrica das suas cabeças. Paulo Guedes não passa de uma “sobra suja” desse pensamento misantrópico, um representante do baixo clero da Casa das Garças e instituições afins.