Leonam dos Santos Guimarães
Doutor em Engenharia, Diretor de Planejamento, Gestão e Meio Ambiente
da Eletrobras Eletronuclear e membro do Grupo Permanente de Assessoria do Diretor-Geral da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA).
O medo da energia nuclear se estabeleceu na sociedade desde que foi apresentada à humanidade pelos holocaustos de Hiroshima e Nagasaki em 1945, sob a forma do que se poderia chamar “o pior caso de marketing da História”. Ele segue seu caminho através de nossa cultura e nunca está longe nas discussões públicas sobre política nuclear.
A sociedade tem muitos mecanismos de enfrentar esse medo, seja pelo humor negro do Dr. Strangeloveou de Holmer Simpson, por um lado, ou seja pela hiper-racionalização e sistematização lógica do estrategista militar Herman Kahn, pelo outro. Historicamente, entretanto, o medo conviveu, durante algumas décadas, com uma esperança salvadora, isto é, o “átomo para paz” como redentor da humanidade.
Esta segunda percepção, porém, passou a se degradar rapidamente a partir do início da década de 80, após o acidente, sem vítimas nem dano ambiental, da usina nuclear de Three Miles Island,nos EUA em 1979. Ironicamente, este acidente ocorreu 12 dias após Hollywood lançar o filme “Síndrome da China”, estrelado por Jane Fonda e Jack Lemmon.
Até então, a indústria cinematográfica americana tinha explorado exaustivamente o medo das armas nucleares em inúmeros filmes nas décadas de 50, 60 e 70. “Síndrome da China” foi o primeiro filme a explorar o medo nuclear a partir de usinas de geração elétrica, ou seja, de um uso pacífico, que se expandiam enormemente nos EUA nessa época.
Com respeito às armas nucleares, o medo é, em grande medida, necessário. Suas origens imediatas não são muito surpreendentes, pois as imagens de Hiroshima e Nagasaki são persistentes. Qualquer tecnologia que faz a sua estreia mundial pondo em chamas dezenas de milhares de civis é, certamente, temida com toda razão.
O medo está presente em todas as avaliações sobre armas nucleares, sejam a favor ou contra. Aqueles que são contra querem acabar com a possibilidade de novos horrores e aqueles que são a favor transformam o medo em uma ferramenta para manter certa ordem global, desencorajando inimigos de fazer coisas que eles próprios prefeririam não fazer.
Para as aplicações pacíficas da energia nuclear, o medo é uma questão mais complexa. Essas aplicações foram inicialmente concebidas para constituírem o lado positivo da tecnologia nuclear, os "átomos para a paz", em oposição aos "átomos para a guerra", que eram muito mais proeminentes na década de 1950. O medo, neste caso, entrou pela porta dos fundos, através do potencial de ocorrência de acidentes em grandes reatores nucleares levando à contaminação radioativa do público e meio ambiente.
Entretanto, apesar das enormes diferenças no uso e na tecnologia empregada, o medo do nuclear faz pouca distinção entre armas e usinas de geração nucleoelétrica. Aqueles que se opõem às usinas nucleares mobilizam e incentivam esse medo. Já aqueles que as defendem buscam dimensioná-lo racionalmente por meio de discussões técnicas sobre análise de riscos. Entretanto, o medo, por definição, é um sentimento e, por isso mesmo, não subordinado diretamente aos ditames da razão.
Será que o medo que as tecnologias nucleares despertam nas pessoas do mundo de hoje é exagerado ou subestimado? Peça avaliações a uma dúzia de especialistas e você provavelmente terá uma dúzia de respostas diferentes. A resposta emocional à tecnologia nuclear é controversa porque tem raízes profundas no imaginário social.
Se tivermos medo demais, agimos irracionalmente, até de forma contra produtiva. Se tivermos muito pouco medo, podemos nos expor a riscos inaceitáveis. Mas quem pode dizer qual seria a dosagem equilibrada que a “quantidade de medo” deveria ter? Seria o fato de que os nossos medos do nuclear serem simultaneamente muito grandes e muito pequenos um dos muitos paradoxos da era nuclear?
Vários historiadores têm produzido obras sobre a evolução dos medos e esperanças humanas em relação à tecnologia nuclear. O mais abrangente, e ambicioso em métodos e objetivos, foi Spencer R. Weart, no seu livro “Medo Nuclear: Uma História de Imagens”, publicado em 1988, num tempo de percepção pública das questões nucleares aumentada pelo renascimento da Guerra Fria, durante o governo Reagan nos EUA e o acidente de Chernobyl, na URSS liderada por Gorbachov. O autor revisita a obra em 2012, duas décadas depois e muito distante do contexto de final da Guerra Fria da obra original, com seu livro “A Ascenção do Medo Nuclear” em 2012.
Os livros de Weart cobrem a história das atitudes do público em relação a tecnologia nuclear, começando com a descoberta inicial da radiação e sua associação quase imediata tanto com a fonte da vida como a causa da morte.
Ele aborda historicamente muitos dos temas sobre as percepções da sociedade em face de evolução da energia nuclear que ainda permanecem presentes mais de um século após a descoberta das radiações ionizantes.
Entretanto, o que torna os livros de Weart únicos e excepcionais é que ele não apenas se limita à abordagem histórica. Ele vai mais longe, adentrando os campos da psicologia e política para analisar o que, na sua visão, seria o “imaginário nuclear”.
Essas imagens mentais tem uma grande influência na psique humana, pois combinam raios que curam e raios que matam, pragas e contaminações invisíveis que prejudicam não só os vivos, mas também os que virão a nascer, que são narrativas comuns nas mitologias antigas. É também evidente que o espectro de uma guerra nuclear é facilmente associado às crenças em um fim do mundo apocalítico, presente em quase todas as religiões.
Weartargumenta que o imaginário nuclear é um recurso cultural usado seletivamente para avançar várias agendas. Nenhuma surpresa nisso, mas Weart observa ainda que a imagem nuclear é poderosa o suficiente para sair do controle de quem está tentando usá-lo.
Quando o governo americano quer que as pessoas tenham medo das armas nucleares russas, de modo que elas apoiem o desenvolvimento de suas próprias armas nucleares, este mesmo medo pode levar a uma rejeição de outras políticas, por exemplo, as pessoas não quererem mais usinas nucleares localizadas perto delas (“not in my backyard”, ou NYMBY).
Todo alarmismo, seja nuclear, ambiental, político, econômico ou médico, fomenta o medo irracional. Esta forma de medo é o mais eficaz meio de controle social: sociedades amedrontadas reagem como manadas.
Lembremo-nos da célebre historia do rato que provoca o “estouro” da manada de elefantes. Em nome da redução de uma ameaça superestimada, mil vezes repetida pelo alarmismo, as lideranças podem agir livremente em busca de outros objetivos, alheios à redução da própria ameaça apregoada.
Medo, em geral, é uma faca de dois gumes: Quando mobilizado, ele pode ser muito poderoso, mas uma multidão amedrontada rapidamente se torna incontrolável, ou transfere o controle para um líder desequilibrado. O medo nuclear pode ser, portanto, especialmente problemático.
A energia nuclear tem sido historicamente associada tanto a um medo apocalíptico como a uma esperança salvadora. O medo das tecnologias nucleares é uma faca de dois gumes, pois pode ser mobilizado para reduzir os inerentes riscos como também pode deformar a percepção desses riscos.
Há inúmeros exemplos de seres humanos, mesmo especialistas, que avaliam mal os riscos e qualquer abordagem que se baseia apenas na transparência, isto é, simplesmente dizer às pessoas os fatos reais, pode levar a mal-entendidos, desconfiança e revolta do público.
Por outro lado, o instinto e a imaginação humana também podem levar a decisões erradas. Encontrar novas formas de levar ao público informações sobre as questões relevantes, sem dependência excessiva de imagens simbólicas, seja do apocalipse ou da salvação, deve ser um dos principais focos da indústria nuclear mundial.
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