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Emb Sérgio Duarte – A CONFERÊNCIA DE EXAME DO TNP E AS RESPONSABILIDADES DO BRASIL

A CONFERÊNCIA DE EXAME DO TNP E AS RESPONSABILIDADES DO BRASIL

 

SERGIO DUARTE

Embaixador. Presidente das Conferências Pugwash sobre Ciência e Assuntos Mundiais

Ex-Alto Representante das  Nações Unidas para Assuntos de Desarmamento.

 

A Décima Conferência de Exame do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) está marcada para agosto próximo, em Nova York. Deveria ter sido realizada em 2020, mas a pandemia da Covid-19 provocou sucessivos adiamentos.

 

Todos os estados-membros das Nações Unidas são parte do TNP, menos quatro. O Tratado reconhece cinco países como possuidores dessas armas: China. Estados Unidos, França, Reino Unido e Rússia. Todos os demais se obrigaram a não vir a desenvolvê-las, submetendo-se a verificação internacional do cumprimento dessa obrigação. Somente a Coreia do Norte, Israel, Índia e Paquistão não são partes do Tratado e desenvolveram seus próprios arsenais atômicos [1]. Em 1995 uma Conferência específica aprovou a extensão da vigência do TNP por prazo indeterminado. 

Dentre as nove Conferências de Exame do TNP realizadas até agora, cinco terminaram sem a adoção de um documento final de consenso, o que mostra a permanência de importantes divergências a respeito da implementação do instrumento.  Muito provavelmente essas divergências se repetirão durante a Décima Conferência. Além disso, o atual estado do relacionamento entre as duas principais potências nucleares – Estados Unidos e Rússia – faz prever dificuldades adicionais.

Um breve resumo dos antecedentes históricos do TNP poderá ser útil para esclarecer alguns pontos importantes relativos à participação do Brasil na gênese do instrumento.  Nos primeiros anos de sua existência as Nações Unidas atribuíam prioridade à completa eliminação do armamento atômico, na esteira do choque causado pela destruição de Hiroshima e Nagasaki. A primeira resolução da Assembleia Geral, em janeiro de 1946, reconheceu a necessidade de “tratar dos problemas decorrentes da descoberta da energia atômica” e instituiu uma comissão encarregada, inter alia, de elaborar um tratado de proibição das armas nucleares e outras armas de destruição em massa.

No entanto, a rivalidade e desconfiança entre as duas principais potências impediu qualquer progresso e a Comissão acabou sendo desfeita três anos depois. Vale lembrar que os Estados Unidos já dispunham de capacidade nuclear bélica desde 1945 e a União Soviética somente detonou seu primeiro artefato em 1949. A proliferação prosseguiu com a obtenção de armas nucleares pelo Reino Unido em 1952, pela França em 1960 e pela China em 1964.

Em 1961 o presidente Kennedy alertou o mundo para a possibilidade de que em poucos anos “quinze ou vinte” outros países seguissem o mesmo caminho.  Aos poucos, o interesse convergente dos poucos que já haviam obtido armas nucleares e de grande parte da comunidade internacional em conter a proliferação provocou intensos esforços nas Nações Unidas em prol da negociação e conclusão de um tratado sobre o tema. A partir de 1958 a Irlanda introduziu propostas nesse sentido e em 1965 a Assembleia adotou por consenso a Resolução 2028 (XX) [2], que solicitou ao Comitê das Dezoito Nações sobre Desarmamento (ENDC, na sigla em inglês) negociar um tratado de não proliferação de armas nucleares e definiu os quatro princípios nos quais deveria basear-se o futuro instrumento. 

Os dois primeiros desses princípios eram os de que o Tratado deveria conter um “equilíbrio adequado de obrigações e responsabilidades mútuas dos países nucleares e não nucleares”, e constituir “um passo no sentido do desarmamento geral e completo e, particularmente, do desarmamento nuclear”.

De 1966 a 1968 tive a honra de fazer parte da delegação brasileira no ENDC, em Genebra. O Comitê era composto por cinco países da OTAN, cinco do Pacto de Varsóvia e oito que não pertenciam a nenhuma das duas alianças militares[3], entre os quais o Brasil. A presidência era exercida conjuntamente pelas delegações da União Soviética e dos Estados Unidos.

Apesar da mútua hostilidade e profundas divergências as duas potências evidentemente estavam interessadas em evitar o aumento do número de possuidores de armas nucleares, garantindo para si a exclusividade, assim como em promover a percepção de legitimidade de seus arsenais. O ENDC se ocupou da questão da não proliferação durante os anos de 1965, 1966 e 1967 e nos três primeiros meses de 1967. Os co-presidentes apresentaram cada qual um anteprojeto de tratado e em seguida textos revistos. Finalmente negociaram entre si uma proposta conjunta.

Ao longo dos debates foram apresentadas diversas emendas e sugestões sobre o texto dos co-presidentes [4]. As emendas brasileiras visavam principalmente incluir compromissos juridicamente vinculantes de desarmamento e evitar óbices à pesquisa e uso da energia nuclear sem objetivos bélicos, inclusive a possibilidade de utilizar a tecnologia para realizar explosões com fins pacíficos [5].

O ENDC não logrou consenso sobre um projeto de tratado a ser elevado à Assembleia Geral. Diante disso, os co-presidentes propuseram um texto que a seu juízo incorporava opiniões e propostas apresentadas por vários membros, e após debates no Comitê introduziram diversas modificações. Esse novo texto tampouco obteve consenso e consta do Anexo I do Relatório enviado à Assembleia “em nome do Comitê” pelos co-presidentes [6]. Na 23ª Sessão da Assembleia novas emendas consentidas por aquelas duas delegações foram adicionadas ao anteprojeto de tratado.

Em 12 de junho de 1968 a Assembleia debateu emendas adicionais aceitas pelos dois co-presidentes do ENDC. Ainda assim, o texto final não satisfez uma parcela dos membros da ONU e o resultado da votação do projeto de resolução respectivo foi de 97 votos a favor, quatro contra e 21 abstenções, inclusive a do Brasil [7]. O fato de que cerca de um quarto dos membros das Nações Unidas na época preferiram votar negativamente ou abster-se revela as dúvidas e hesitações de um número considerável de estados sobre o TNP.  O Tratado entrou em vigor em 5 de março de 1970,  ao atingir 40 ratificações.

Apesar de criticado em razão de seu caráter desequilibrado e discriminatório, o TNP logrou consolidar-se como a pedra fundamental do regime de desarmamento e não proliferação nuclear, alcançando abrangência quase universal ao longo de suas cinco décadas de existência. Vários motivos explicam tal fato. Muitos países da área de influência norte-americana ou soviética o fizeram por ser aliados de uma ou outra das duas superpotências ou por não ter possibilidade de desenvolver, mesmo no longo prazo, uma indústria nuclear nacional com objetivos pacíficos e muito menos de produzir armamentos nucleares.

Outros, que tinham capacidade industrial relativamente avançada e/ou preocupações específicas de segurança [8], cederam a pressões de parte das principais potências, que buscavam ativamente a universalização do Tratado. Outros ainda, inclusive entre os membros e apoiadores do Grupo dos Oito, terão chegado à conclusão de que participar do TNP traria mais benefícios do que desvantagens. O único país a retirar-se do TNP até esta data foi a República Democrática da Coreia (RPDC), que posteriormente dotou-se de armas nucleares. Até hoje nenhum outro membro do TNP denunciou o Tratado, apesar do fato de que muitos continuam a criticar as deficiências nele contidas. O principal motivo de insatisfação ao longo das cinco décadas de existência do tratado tem sido a percepção da falta de interesse os países nucleares de cumprir os compromissos de desarmamento constantes do artigo VI do instrumento.

As questões da prevenção da proliferação de armas nucleares e do desarmamento nuclear continuaram sob análise nos órgãos sucessores do ENDC (a Conferência do Comitê de Desarmamento e a Conferência do Desarmamento), assim como em outros foros, nos quais o Brasil não deixou de defender durante muito tempo a posição de princípio de que preferia manter-se alheio ao TNP devido a sua convicção de que o Tratado deveria ter incluído compromissos explícitos e juridicamente vinculantes de desarmamento nuclear por parte dos possuidores e não restringir o uso pacífico da energia nuclear.

Com a prorrogação indefinida da vigência do TNP, em 1995 [9], a escolha se tornou clara: permanecer à margem de toda a comunidade internacional, com os ônus políticos e econômicos consequentes, ou abandonar a retórica crítica e procurar uma posição construtiva que pudesse favorecer os objetivos brasileiros. A essa altura a esmagadora maioria dos países não nucleares se mostrava convencida de que a renúncia à opção nuclear bélica convinha a seus interesses de segurança.

O Brasil foi um dos últimos a aderir ao TNP. Assinou-o em 1996 por proposta dos então Ministros da Justiça, das Relações Exteriores, do Exército, da Marinha, da Aeronáutica e do Estado Maior das Forças Armadas [10], aprovada pelo presidente da República. Em 2 de julho do ano seguinte o Congresso Nacional formalizou a adesão ao TNP por meio do Decreto Legislativo no. 65, de 2 de julho de 1998 [11]. O instrumento de adesão foi depositado em 18 de setembro e o Tratado foi promulgado pelo Decreto 2.864, de 7 de dezembro do mesmo ano. 

É importante assinalar que o comprometimento do Brasil com o uso exclusivamente pacífico da energia nuclear é anterior à decisão de assinar e ratificar o TNP. Ao fazê-lo, o Brasil já havia celebrado diversos acordos com a Argentina desde meados dos anos 80. Esse compromisso foi posteriormente reiterado em diversas declarações bilaterais e especialmente no Acordo de Guadalajara que criou a Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares (ABACC) em 18 de julho de 1991. Deve-se recordar que por iniciativa brasileira[12] foi negociado a partir de 1965o Tratado de Proibição de Armas Nucleares na América Latina e Caribe (Tratado de Tlatelolco), finalmente assinado e atificado em 1997, pouco mais de um mês antes da adoção do TNP pela Assembleia Geral. A condição de países mais adiantados no espaço latino americano e caribenho na pesquisa e utilização da energia nuclear para fins pacíficos impõe ao Brasil e à Argentina responsabilidades especiais de respeito aos compromissos globais e regionais assumidos, a fim de evitar desconfianças e mal-entendidos a respeito de seus respectivos programas nucleares.

A adesão brasileira ao TNP em 1996 foi, portanto, uma importante consequência da evolução da atitude dos demais países não nucleares em relação ao TNP e da atuação coerente do país nos temas de segurança internacional. Representou a necessária conciliação entre a atitude crítica até então assumida e o imperativo de evitar os efeitos negativos do isolamento internacional no campo nuclear que se prefigurava. No momento da adesão brasileira, somente os quatro países citados mais acima permaneciam à margem do TNP, todos já havendo desenvolvido armamento nuclear. O Brasil se via, assim, objeto de suspeitas que não correspondiam a suas aspirações de uso exclusivamente pacífico do átomo.

A longa resistência brasileira ao TNP causou incompreensões e atrasos ao desenvolvimento industrial e científico do país no campo nuclear, devido às restrições impostas pelos países mais adiantados ao fornecimento de materiais e tecnologias sensíveis. Serviu, porém, para que com competência, tenacidade e criatividade o país aos poucos pudesse construir com meios próprios o domínio do ciclo completo do combustível atômico. O Brasil está entre os muito poucos países capazes de produzir urânio enriquecido com tecnologia própria.

Desde a independência, da qual festejamos hoje dois séculos, o Brasil vem participando da construção dos grandes acordos internacionais que precederam e instituíram a ordem vigente. Nossa atuação nas conferências de paz da Haia em 1899 e 1904, na fundação da Liga das Nações em 1919 e da Organização das Nações Unidas em 1945, assim como no relacionamento com os vizinhos e na negociação dos principais instrumentos no campo nuclear credencia nosso país como parceiro confiável na busca do fortalecimento da paz e segurança. Essa longa tradição garante ao Brasil o respeito do restante da comunidade das nações e permite uma interlocução amena, constante e construtiva com todos os demais em busca de objetivos comuns. 

O Brasil não tem ameaças graves e diretas a sua independência, soberania e integridade territorial e não necessita de armas de destruição em massa para defendê-las e para fazer valer seus legítimos interesses. Por outro lado, a proliferação horizontal de armas nucleares, como também a proliferação vertical e tecnológica com o incessante desenvolvimento de novos tipos de armas por parte daqueles que já as possuem são contrárias aos objetivos de curto, médio e longo prazo do Brasil. Por isso, o Brasil se empenhou para o resultado positivo da negociação do Tratado de Proibição de Armas nucleares (TPAN) que se dirige às duas formas de proliferação. Em vigor desde 2021, o TPAN é uma importante contribuição para os objetivos do TNP.

Por esses motivos é importante preservar o capital político acumulado como resultado da coerência da atuação internacional e fiel adesão aos princípios básicos da boa convivência entre as nações, consubstanciados na Carta das Nações Unidas: igualdade soberana entre as nações, cumprimento de boa fé dos compromissos assumidos, solução pacífica de controvérsias, renúncia ao uso ou ameaça de uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de outros estados.

Os membros não nucleares do Tratado reconhecem as deficiências do instrumento, especialmente no que respeita ao desarmamento. Por outro lado, o TNP tem sido eficaz para ajudar a evitar a proliferação desenfreada, embora persistam preocupações quanto ao programa nuclear do Irã. Ao mesmo tempo, a Arábia Saudita afirma a intenção de obter armas nucleares se Teerã vier a fazê-lo.  Por sua vez, o presidente da Turquia recentemente protestou em voz alta contra o caráter discriminatório inerente ao TNP. Apesar dessas manifestações, a possibilidade de defecções é sem dúvida remota. Qualquer brecha no regime de não proliferação exporia o eventual perpetrador a pesadas sanções e isolamento econômico e diplomático, além de implicar repercussões altamente desestabilizadoras no nível sistêmico.

Após o ataque russo contra a Ucrânia, que havia restituído a Moscou as armas nucleares existentes em seu território, intensificou-se o receio de que países que se considerem especialmente vulneráveis venham a contemplar o abandono do TNP [13] e a aquisição desse armamento, com consequências altamente perigosas para a segurança de todos.  A situação do atual conflito armado e o crescimento da hostilidade entre a OTAN e a Rússia certamente se refletirão negativamente na próxima Conferência de Avaliação do TNP.  Diante da tendência à erosão da arquitetura de segurança internacional, da qual o TNP é parte importante, é necessário reforçar as garantias de segurança aos países não nucleares  e reafirmar a necessidade de pleno cumprimento dos compromissos de desarmamento. Os países que renunciaram de boa fé à opção nuclear bélica precisam sentir-se seguros em um mundo onde alguns poucos insistem em manter arsenais atômicos. A única forma realmente eficaz de evitar o uso de armas nucleares é sua completa eliminação. 

A história dos 50 anos de existência do TNP mostra a importância de prosseguir com determinação os esforços para o aperfeiçoamento e plena implementação do Tratado, em busca de um mundo mais estávele menos perigoso para todos. Como membro não nuclear do TNP, o Brasil desempenha parte ativa nessa tarefa.  Para a manutenção da paz e segurança a cooperação de toda a comunidade internacional é mais poderosa do que quaisquer armas nucleares.       

 


[1] Israel não confirma nem desmente oficialmente a posse de armas nucleares. A Coreia do Norte anunciou sua retirada do TNP em 2003.

 

[2] A Resolução 2028 foi adotada em 19 de novembro de 1965.

 

[3] Da OTAN: Canadá, Itália, Reino Unido e Estados Unidos. A França fazia parte do Comitê mas decidiu não assumir seu lugar. Do Pacto de Varsóvia: Bulgária, Polônia, Romênia, Tchecoslováquia e União Soviética. Grupo dos Oito: Brasil, Burma (hoje Mianmar), República Árabe Unida, Etiópia, Índia, México, Nigéria e Suécia. 

 

[4] O documento A/7072 rev.1contém a lista das emendas propostas pelas diversas delegações. As emendas brasileiras estão transcritas no documento PV.201.

 

[5] O tema das “explosões nucleares pacíficas” surgiu desde 1974, quando a Índia detonou pela primeira vez um artefato nuclear. O Tratado de Tatelolco contém uma cláusula detalhada a respeito, mais tarde revogada. A utilização de explosivos nucleares para obras civis de engenharia revelou-se tecnicamente inconveniente. 

 

[6] Documento A/7072 – DC 230, de 19 de março de 1968.

 

[7]  O projeto transformou-se na  Resolução 2373, de 12 de junho  de 1968, que  endossou o texto do tratado e o recomendou à assinatura dos estados..

 

[8] Um relatório elaborado em 1964 a pedido do presidente Lyndon Johnson (Gilpatric Report) concluiu que havia interesse conjunto dos EUA e URSS em evitar a proliferação e propôs gestões junto à Alemanha, Israel, Índia Japão, Paquistão, Suécia e República Árabe Unida para que renunciassem ao armamento nuclear em um futuro tratado.

 

[9] O Artigo X do TNP estabeleceu que, 25 anos após a entrada em vigor do Tratado, seria convocada uma conferência para decidir se o Tratado continuaria em vigor indefinidamente ou se seria prorrogado por um período adicional. A opção de prorrogações por tempo determinado era vista como uma possível forma de aumentar a pressão em prol do cumprimento dos objetivos de desarmamento nuclear do Tratado. Contudo, por pressão dos Estados nuclearmente armados, a Conferência de Extensão e Revisão do TNP de 1995, aprovou decisão no sentido de estender a vigência do TNP indefinidamente.

 

[10] Exposição de Motivos Interministerial no. 252, de 20 de junho de 1997.

 

[11] O Decreto Legislativo 65 contém seguinte cláusula: “A adesão do Brasil ao presente Tratado está vinculada ao entendimento de que, nos termos do artigo VI, serão tomadas medidas efetivas visando à cessação, em data próxima, da corrida armamentista nuclear, com a completa eliminação de todas as armas atômicas”.

 

[12] O então Ministro das Relações Exteriores Afonso Arinos de Melo Franco levou essa ideia à Assembleia Geral da ONU em 1961. Inicialmente acolhida com reservas pelos países nucleares, a proposta prosperou com a crise dos mísseis de Cuba, em 1962.

 

[13] Vide “Ditch the NPT”, artigo de Tom Sauer e Joelien Pretorius, Bulletin of Atomic Scientists, setembro de 2019.

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