J. R. Guzzo
O Estado de S.Paulo
19 de abril de 2020
Ninguém nunca imaginou uma coisa dessas, nem poderia mesmo imaginar, mas aí está: a epidemia trazida pelo coronavírus revelou uma súbita paixão das autoridades, políticos e elites pela solução dos problemas de saúde pública no Brasil.
Saúde pública, para encurtar a conversa, significa uma coisa só: doença de pobre. E por que os barões que decidem as coisas neste país iriam se preocupar com dores que não doem neles? Para essa gente, saúde significa planos médicos cinco estrelas, cobertos pelo dinheiro que você paga de impostos, doutores que cobram acima de R$ 1 mil a consulta e transporte de helicóptero para os hospitais mais caros do Brasil.
São até capazes, de vez em quando, de fazer algum discurso piedoso sobre o assunto. Mas as suas lágrimas secam bem depressa.
O desprezo pela saúde por parte dos governantes brasileiros é uma questão de fatos que estão acima de dúvida; não pode ser disfarçado por nenhuma devoção repentina “pela vida”, como eles descobriram em sua cruzada contra a covid-19.
Vamos aos testes práticos. Em pleno ano de 2020, cerca de 50% da população brasileira continua sem ter saneamento básico. A culpa disso não é dos marcianos. É dos que governam o Brasil, em todos os níveis – e de mais ninguém, pois só eles têm a autorização legal para agir na área. Político brasileiro, como se sabe, tem horror a fazer esgoto: é obra que fica embaixo da terra, que ninguém vê e que não rende voto.
O pior é que eles não resolvem e não deixam ninguém resolver. Jaz há mais de um ano no Congresso, sendo pouco a pouco desfigurada, a nova Lei do Saneamento Básico que abre o setor à iniciativa privada. Por que não anda? Porque governadores e prefeitos detestam a ideia – querem manter vivos, pelo máximo de tempo possível, os atuais “contratos” com as estatais que nada fazem para melhorar aqueles horrendos 50%, mas são um dos seus mais queridos cabides de emprego e focos de influência política.
A desgraça não é apenas a falta de esgotos. Continuam operando no Brasil cerca de 3 mil “lixões” ao ar livre. Por lei, já deveriam estar fechados há quatro anos; a lei “não pegou”. Como acreditar, diante desses monumentos em honra à doença, em qualquer governante brasileiro que agora faz discurso em defesa da “saúde pública”?
São Paulo, a maior cidade do Brasil, é atravessada ao longo de 25 quilômetros por dois dos mais infames esgotos a céu aberto do mundo, o Rio Tietê e o Canal do Pinheiros. Mananciais de água que abastecem o município estão poluídos por favelas que se instalaram às suas margens, há anos, com a cumplicidade direta da Prefeitura.
As autoridades não tocam na Cracolândia do centro da cidade, um dos mais violentos focos de tuberculose do Brasil – ao contrário, chegaram a dar mesada para os drogados que vivem ali, e qualquer tentativa de intervir na área é denunciada como ato de “higienização” (a palavra “higiene” tem sentido pejorativo no mundo oficial – a menos quando aconselham as pessoas a lavar as mãos em época de epidemia).
“Opção pela vida”? Na favela de Paraisópolis, para a qual ninguém dá cinco minutos de atenção sincera, há 45.000 pessoas por quilômetro quadrado – em Taboão da Serra, que tem a maior densidade demográfica do Brasil, são 14.000 e na cidade de São Paulo, cerca de 7.500. Como é possível pensar em saúde pública quando os que mandam e influem são indiferentes à uma usina de doenças igual à essa? Como exigir “distanciamento social” num lugar como Paraisópolis?
O Brasil só descobriu que é preciso cuidar da saúde pública quando o coronavírus chegou à classe média e aos ricos. Vai esquecer isso assim que a tragédia passar.
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A dura realidade é que ninguém está preocupado com a sua vida…
Texto to articulista Felipe Fiamenghi do Jornal da Cidade, São Paulo/SP.