Leonardo Giardin de Souza
Promotor de Justiça e escritor
Publicado em Opinião & Crítica
11 Abril 2020
Num quadro crescente de anarquia aparente, caos, fragmentação e obscuridade agravado por uma providencial pandemia, uma pergunta desvela o anseio pela restauração da unidade perdida: quem, a essas alturas, nos governa?
Dizem que o poder é doce, e quem quer que o experimente incorre no risco de um deleitoso quadro de diabete emocional. Há quem jure que a coisa causa dependência de tal monta que maconha, crack, cocaína e até o famigerado glúten, comparados a ela, ficam reduzidos a resfriadinhos aos pés da peste negra. Em tempos de pandemia, medo e isolamento, parece que a bravata nietszcheana da proclamação da morte de Deus assume ares de fato consumado.
Não é mais a verdade que liberta, não é mais a mentira que escraviza. As questões de liberdade e servidão, verdade e falsidade, conhecimento e ignorância, dependem agora do aparato político-burocrático – uma recomendação da OMS, uma palavra do ministro, um decreto do governador, uma rebelião do prefeito, um pronunciamento presidencial ou uma insurreição do barbeiro. Toda a população aguarda algum sinal dessas sumidades como se esperasse a segunda vinda do Messias.
Burocracia e política tornam-se depositários da esperança do advento de uma reconfortante sensação (ou impressão) da reafirmação da segurança perdida, descida dos céus dos organismos globais. É a fé em um poder terreno superior que o reles mortal supõe enxergar de modo um pouco mais nítido que o “inimigo invisível” que lhe serve de escada e agiganta.
Já ficou dito acima: o poder é doce. A propósito, aprendi com o professor Maurício Marques Canto Junior[1] que essa ambrosia – que empanturra homens que brincam de deuses e convertem seus palácios no próprio Olimpo – possui três variantes, cada qual com a função de defender o ser humano das três ameaças fundamentais: o poder de império (poder de destruir, a força física concretizada nas forças armadas como modalidade ativa e na Justiça como modalidade passiva, que nos defende da ameaça fundamental da violência); o poder de dieta (o poder de produzir, de natureza econômica, ativamente exercido pelos capitalistas e passivamente pelos assalariados, que nos defende da ameaça fundamental da fome); e o poder de igreja (o poder de conduzir, espiritual e intelectual, psicologicamente exercido ativamente através dos meios de difusão cultural – mídia inclusa – e passivamente pela força da tradição, que nos defende da ameaça fundamental do erro).
Para o bem de todos e felicidade geral da humanidade, convém que esse triângulo conserve-se equilátero, em harmônico equilíbrio. Por vezes, porém, estabelecem-se jogos de poder, ideais supremacistas, inevitável desequilíbrio e consequente desordem, a ser sanada com concentração de poder, resultante da hegemonia de uma das três variantes sobre as demais – com todos os malefícios que decorrem da distorção.
Como esse jogo de poder tem sido disputado em terrae brasilis, ao generalizado pretexto de “salvar vidas” em meio à pandemia? Algumas semanas depois que os emissários do norte passaram a soprar por aqui as trombetas do apocalipse – com a pertinácia de quem transmuta o rufar de algumas panelas de alumínio em relevante ato político – temos ainda governo? Parece que sim, desde sempre – como diz o cancioneiro, o buçal é um fato incontestável demais para ser negado. Nunca há de faltar, porém, quem pretenda governar o governo.
É aí que uma boa dose de terror pânico (doença não viral, mas viralizável) converte-se em instrumento de pressão reverberada ad nauseam em meios de comunicação de massa: com igrejas fechadas e a perseguição de rezadeiras intramuros, sempre resta o culto soturno de cada noite, em rede nacional, ministrado por uma dupla de fantoches empolados e empolgados pela autoridade de uma “ciência” que desconhecem infinitamente.
Quid veritas, senão propaganda?, concordam, sob o véu de pergunta retórica, Pilatos e Goebbels, no encontro que Dante não reportou mas bem pode ter acontecido em algum círculo profundo do inferno. É tudo uma questão agronômica, e o processo é curto: toma-se por semente o risco de doença e morte; planta-se e aduba-se o solo fértil dos cérebros impressionáveis com retórica enviesada e semiótica de imagens trágicas alternadas com cenas emotivas; rega-se o canteiro com a água turva da insegurança confusa e do paradoxo (com pitadas de dissonância cognitiva e estimulação contraditória); brota a muda do receio; medra a árvore do terror; finalmente desenvolve-se o fruto azedo da paranoia, colhido em safra recorde – alimento que insufla (e é insuflado por) poderes dormentes que, como visto, são doces e hão de, em doses calculadas de aliciamento salvífico, açucarar o amargor histérico generalizado.
Já vimos que os poderes de império, dieta e igreja têm lá seus mecanismos de freios e contrapesos, a fim de assegurar a equilateralidade do triângulo e um mínimo de harmonia geral. Mas, se por vezes alguma das variantes do poder resolve engolir as demais, concentrando-as, como se as unifica, quem as concentra? Na atual crise, rutila um símbolo, forjado por uma ideologia: a ciência (ou pseudociência), nos moldes do cientificismo, brandida como porrete a espancar a verdadeira dialética, a calar vozes divergentes, quebrando-lhes os dentes e arrancando-lhes a língua, impondo um pensamento único, dogmático, amoral, positivista, totalitário – enfim, servindo para o inverso do que se conhece, no mundo real, por ciência.
Como observa Trevor Thomas[2], cientificismo não é ciência, mas uma farsa ideológica confundida com ciência, um abuso da autoridade e do método científicos, com o objetivo de implantar uma tirania tecnocrática cujos entusiastas enxergam, na atual pandemia, a oportunidade ideal para a submissão de todos a uma ditadura de especialistas controlados por uma elite global. Não é em nome da verdadeira ciência, mas em nome do símbolo cientificista que o poder de igreja busca a hegemonia, a coordenar o poder de dieta e o poder de império, colocando-os a seus pés e unindo-os a si contra todos, chegando, quiçá, ao anseio de uma “constituição global”. Novidade? Velha novidade.
Quase oito décadas antes de George Orwell escrever seu profético “1984”, o nosso Machado de Assis, no célebre conto “O Alienista”, levou ao extremo da caricatura a relação estabelecida entre uma pretensão de saber científico todo-poderoso e a concentração de poder(es) exercida em seu nome. Na estória – resumo-a para quem não a conhece -, o médico Simão Bacamarte, o alienista (espécie de ancestral do psiquiatra contemporâneo) retorna, após formar-se na Europa, à pequena Itaguaí, sua cidade natal no Brasil colonial, sinceramente ávido por beneficiar seus concidadãos com toda a ciência aprendida no além-mar. Como estudioso profundo da loucura humana, exímio farejador da insanidade alheia, Bacamarte não tardou a descobrir traços de perigosa insensatez em toda gente que o cercava, a ponto de ver-se cientificamente obrigado a fundar um hospício na cidade (a Casa Verde), protegendo a sanidade pública do temível ataque dos lunáticos.
Para a missão benemérita de comandar o manicômio, foram-lhe rendidos, pelos poderosos locais, todos os meios de ação necessários para salvaguardar a cidade de uma epidemia de demência, isolando profilaticamente os ensandecidos. A partir daí, coordenando sobranceiro os poderes locais, culminou o anti-heroi machadiano internando na Casa Verde, por loucos – com fundamento na mais castiça prática científica – a maioria dos habitantes da cidade. Resultou disso a Revolta das Canjicas, liderada pelo ambicioso barbeiro Porfírio, espertalhão que “lucidamente” enxergou, na sandice encoberta pelo saber científico do alienista alienado, a oportunidade de usá-la para seus propósitos de poder.
Pouco importa o final da estória, bastando destacar uma lição: a partir do momento em que o poder de igreja convence a todos da maluquez geral, há que restar um grão de sanidade para confinar todos na Casa Verde e jogar a chave fora, a pretexto da insanidade onipresente. Quem melhor que um arauto da “ciência” para engendrar tão benéfica medida sanitária, para deleite oportunista de “sãs” lideranças forjadas pelo medo da moléstia daninha?
Diz-se que nada acontece na vida política de um país que primeiro não esteja em sua literatura. Ao vermos hoje tantos Porfírios – sequiosos de poder mas bem disfarçados de caridosos servos dos Bacamartes modernos – a refestelar-se no exercício de sua partícula local da tirania global, não é absurdo crer que estejamos diante da “estória” repetida, marxianamente, como farsa.
De toda sorte, de médico e louco todos têm um pouco, e há tantos loucos médicos e médicos loucos batendo cabeça por aí “em nome da ciência” que chegamos, atônitos, a uma encruzilhada: ou mandamos às favas o cínico cientificismo em voga, readquirindo o pudor de usar a palavra ciência com a devida parcimônia, deixando ressurgir seu sentido original e permitindo um debate dialético digno do nome (para buscar atingir ao menos uma verdade aproximada), ou entregamos a órgãos político-burocráticos, submissos à chantagem cientificista, a chave do conceito de ciência e, por consequência, da Casa Verde (no caso, caro leitor, a sua casa, pouco importando a cor). A resposta do dilema é a mesma solução do enigma: quem nos governa, afinal? Por ora, a conclusão do mistério segue em suspenso.
[1] http://marquescanto.blogspot.com/2011/11/revisao-iniciacao-cientifica.html?m=1