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Mia Couto: “O Brasil nos enganou”

 

 

 

Mia Couto: "O Brasil nos enganou"

O autor moçambicano diz que o futebol, o Carnaval e outros estereótipos brasileiros serviram como modelos para a África – mas eles se esgotaram

LUÍS ANTÔNIO GIRON
25/04/2014 07h00 – Atualizado em 25/04/2014 09h10

 

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SOSSEGADO O escritor Mia Couto em S?o Paulo. Ele inventa hist?rias a partir da observa??o  da vida dos outros (Foto: Julia Rodrigues/?POCA)

O moçambicano Mia Couto, de 58 anos, é atualmente um dos escritores mais notáveis e produtivos da língua portuguesa. Sua obra – 27 títulos entre romances e coletâneas de poemas e ensaios – é considerada um patrimônio da lusofonia. Sua influência é tanta que alguns de seus livros são adotados e discutidos nas escolas brasileiras, ao passo que nenhum autor brasileiro, atual ou não, é estudado na África. António Emílio Leite Couto é um cidadão pacato. “Sossegado demais”, diz, “o que me permite observar os outros.” Filho de portugueses emigrados, seu pai, Fernando Couto, era poeta. Mia trabalhou como jornalista e professor de biologia. Foi militante de esquerda e participou da luta pela independência moçambicana. É casado e pai de três filhos. A mais nova, Rita, de 23 anos, estuda teatro em São Paulo. Ele costuma vir ao Brasil para participar de feiras literárias, encontro com alunos do ensino médio e proferir conferências, como a que dará em setembro no simpósio Fronteiras do Pensamento.

ÉPOCA –  Como está a situação das antigas colônias portuguesas na África?
Mia Couto –
Uma coisa é a independência, e outra a descolonização. A descolonização do pensamento ainda não ocorreu. Olhamos para a África com valores europeus. É preciso uma ruptura para mudar a situação. Outro fator é a manutenção da estrutura política e administrativa que herdamos do passado e reproduzimos hoje. A descolonização tem de ser feita pelos próprios africanos. Tanto em Moçambique como em Angola, temos necessidade de criar um pensamento próprio, produtivo e moderno, que ultrapasse a folclorização que a própria África produz para si. Como resolver as falsas dicotomias entre tradição e modernidade? Não existe vontade de fazer isso por parte das elites, em nenhum país africano.

ÉPOCA – O Brasil foi um modelo para os países luso-africanos. Ele continua a ser inspirador?
Couto –
O Brasil foi um modelo pela via da mistificação. O Brasil nos enganou. Recordo-me quando os primeiros jogadores de futebol negros brasileiros se impuseram ao mundo. Nós, na África, vimos aquilo como nosso futuro, a realização de um sonho: Pelé, Garrincha. Mas não era claro para todos que aquilo era a parte visível de um mundo extremamente racista. A celebração da alegria do Carnaval, a celebração do corpo negro como paradigma da beleza, foi sempre valorizada por nós. Mas víamos um Brasil que não existia. Isso se mantém até hoje. Porque vemos o Brasil com o orgulho de quem vê um membro de nossa família estar à frente, como uma das potências econômicas mundiais. Mas não percebemos as contradições internas que esse sistema tem. Todos precisamos ter um parente rico.

ÉPOCA – Carnaval, música e futebol são verdadeiros, não?
Couto –
Sim. Só que o Brasil não é só isso. A falsificação que criamos em torno do Brasil era uma forma positiva de pensar um modelo do que poderíamos ser. Antes mesmo do Brasil, os países africanos vizinhos que conquistaram a independência nos fascinaram mais. Tanzânia, Zâmbia e Uganda foram motores de nossos sonhos.

ÉPOCA – O senhor continua a atuar na política?
Couto –
O empenho é o mesmo. Mas não tenho partido nem milito numa organização. Faço o trabalho cívico, colaboro com as organizações da sociedade civil, com os partidos políticos naquilo que eles fazem de positivo. Tenho uma intervenção pública pelos jornais e conferências. Mantenho a veia jornalística. Sou um homem de esquerda, se é que essa palavra tem algum sentido hoje. Mantenho os princípios que me fizeram aderir ao movimento revolucionário. Não sou marxista, porque o marxismo simplificou a visão de mundo. O marxismo foi adulterado. Não é o caminho.  Sou um homem profundamente crítico em relação a esse sistema que se tornou global.

ÉPOCA – O senhor quer dizer o sistema capitalista?
Couto –
Olhe como as coisas mudaram. A gente não sabe mais dar nomes às coisas. Foi intencional. Hoje temos medo de dizer que o sistema em que vivemos é o sistema capitalista. Chamamos isso de globalização etc. Receamos usar palavras que só serviam para um mundo bipolar. Hoje é pecado pronunciar a palavra “capitalismo”. O capitalismo é tão guloso que engoliu seu próprio nome. Ele tem uma capacidade enorme de se travestir.

ÉPOCA – Há uma tendência a subestimar o conhecimento produzido na África, pois a África produz mais crenças que filosofia. Isso é preconceito?
Couto –
É uma redução. Acredita-se que a contribuição africana se dá no domínio do mágico e das práticas rituais. Mas esse tipo de pensamento tem um sistema. É um modo de entender o mundo, global e total. No caso da África, ou das várias Áfricas, há uma forma de ver o mundo que me fez crescer como pessoa: a forma de entender a morte. Aprendi a necessidade de estar em harmonia com os mortos, porque eles nunca morrem, estão presentes no mundo. Também há uma relação diferente com a natureza. Na África, existe um entendimento holístico do mundo, e não há uma palavra para diferenciar a natureza do resto. A ciência procura isso, por via do entendimento da ecologia, das interações entre os componentes vivos e não vivos.

ÉPOCA – Como o pensamento “selvagem” poderia ser incorporado à civilização?
Couto –
Hoje, apesar de tudo, até porque a economia de mercado incorporou isso, há um olhar mais aberto para os outros. Você observa que os padrões de beleza mudaram. As pessoas hoje aceitam como belo aquilo que antes, há 30 ou 40 anos, era excluído. Hoje desfilam nas passarelas da moda figurinos que vêm da África, da China, da Índia. Isso é um sinal de alguma coisa que se altera dentro da fortaleza, antes feita de uma só voz e uma só história. 

"Hoje é pecado pronunciar a palavra capitalismo. O capitalismo é tão guloso que engoliu o próprio nome"

ÉPOCA – Como a literatura lusófona africana se transformou nos últimos anos?
Couto –
Houve uma evolução. Hoje temos nossa produção editorial – cinco editoras – bem instalada. As livrarias se disseminam em muitas cidades. A escola adotou os escritores nacionais. A África lusófona está à frente da África de línguas inglesa e francesa. No Zimbábue e na África do Sul, as escolas ensinam só autores ingleses. No caso de Angola, os escritores nacionais são colocados em primeiro plano, desde a escola primária. Isso cria uma relação de intimidade que ajuda a literatura. E isso começa com a escola.

ÉPOCA – O que o senhor acha de sua obra ser adotada nas escolas brasileiras?
Couto –
O Brasil alterou sua relação literária com a África. Vou a escolas aqui. É curioso ver como um menino do Brasil hoje lê uma coisa que foi escrita nos anos 1980 em Moçambique. As perguntas que os estudantes brasileiros me fazem não são só de escola. Só temo que eu seja imposto como uma chatice escolar. O importante é ter uma relação de prazer com a leitura. Pena que não há um único autor brasileiro, vivo ou morto, adotado nas escolas africanas.

ÉPOCA – O senhor acompanha a literatura brasileira atual?
Couto –
A literatura brasileira não chega mais à África. É estranhíssimo, porque chegava lá bem há uns 30 anos. Trocávamos mais literatura e música no tempo de nossas respectivas ditaduras do que fazemos agora. Porque agora nos deixamos levar pelo mercado, e o mercado não está interessado em que haja essas trocas. O que conheço da literatura brasileira é por meu esforço.

ÉPOCA – De onde o senhor tira suas histórias? 
Couto –
Tiro de conversas com as pessoas. Isso vem da capacidade de escutar os outros. Há sempre uma história oculta. É um exercício que faço desde menino. Me sentava diante da casa, e meus pais me chamavam de muito devagar. Eu era muito sossegado. Dessa forma, observava os outros. Contar história é uma coisa que parte do não saber. É uma ignorância intencional. Ela me torna disponível para escutar as vozes dos personagens.

 

ÉPOCA – Por que o senhor escreve?
Couto –
Para responder a essa pergunta, sempre crio uma razão diferente, pois não existe uma razão para escrever. A escrita não é uma função nem uma missão. Escrevo para ser feliz. A poeta portuguesa Sophia de Mello Brayner contava histórias para que seus filhos doentes adormecessem. Escrevo para adormecer o mundo que me parece doente. E assim invento histórias. 

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