Folha de São Paulo
31 Outubro 2021
Às vésperas das celebrações dos 200 anos da Independência do Brasil, governo busca reabilitar imagem de integrantes da família real satirizados em filmes, novelas, livros e desfiles de Carnaval.
Historiadores também defendem uma interpretação mais nuançada que vá além de retratar dona Maria 1ª como louca, dom João no papel de um gordo indolente, Carlota como ninfomaníaca e dom Pedro como mulherengo.
Marco da retomada do cinema nacional, "Carlota Joaquina", de 1995, apresenta logo nos primeiros minutos a protagonista, vivida por Marieta Severo, como uma "mulher de peitos grandes e corpo fogoso", além de mostrar dom João VI, interpretado por Marco Nanini, empanturrando-se de frango.
Em "O Quinto dos Infernos", minissérie da TV Globo de 2002, dom Pedro 1º (Marcos Pasquim) aparece frequentemente de torso desnudo, reforçando sua imagem popular de garanhão.
No Carnaval de 2008 do Rio, em que homenageou o bicentenário da chegada da família real ao Brasil, após ter fugido das tropas de Napoleão Bonaparte, a escola São Clemente entrou na Marquês de Sapucaí com dona Maria, "a louca" na comissão de frente, vivida pela atriz transgênero Rogéria.
"Foi a coisa mais difícil que eu já fiz na avenida. Fiz tudo para parecer uma louca", disse Rogéria, na ocasião.
Os personagens retratados nestas produções estão entre os mais importantes da história nacional, fundamentais para a formação do Brasil como país independente, mas a imagem que hoje se tem deles, influenciada pela indústria cultural, há tempos incomoda estudiosos do período.
A aproximação das comemorações do bicentenário da Independência tem despertado em alguns historiadores o desejo de promover um certo resgate da reputação dessas figuras e de outras menos chamativas, mas também relevantes.
O governo de Jair Bolsonaro, a quem em tese compete a organização de eventos para marcar a efeméride, já deixou claro esse incômodo.
Fundada em 1810 por dom João VI, a Biblioteca Nacional menciona esse objetivo em seu caderno de projetos para o bicentenário. O documento busca valorizar "personagens que se tornaram chacotas para o público em geral, através da TV e do cinema, quando a historiografia é capaz de trazer conteúdo objetivo e sério sobre a família que reinou no Brasil, vinda de Portugal".
"[É preciso] Apresentar a dimensão familiar da monarquia, da forma como se constituiu o poder no Brasil, e como questões centrais como autoridade, bem comum, religiosidade, sacrifício, vícios, doações e abusos, vinham à tona", diz a instituição.
Em maio deste ano, a biblioteca promoveu uma exposição virtual sobre dona Maria, em que o adjetivo "a louca" foi deixado de lado. Em seu lugar, privilegiou-se o título formal da soberana, dona Maria I.
"É importante dignificar os fundadores da nação e superar um cacoete de negação que é muito forte", diz Luiz Ramiro Jr., coordenador-geral do centro de pesquisa e editoração da Biblioteca Nacional, que tem participado da organização dos eventos relacionados ao bicentenário.
Para ele, usar a sátira como referência para personagens históricos é algo que pode levar o tema ao conhecimento de mais pessoas, mas com riscos embutidos no processo. "À medida que você faz chacota dessas figuras centrais, isso decanta sobretudo em livros didáticos", afirma.
O governo federal tem relação próxima com movimentos monarquistas e representantes da família imperial (Orléans e Bragança), que frequentemente participam de manifestações em defesa de Bolsonaro.
Na última quarta-feira (27), a família imperial divulgou nota repudiando a caracterização de dom Pedro II pela novela "Nos Tempos do Imperador", da Rede Globo. A trama dá destaque para a relação extraconjugal do imperador (Selton Mello) com a condessa de Barral (Mariana Ximenez).
"O maior biógrafo de Dom Pedro II é, sem dúvida alguma, o povo brasileiro, que, passados quase 130 anos de sua morte no injusto e penoso exílio, não se esqueceu da grande respeitabilidade, da paternalidade e, sobretudo, da brasilidade de sua figura, e por isso mesmo rejeita as investidas mentirosas contra a sua memória", diz o comunicado.
No Poder Executivo, autoridades da área da Cultura são abertamente saudosistas da época do Império, como o presidente da Biblioteca Nacional, Rafael Nogueira, e o superintendente do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) no Rio de Janeiro, Olav Schrader.
No Congresso, militam pela monarquia, entre outros, os deputados federais Carla Zambelli (PSL-SP), Bia Kicis (PSL-DF) e Luiz Philippe de Orléans e Bragança (PSL-SP), que é descendente direto da família imperial.
Uma representação mais ao gosto de bolsonaristas se aproximaria do retrato feito no filme "Independência ou Morte", produzido em 1972, para o sesquicentenário da separação de Portugal.
Com Tarcísio Meira e Glória Menezes no elenco, apresenta uma perspectiva tradicional e heroica do evento histórico, bem ao agrado dos militares que estavam no poder.
Nada mais distante do que abordagens que colocam dona Maria como louca, dom João no papel de um gordo indolente, Carlota como ninfomaníaca e dom Pedro no figurino de mulherengo.
"Dona Maria foi uma mulher responsável pela criação de academias, assinatura de diversos tratados de comércio e diplomáticos. Muitos a adoravam, tanto que quando a família real vem para o Brasil ela recebe cartas pedindo que volte para Portugal", diz a historiadora Mary del Priore, autora de diversos livros sobre o período imperial, e uma das curadoras da exposição virtual da Biblioteca Nacional sobre a rainha.
"Muitas produções não têm nenhum compromisso com os trabalhos históricos que vêm sendo desenvolvidos. Gasta-se uma fortuna em novelas que passam uma imagem distorcida", afirma a pesquisadora.
Nascida em 1734, dona Maria tornou-se rainha em 1777. Para seus contemporâneos, era conhecida como "a piedosa", pelo fervor religioso, que a fez isolar da corte o Marquês de Pombal, prócer do iluminismo português.
A instabilidade mental começou na segunda década de reinado, acentuando-se após uma sucessão de perdas na família, especialmente a do primogênito, dom José, em 1788, aos 27 anos.
"Era uma mulher que hoje seria considerada profundamente depressiva. Ela perde o marido, o filho mais velho, a filha, netos e começa a interpretar isso tudo como uma espécie de maldição divina. Mas nunca foi louca de gritar", afirma del Priore.
O adjetivo louca, segundo a historiadora, é uma construção do movimento republicano português, a partir de fins de século 19, em uma estratégia de deslegitimar a monarquia.
Um dos maiores responsáveis por colar o termo à soberana foi o influente poeta modernista português Guerra Junqueiro (1850-1923). Em seu poema "Pátria", de 1896, Junqueiro escreve: "O espectro de D. Maria I (louca, furiosa, delirando) / Meu pai!…Meu pai!…Meu pai!…Meu Pai!… / Castigo eterno, chamas do inferno". A república portuguesa acabaria sendo proclamada em 1910.
No Brasil, dona Maria é reverenciada pela Marinha, mais especificamente pelo Corpo de Fuzileiros Navais (CFN), que a considera sua fundadora.
É dela a assinatura do decreto que criou a Brigada Real da Marinha, precursora do CFN, em 28 de agosto de 1797, embora a essa altura grande parte dos atos de governo já tivessem, na prática, passado para a responsabilidade de dom João VI.
"A criação da brigada, uma unidade de elite da Marinha, foi uma decisão visionária e estratégica, dado o contexto europeu da época. Ela se revelaria fundamental na decisão posterior de transportar toda a corte para o Rio de Janeiro, frente à ameaça de invasão napoleônica", diz o capitão de corveta Valdir Gouvêa Rego, encarregado do Museu do Corpo de Fuzileiros Navais, no Rio de Janeiro.
Dona Maria e dom João também são celebrados pelo evento que é considerado o "batismo de fogo" do Corpo de Fuzileiros Navais brasileiro, a tomada de Caiena (Guiana Francesa), em 1809, como retaliação à invasão de Napoleão.
Na Marinha, a soberana é homenageada de diversas formas. Em 2017, ganhou um quadro na Escola Naval, no Rio. Também é mencionada em "Viva a Marinha", uma das canções entoadas pela corporação: "Um brado levantemos à nossa rainha / Hip! Hip! Hip! Rá! Viva a Marinha", diz a letra.
Em nenhuma das referências é chamada de louca. "Eu prefiro reforçar o lado piedoso dela e seu papel para a criação de uma instituição militar que ajudou a manter a unidade do Brasil", afirma o capitão Gouvêa.
Da mesma forma, outros personagens históricos foram desfigurados pelo tempo, diz Mary del Priore.
"Dom João VI foi um grande diplomata por trás daquela figura bonachona, gorda e feia. Foi o homem que conseguiu escapar do grande Napoleão, que aterrorizava a Europa inteira. Não era um paspalho, como costuma ser apresentado", afirma.
Já sua mulher, Carlota Joaquina, "tinha gênio fortíssimo, era extraordinariamente inteligente, com projetos políticos". "Ela consegue para suas filhas casamentos maravilhosos, que era a coisa mais importante na época para uma mãe e rainha", diz a historiadora.
Da mesma forma, dom Pedro 1º é mais que apenas um homem permanentemente viril. "Não se joga luz sobre o fato de ter sido um pai excepcional. Estava sempre preocupado com a saúde dos filhos, com a caligrafia, se estavam aprendendo francês. Lembrava a eles que não bastava botar uma coroa na cabeça, era preciso ter conhecimentos", afirma del Priore.
Diretora de "Carlota Joaquina", Carla Camurati defende sua opção pelo uso do humor para contar a saga da família real.
"É uma história pitoresca, com uma dramaturgia incrível. A chegada da família real é o descobrimento do Brasil para o mundo e do mundo para o Brasil", afirma.
Camurati diz que desde pequena tinha curiosidade em conhecer mais dos personagens que lia em livros didáticos. "Eu havia estudado a família real na escola e sempre fiquei muito impressionada em saber por que Carlota batia o sapato e dizia que dessa terra [o Brasil] não queria nem o pó", diz.
O uso de uma linguagem mais próxima da comédia, diz a diretora, é uma maneira de levar a história para um público maior, mas sem que isso signifique desrespeito.
"Eu não estou debochando, estou, sim, tratando com humor, para as pessoas aprenderem e saborearem suas raízes. A melhor palavra para definir o filme, talvez, seja sátira, mais do que comédia. Todos os atores estão sérios, o Nanini canta com seriedade segurando um pedaço de frango. A gente em hora nenhuma quis fazer um escracho."
O filme alcançou marcas expressivas, superando 1,2 milhão de espectadores no cinema, além de ter amealhado diversos prêmios. "Isso mostrou que as pessoas se interessam por história, e que história não é uma coisa chata", afirma a diretora. "Não adianta acharmos que história são só as porcelanas ou as cadeiras que estão nos museus."
Essa opinião é secundada pelo carnavalesco Milton Cunha, autor do enredo da São Clemente em 2008. A escola carioca desfilou com o tema "O Clemente João 6º no Rio".
"A elite intelectual quer exercitar poder, legislar sobre os outros grupos humanos. Eu acho uma tirania. Não é possível que não entendam que, se for fazer história 'ipsis litteris', fica muito chato", afirma.
Além de ter colocado Rogéria (que morreu em 2017, aos 74 anos) como dona Maria, Cunha posicionou dom João VI em um carro alegórico com pessoas vestidas de frango dançando o minueto, em referência à imagem de glutão do príncipe regente.
"A carnavalização da escola de samba é justamente distorcer. Faz parte a não seriedade, a não precisão. Por conceito, não é aula de história, de ciência, parada militar, missa. Não tem esse compromisso."
Isso não significa, diz ele, que não haja preocupação com a realidade. O carnavalesco chegou a viajar para Portugal para fazer pesquisas e retratou no desfile o legado da família real no Rio de Janeiro, como a criação do Jardim Botânico, por exemplo.
O tema da escola foi uma encomenda do então prefeito do Rio, César Maia, que pediu um desfile respeitoso.
"É um tema complexo, portugueses no Rio de Janeiro encontrando índios, a negritude. O prefeito não queria que a gente sacaneasse. Pediu ‘Milton, faz homenagem, não vem com crítica, nada de dom João cagando atrás da moita’."
Na opinião do carnavalesco, o alcance de um evento popular, como o desfile de uma escola de samba, mais que compensa qualquer polêmica sobre a forma de representação dos personagens.
"A história do Brasil não é de domínio público. As pessoas sabem que teve uma portuguesada aqui, vieram rei, rainha, dom Pedro, mas só as pinceladas gerais. Não têm a perspectiva do que representou a chegada da família real."
Pesquisadora do Centro de Humanidades da Universidade Nova de Lisboa, a historiadora Isabel Lustosa diz que é necessário achar um equilíbrio entre a caricatura e a hagiografia.
Ela não rejeita por completo retratos pitorescos sobre personagens históricos, porque acabam tendo alguma relação com os fatos.
"São caricaturas baseadas em aspectos que as pessoas tinham de verdade. Dona Maria realmente tinha alguns ataques de loucura, mas no reinado dela também houve avanços na ciência. Ela não interrompeu totalmente o progresso do período pombalino. Essas imagens estereotipadas acabam obscurecendo outros lados da mesma personalidade", afirma a pesquisadora, autora de livros sobre o período imperial.
A linguagem de filmes e programas de TV, diz ela, é menos prejudicial que o culto à personalidade. "É muito ruim passar uma falsa noção de que o sujeito não tinha defeito nenhum, foi um verdadeiro herói. Essa popularização vejo como uma coisa menos negativa da que a glorificação."
Da mesma forma, diz a historiadora, a imagem de mulherengo de dom Pedro 1º deve-se muito a fatos reais, sobretudo o bem-documentado relacionamento dele com Domitila de Castro Canto e Melo, a Marquesa de Santos, sua amante mais conhecida.
"O tórrido caso de dom Pedro com a Marquesa de Santos não é fofoca, temos as cartas trocadas entre eles. É de deixar qualquer um ruborizado com tanta intimidade, e isso tem apelo popular."
Já a imperatriz Leopoldina muitas vezes é reduzida à imagem de esposa traída, quando foi muito mais que isso. Ela tem papel fundamental no processo de independência, por exemplo, tendo ajudado a convencer seu marido a declarar a separação de Portugal.
"Dona Leopoldina aparece como uma vítima de traição, que de fato ela foi. Mas era uma mulher culta, que na Áustria [onde nasceu] conviveu com [o escritor] Goethe e [o compositor] Schubert, educada na corte mais sofisticada da Europa. Ela tinha o projeto de criar na América algo parecido", afirma Lustosa.
Uma situação curiosa é a do patriarca da independência, José Bonifácio, que viveu um processo inverso ao de outros personagens históricos. Ele passou para a posteridade como uma figura sisuda em meio a uma corte bagunçada, embora essa representação de sua personalidade não seja exata.
"Ele tinha muito senso de humor, embora fosse autoritário também. Talvez a imagem de sisudez seja porque ele era o mais velho de todos na independência, com quase 60 anos. Para a época, era um ancião", diz a historiadora.
Lustosa aponta para a popularidade de livros de história entre o público em geral como prova de que o tema tem apelo crescente, ainda que isso continue causando algum estranhamento entre os especialistas.
"A gente se incomoda um pouco quando é historiador, você se assusta com alguns absurdos da forma como algumas histórias são contadas. De qualquer maneira, isso tem um papel de chamar a atenção do público em geral. E que bom que as pessoas se interessam pela história do Brasil", diz.
Dona Maria I (1734-1816)
Conhecida como "a piedosa" e, depois, "a louca". Em seu reinado, iniciado em 1777, reduziu a influência das ideias iluministas do Marquês de Pombal, embora tenha continuado fomentando as artes e a ciência. Com sinais de instabilidade, passou o poder ao filho, dom João 6º, em 1799.
Dom João VI (1767-1826)
Tornou-se regente após a morte do irmão mais velho, dom José, e da instabilidade da mãe. Com o reino ameaçado por Napoleão, fugiu para o Brasil com a família real, onde decretou a abertura dos portos e criou instituições como o Banco do Brasil, o Jardim Botânico e a Biblioteca Nacional.
Carlota Joaquina (1775-1830)
Nascida na Espanha, foi prometida a dom João 6º ainda criança. Com personalidade forte e ambições políticas, tinha um projeto de governar províncias no Rio da Prata. De volta a Portugal, foi importante para a ascensão do filho dom Miguel, contrário às ideias liberais, ao trono.
Dom Pedro I (1798-1834)
Quarto filho do casal dom João e Carlota, declarou a Independência do Brasil em 1822. Em 1831 abdicou do trono brasileiro e retornou a Portugal, para combater as forças antiliberais do irmão dom Miguel.
José Bonifácio (1763-1838)
Patriarca da Independência, foi conselheiro de dom João 6º, ministro do imperador dom Pedro 1º e tutor de dom Pedro 2º. Político, diplomata e escritor, foi um dos principais arquitetos do processo de separação do Brasil de Portugal.
Imperatriz Leopoldina (1797-1826)
Nascida na Áustria, casou-se com dom Pedro 1º em 1817 e teve com ele sete filhos, incluindo dom Pedro 2º. Durante breve regência, em 1822, sugeriu ao marido que decretasse a Independência.
Marquesa de Santos (1797-1867)
Nascida Domitila de Castro Canto e Melo, foi a amante mais importante e mais longeva de dom Pedro 1º, com quem teve duas filhas reconhecidas e ao menos três filhos não reconhecidos