Jorge Vasconcellos
O futuro do Haiti é uma incógnita desde o fim das operações da Missão de Paz das Nações Unidas (Minustah), no último dia 15, após 13 anos.
Existe o consenso de que capítulos melhores da história da ilha caribenha dependem, necessariamente, da estabilidade política e de uma atuação mais eficaz do sistema de justiça e de segurança pública. “Conseguimos trazer ao país uma certa estabilidade com a nossa atuação, mas sabemos que o Haiti é como um vulcão adormecido que, a qualquer nova instabilidade política, ou mesmo um novo desastre natural, pode entrar outra vez em erupção”, disse ao Correio o general Ajax Porto Pinheiro, o último brasileiro a comandar as operações militares das forças de paz da ONU.
Ele observou que os episódios mais violentos da história recente do país estiveram atrelados a momentos de insegurança política. Com cerca de 10 milhões de habitantes, o Haiti é a nação mais pobre das Américas, desprovida de condições técnicas e materiais para manter os avanços trazidos pelas forças da ONU.
Nessa condição, agora recebe nova ajuda externa, com o início das atividades da Missão das Nações Unidas para o Apoio à Justiça (Minujusth), que foca na capacitação da Polícia Nacional Haitiana (PNH) e no aprimoramento da atuação do Poder Judiciário local.
A Minujusth mantém, no Haiti, um grupo de operadores do direito para qualificar a atuação do Judiciário e outro formado por 1.275 policiais de diferentes países. Estes últimos darão prosseguimento às ações iniciadas pelas forças de paz para a capacitação e modernização da PNH, criada em 1995 em substituição ao Exército — extinto pelo expresidente Jean-Bertrand Aristide.
O contingente da PNH deve chegar a 15 mil até o fim do ano, com agentes formados pela Academia Nacional de Polícia. Com esse número, o governo do Haiti e a ONU esperam dobrar a cobertura da segurança pública no policiamento ostensivo, nos tribunais, no sistema penitenciário e nos mecanismos de direitos humanos.
“A Minujusth vem como uma nova janela de oportunidades para consolidar a estabilidade política adquirida nos últimos anos, a fim de abrir caminho a um futuro democrático, estável e próspero para todos os haitianos”, disse ao Correio a porta-voz Sophie Boutaud de la Combes.
“A ONU continua empenhada e está pronta para continuar a trabalhar com o governo, sob sua liderança, para as metas de desenvolvimento sustentável, preparando o caminho para uma maior estabilidade, crescimento equitativo e desenvolvimento sustentável, que beneficiem o povo haitiano”, acrescentou.
Violência
Ao abordar o legado da Minustah, que foi militarmente comandada pelo Brasil, com o emprego de mais de 37 mil integrantes de forças armadas de diferentes países, Sophie citou a redução dos índices de criminalidade, alcançada com o desenvolvimento de projetos de pacificação em áreas sensíveis e de reinserção social de ex-criminosos.
“A vitória mais ilustrativa contra o crime foi a redução dos casos de sequestros em mais de 95% em um período de 10 anos, com a diminuição de 722 episódios em 2006 para apenas 25 no período de janeiro até julho deste ano. Os indicadores de violência diminuíram significativamente e estão entre os mais baixos desde 2003, quando os maiores índices foram registrados”, afirmou a porta-voz.
O ano de 2003 foi marcado pela escalada de violentos confrontos entre partidários e opositores de Aristide, que deixou o poder no ano seguinte, em meio a uma série de denúncias de corrupção.
Foi nesse ambiente altamente conflagrado que a Minustah chegou ao país em 2004, tendo adiado o fim de suas operações por diversas vezes, em função de sucessivos episódios de violência — geralmente motivados por crises políticas — e de desastres naturais, como o terremoto de 2010 e o furacão Irma, no início de setembro passado.
“A ONU continuará a apoiar a estabilidade e a segurança do Haiti, bem como seu empenho em implementar as Metas de Desenvolvimento sustentável através da nova missão, a Minujusth, e das 19 agências, fundos e programas das Nações Unidas no Haiti”, disse Sophie de la Combes.
“A nova missão da ONU defende a reforma da lei no Haiti, que deve ser compatível com os direitos humanos, ancorando as melhores práticas. Um fato particular, no próximo período, incluirá a adoção e a implementação dos códigos dos procedimentos penais, a lei sobre o auxílio judiciário e a lei da prisão”, frisou a porta-voz, acrescentando que, no Haiti, 70% da população carcerária são de réus encarcerados por longos períodos à espera de julgamento. “Às vezes, por mais tempo que a pena máxima que eles receberiam se fossem condenados pela alegada infração pela qual foram presos”, observou.
Três perguntas para General Ajax Porto Pinheiro, último militar brasileiro a liderar as tropas da Minustah
Como o senhor definiria a experiência de comandar por dois anos as forças de paz no Haiti?
Eu não imaginava que pudesse aprender tanto depois de tanta experiência acumulada no Exército e na minha vida pessoal. Era um desafio muito grande. Primeiro, porque eu comandava a tropa, mas era dirigido por civis das Nações Unidas, fato inédito para mim.
A ONU controlava todo o processo, e eu, apenas a parte disciplinar da tropa. Além disso, eu nunca tinha comandado uma tropa tão heterogênea, com militares vindos de diversos países, com culturas bastante diferentes entre si. Mas o sistema da ONU funciona muito bem, e eu não tive maiores problemas. Pelo contrário, foi a maior experiência da minha vida, pessoal e militar. Poderia dizer que foi a aventura militar da minha vida.
Apesar dos avanços conquistados pela missão de paz na estabilização do Haiti, principalmente em termos de segurança pública, ainda há o risco de uma nova explosão de violência no país, como a iniciada em 2003?
O Haiti registra, hoje, cerca de mil casos de homicídios por ano. Não se trata de uma média alta para um país com 10 milhões de habitantes. Mas os maiores episódios violentos na história da nação se deram em momentos de profunda instabilidade política.
A violência no Haiti está muito atrelada à questão política, à situação socioeconômica. Em momentos de crise, são comuns confrontos entre manifestantes. Nessas oportunidades, eles vão para as ruas armados de paus, facões e pedras. Houve também graves episódios de violência durante desastres naturais, como terremoto e furacões, em função de saques e de outros conflitos.
E como está a situação no momento?
Hoje, felizmente, o Haiti vive um momento de calmaria, iniciado em fevereiro deste ano com a eleição do presidente Jovenel Moise. Embora haja protestos contra a política econômica que ele vem adotando, os atos são localizados e não representam ameaça à estabilidade do país. Para se ter uma ideia, entre 1986 e 2004, o Haiti teve 15 presidentes, em meio a golpes e a outras tensões.
E, a partir de 2004, foram três chefes de Estado eleitos e um indicado pelo Congresso, o que mostra uma crescente estabilização do ambiente político do país. Conseguimos, com a missão de paz, trazer certa estabilidade, mas sabemos que o Haiti é como um vulcão adormecido que, a qualquer nova instabilidade política, ou mesmo um novo desastre natural, pode entrar outra vez em erupção. Daí a importância do trabalho da nova missão da ONU, a Minujusth, focada no aperfeiçoamento da polícia e da Justiça haitiana.