O perigo cada vez maior do ativismo judicial
Editorial Gazeta do Povo
19 Novembro 2018
" A eleição de Jair Bolsonaro (PSL) para a Presidência da República e de um número significativo de deputados federais e senadores mais alinhados a pautas consideradas conservadoras mostra o repúdio da população a certas plataformas, que agora terão muito mais dificuldade de passar pelo Poder Legislativo ou pela caneta presidencial. O brasileiro se mostrou mais firme, nas urnas, na defesa da vida humana da concepção até a morte natural, a rejeição a políticas lenientes com o tráfico de drogas e o repúdio a ferramentas de engenharia social como a ideologia de gênero.
No entanto, além da “resistência” prometida pela oposição insatisfeita com a vitória de Bolsonaro, parece surgir um outro tipo de oposição a este novo perfil nos poderes Executivo e Legislativo, e que consistiria em um aumento exponencial no ativismo judicial, em que o Poder Judiciário arroga para si poderes que não tem e atua como legislador, em contradição explícita com o que decidirem os representantes eleitos pelo povo, às vezes até mesmo contrariando o que afirma a lei maior do país, a Constituição Federal. E esta prática tem como maiores patrocinadores justamente aqueles que mais deveriam lutar para proteger a Constituição: os ministros do Supremo Tribunal Federal.
Em um intervalo de pouquíssimos dias, três ministros deram declarações muito preocupantes a respeito da maneira como encaram a escolha popular feita em outubro. Quem puxou o coro foi Cármen Lúcia, que recentemente deixou a presidência da corte. Em um evento sobre os 30 anos da Constituição, ela disse que “estamos vivendo uma mudança (…) conservadora em termos de costumes. Às vezes, na minha compreensão de mundo, e é só na minha, não significa que esteja certa, perigosamente conservadora”. No mesmo evento, Ricardo Lewandowski disse temer retrocesso na garantia de direitos.
Os ministros deixam de lado a postura técnica para adotar um viés que não é apenas ideológico, mas totalitário
Mas quem foi mais explícito na intenção de exercer o ativismo judicial foi Luís Roberto Barroso. No dia 12 de novembro, durante o I Congresso Internacional de Direito e Gênero, no Rio de Janeiro, Barroso defendeu que a questão do aborto deve ser resolvida pelo Judiciário, e não pelo Legislativo. “Estão em jogo direitos fundamentais da mulher e do feto. Resta fazer uma ponderação de qual deve prevalecer. Esse é um papel típico do Judiciário. A característica dos direitos fundamentais é que independem de legislador e da aprovação da maioria. A autonomia individual da mulher é um direito fundamental em jogo”.
Os equívocos de Barroso a respeito desta questão são inúmeros, a começar pelo seu entendimento de que haveria um “direito fundamental à autonomia individual da mulher” que se sobrepõe ao direito à vida do feto indefeso e inocente. Mas, para além dos erros conceituais cometidos pelo ministro a respeito do tema específico do aborto, o que está subjacente nas falas do trio é a intenção de fazer do STF a primeira linha de resistência a um “avanço perigosamente conservador” que estaria em curso no país; a vontade dos 11 ministros valeria mais que a vontade da maioria ou as deliberações do legislador, para usar as palavras de Barroso.
Aqui, revela-se uma compreensão bastante limitada da parte dos ministros. É da própria natureza da democracia que o debate público esteja aberto a um leque amplíssimo de posições a respeito dos mais diversos temas, inclusive os temas morais. Este leque abarca diversas concepções de Estado e do que seja o bem comum, noções de verdade, beleza e bondade, e a democracia dá carta de cidadania tanto às ideias mais à esquerda quanto as liberais, as libertárias e, obviamente, ao ideário dito “conservador”, que pode inclusive ser revolucionário quando reafirma verdades conquistadas ao longo de séculos, como a dignidade da vida humana, o valor da liberdade e a existência de direitos humanos inalienáveis.
Bruno Garschagen: Quem tem medo do conservadorismo? (12 de novembro de 2018)
É dentro deste leque – que só exclui aquelas concepções frontalmente opostas à própria democracia e os ataques frontais à dignidade humana – que cada sociedade faz suas escolhas. Elas se refletem, por exemplo, na Constituição, resultado de uma construção que envolveu a participação de toda a sociedade, por meio de uma assembleia constituinte eleita. Mas também está presente no ato de escolher seus governantes e os representantes que elaborarão a legislação ordinária. Neste concerto em que cada poder tem seu papel determinado, o papel do Judiciário é de receber as demandas da sociedade e resolvê-las sempre de acordo com a Constituição.
Assim, se estamos tratando de ideias perfeitamente defensáveis dentro de uma democracia, nada mais natural que o locus do debate seja o Legislativo, e não o Judiciário. Isso é reconhecido por filósofos políticos de diversos matizes, de Robert George a John Rawls. No entanto, o trio de ministros – e Barroso, mais especificamente – não enxerga a questão desta maneira.
Ao deixarem implícito que, ao menor sinal de “conservadorismo”, o Supremo chamaria para si a responsabilidade de dar a palavra final, à revelia do legislador e da vontade popular, mesmo daquela traduzida na Constituição, os magistrados anunciam a intenção de mutilar esse leque de posições legítimas, excluindo dele um determinado posicionamento. Isso fere frontalmente a própria democracia, que garante à sociedade o direito de escolher como deve conduzir seu futuro.
O que ocorre, neste caso, é uma opção a priori da parte dos ministros, que declaram preferir as próprias opiniões àquelas emanadas pela sociedade dentro de um sistema democrático, excluindo de antemão todo um conjunto de pensamento do qual discordam. Os ministros deixam de lado a postura técnica que se deveria esperar dos guardiões da Carta Magna para adotar um viés que não é apenas ideológico, mas verdadeiramente totalitário, pela pretensão de decidir o que parte significativa da população pode ou não pensar. Transforma-se, assim, o Judiciário em um superpoder voluntarista, que na prática ignora a saudável separação entre poderes e viola o próprio espírito da democracia."
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