Elio Gaspari
Jornalista, autor de 5 volumes sobre
o regime militar, entre eles ‘A Ditadura Encurralada’
1969 Brasileiro não sabe votar. E quem sabe?
Os números da votação para presidente em outubro ocuparão 4,4 terabites de memória. Os números do processo que em 1969 resultou na eleição do general Emílio Médici sobrevivem em 14 folhas de papel, manuscritas e indecifráveis.
A frase é velha: “Brasileiro não sabe votar”. Na sucessão de 1969, ela foi posta à prova pela pergunta seguinte: se o povo não sabe votar, quem sabe?
Como os 85 milhões de brasileiros não sabiam votar, os 22 milhões de eleitores da época já tinham perdido o direito de escolher o presidente da República. O marechal Arthur da Costa e Silva havia sido eleito indiretamente pelo Congresso, estava no Planalto e teve uma isquemia cerebral.
Progressivamente perdeu a fala e os movimentos do lado direito do corpo. Respeitada a Constituição, deveria assumir o vice-presidente, Pedro Aleixo, um civil. Nada feito. Seus telefones foram grampeados e a portaria do edifício onde vivia foi policiada, para que não tentasse sair do Rio.
Com o presidente entrevado, o vice deposto e restando 17 meses de mandato ficou a pergunta: quem deveria ser colocado na Presidência? Na emergência, concebeu-se uma junta militar, composta pelos ministros do Exército, Marinha e Aeronáutica. Se Costa e Silva estivesse incapacitado (coisa que até as pedras sabiam), deveria ser escolhido um sucessor. Como?
Já que brasileiro não sabe votar e o Congresso estava fechado desde dezembro de 1968, seus 471 iluminados também deveriam ficar de fora, até por não merecerem confiança para decidir uma questão desse tamanho. O problema voltava ao ponto de partida: Quem? Como? A escolha deveria ser feita pelos militares. Todos? Só os oficiais? Só os generais?
O Exército, a Marinha e a Aeronáutica deveriam ter pesos iguais? Como o poder de fato estava com o Exército, formou se uma espécie de Tribunal Superior Eleitoral, composto pelos nove generais de quatro estrelas que tinham assento no Alto Comando.
Cabia-lhes decidir como seria feita a escolha. Para isso constituiu-se uma comissão, composta pelos generais Antônio Carlos Muricy (chefe do Estado-Maior), Emílio Garrastazu Médici (comandante das tropas do Sul) e Jurandyr Mamede (chefe do Departamento de Produção e Obras). Eram os “Três M”. Eles deveriam definir critérios e colher os votos. Mais tarde, Muricy explicaria: “Foi uma auscultação”.
Deve-se a Muricy a preservação de umas 15 folhas com as anotações numéricas desse processo, sempre com sua letra garranchuda.
Anotações do General Antonio Carlos Murici (Chefe do Estado-Maior) sobre o nome que sucederia Costa e Silva
O general era um católico fervoroso, estourado, valente e sortudo. Anos depois, atracou-se com assaltantes e tomou um tiro no peito. A bala alojou-se numa área de seu coração que havia sido necrosada 30 anos antes por um enfarte. O general morreu em 2000, aos 94 anos, levando consigo a bala.
Em 1969 a imprensa estava censurada. Assim, às 19h56 do dia 1º de setembro o Jornal Nacional estreou informando o que dizia o governo: o marechal “passou bem a noite e está em recuperação”. Estava hemiplégico e mudo. Três dias depois um boletim infor- mou que “a recuperação do presidente está ultrapassando as expectativas”. Era tudo mentira.
O Sacro Colégio de generais reuniu-se quatro vezes ao longo de sete semanas. No conjunto da oficialidade o candidato mais forte parecia ser o general Affonso de Albuquerque Lima, ex-ministro do Interior de Costa e Silva. Como general-de-divisão faltavam-lhe uma estrela e a simpatia de muitos Grandes Eleitores. Pecado mortal: combatia a política econômica do ministro da Fazenda, Antonio Delfim Netto.
Instalou-se o mais duradouro período de anarquia militar da história do Brasil, agravado pelo sequestro do embaixador americano Charles Elbrick e da decisão desta Junta (o uso da palavra era proibido) de trocá-lo pela libertação de 15 presos políticos.
Paraquedistas lançaram um manifesto, o comandante da guarnição do Rio brigou com o ministro do Exército, o chefe do Estado-Maior tentou enquadrar Albuquerque Lima (sem sucesso) e o almirante dos fuzileiros desafiou o chefe da Armada.
Como o brasileiro não sabia votar, talvez os 239 oficiais-generais do Exército, Marinha e Aeronáutica soubessem. Nada feito, por duas razões: porque Albuquerque Lima poderia prevalecer e porque não se podia dar um voto a um general com comando de tropa e outro ao colega que comandava uma mesa.
Nesse caso alguém deveria explicar ao comandante da poderosa tropa do Rio que seu voto valia a mesma coisa que o do chefe do Departamento Geral do Pessoal e de sua mesa no quartel-general. Assim, um voto para cada quatro estrelas também não servia.
A “auscultação” feita pelos “Três M” baseou-se na divisão do Colégio Eleitoral em oito distritos. Os 16 generais das tropas do Rio, Minas Gerais e Espirito Santo formaram um distrito. Já os 14 generais das mesas do Estado Maior das Forças Armadas geraram dois.
O Departamento de Provisão Geral, com 17 generais, teve mais peso que qualquer um dos quatro grandes comandos de tropa. Houve generais que votaram em três nomes, outros, num só. Em alguns comandos ouviram-se oficiais, em outros, não. Uma tabela parcial revela que o general Emílio Garrastazu Médici teve 77 votos e Albuquerque Lima, 38. Muricy reconheceria que nunca existiu tabulação final.
Estava escolhido o terceiro presidente do regime. Como? Numa articulação que reuniu a facção de Costa e Silva, de quem Médici era amigo, com a do governo anterior, do marechal Castello Branco.
Em junho de 1969, dois meses antes da isquemia de Costa e Silva, circulou o primeiro número do semanário “O Pasquim”. Nele havia uma entrevista com o jornalista Ibrahim Sued. Quando lhe perguntaram quem seria o próximo presidente, ele cravou: “general Emílio Garrastazu Médici”.
Médici foi o único presidente da história republicana que não queria o lugar e chegou a ele sem mover um dedo. Pelo contrário, quando os colegas lhe disseram que não podia colocar o almirante Augusto Rademaker na Vice-Presidência, pegou o quepe, levantou-se e foi-se embora. Rademaker tornou-se o seu vice.
Esse gesto ilustra a firmeza de Médici, mas revela também que aquele general inexpressivo não era bobo. Anos depois ele contaria: “Se eu não fizesse aquilo, não nomearia nem o meu ajudante de ordens”.