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Maria Falcão – Vamos falar sobre tortura? Não pode voltar algo que nunca partiu

MARIA FALCÃO VAZ

Médica e mestre em jornalismo científico pelo Imperial College de Londres

 

Para começo de conversa, não votei no Bolsonaro. Mas tenho uma coisa pra dizer pra quem não conseguiu ainda aceitar o desfecho das eleições e encará-lo ao invés de temê-lo. E que ainda continua a se valer de um temor imaginário sobre uma possível piora da violência: não tenha medo da volta da tortura, porque uma coisa que nunca foi embora não pode voltar.

O pobre da favela, os miseráveis dos rincões desse Brasil, sabem bem ao que me refiro. Os homossexuais pobres, os transexuais sem planos de saúde, as mulheres suburbanas e os negros, também devem saber do que falo, ainda que alguns momentaneamente esqueçam, confusos com a propaganda eleitoral, que disseminou o medo e a histeria. A tortura não deixou de acontecer, ainda acontece, e aparentemente passa despercebida para muitos.

Há treze anos, trabalho em hospitais públicos, e posso dizer que não houve uma única semana em que eu não tivesse tido de cuidar de um indivíduo vítima de “violência do preconceito” – além de outras violências que não necessariamente passam por agressões físicas de um ser humano contra outro, claro. Os últimos governos não mudaram muita coisa, assim como os próximos podem também não mudar.

Porque gente desequilibrada e agressiva, sem saúde mental, sempre existiu e sempre vai existir. E me arrisco a dizer que vai piorar. Não porque vem um fulano ou um sicrano como presidente, mas porque o mundo está insano e a ditadura da internet e redes sociais só piora o nó na cabeça da população.

 

– Por que você acha que a maioria dos médicos brasileiros foi pró-Bolsonaro?

– São todos algozes?

– Estão preocupados com a concorrência dos médicos cubanos ou só em ganhar dinheiro em hospital particular?

– Ou porque querem continuar colocando pinos caríssimos nos ossos de pacientes sem necessidade?

– Que visão simplista.

A medicina, assim como as demais áreas da saúde, é uma profissão que permite que transitemos no limbo. Num único dia, podemos atender a rainha da Inglaterra e dona Jurema da Baixa de Quinta. A desigualdade social grita aos nossos olhos e da maneira mais cruel e aterradora.

Acabar com isso, de forma acertada ou não, foi a bandeira adotada por muitos. Não exatamente porque se sensibilizam com as pessoas atingidas (não seria ingênua a ponto de generalizar a nobreza de sentimento para toda a classe médica), mas por terem de, sensibilizados ou não, bater esse abacate e comer esse angu de caroço todos os dias.

Essa realidade impacta diretamente nossas rotinas. E se nos últimos anos não houve sinal se melhora, muito pelo contrário, escolheu-se seguir um caminho diferente.

Quando digo isso, tem sempre alguém pra insinuar que sou alienada, que não vivi a ditadura, e que existe uma grande diferença entre a tortura de um governo contra o seu povo, de um militar ou gente autorizada pelo regime para “calar” a população, e a tortura à qual eu me refiro. Desculpe, mas não existe.

Você chegar com a sua mãe nos braços em um hospital e ter de assistir ela morrer porque o hospital está lotado e você não conseguiu atendimento, ou pior, porque não tinha a medicação X que talvez pudesse salvá-la, ou não ter uma maca e ponto de oxigênio pra amenizar o seu sofrimento…

Isso não é tortura? Não te deixaria insano, revoltado, marcado para o resto da sua vida? Ou como há algumas semanas, que tive de avaliar uma criança de dois anos em morte cerebral, que tinha sido estuprada pelo padrasto (coisas corriqueiras nas periferias, espero que saibam disso).

Ou a de três anos, que toda vez que ouve alguém gritar com ela fica de quatro, que é como ela sabe se desculpar por algo de errado que possa ter cometido (e que a professora da escola, vendo tudo isso, não pode denunciar os possíveis abusadores, pois a escola fica numa área dominada pelo tráfico de drogas). Os exemplos são milhares, mas não vou ficar aqui propagando a miséria humana e ajudando a disseminar o “ódio” — essa palavra da moda. São só exemplos de como a vida é muito mais dura do que muitos imaginam, e ela é assim muito antes de 2018.

A dor das mazelas causadas pela desigualdade social é tão forte e traumática quanto a causada por aquela ou outras ditaduras. Só mudam os números de atingidos e os protagonistas.

Então, não diria que é “amoral” uma pessoa dizer que votou em A, porque não compactua com a hipocrisia de um candidato que começa uma campanha dizendo X e termina dizendo Y. A hipocrisia pra muitos dos eleitores está na lista de coisas abomináveis, bem ao lado do discurso armamentista.

Não tem nada de amoral não querer ser parte de grupos de gente “fina, elegante e sincera” tocando acordes num violão, quando se é testemunha de gente que morre aos montes, vítimas da violência e do descaso de autoridades. Também não taxo de amoral alguém que optou por achar menores os problemas que mencionei antes, porque foi vítima de outras violências e traumas, e se sente diretamente agredido pelos discursos bizarros e anacrônicos adotados por B, e assim achá-lo uma opção repugnante.

Mas agora, saiamos todos das nossas caixinhas, dos nossos grupos de whatsapp, vamos tirar nossos tapa olhos e olhar o mundo lá fora. Coloquemos os nossos livros de literatura embaixo do braço, e voltemos a trabalhar e contribuir para que as coisas melhorem. Vamos deixar a energia do medo do passado porque ele é presente.

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