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Covid-19 acelera o fim do jornal papel e cria problema para os pets e o churrasco


Carlos Wagner
Histórias Mal Contadas


Na última década o nosso leitor vem sendo preparado para o fim da circulação do jornal papel. Só esqueceram de avisar os usuários dos jornais velhos, que são milhares de brasileiros que vivem nas cidades e nos grotões do país. Esse problema tornou-se público com a crise sanitária criada pela Covid-19.

É essa história que vou colocar na mesa para conversar com os meus colegas repórteres, em especial os jovens que estão entrando no mercado de trabalho e nas faculdades. Vamos aos fatos, como diziam os editores dos tempos do auge do jornal papel, das barulhentas máquinas de escrever e das redações enfumaçadas pelos cigarros.
 
A vida do jornal velho começa no segundo seguinte em que alguém termina de ler o seu exemplar e o atira em um canto. Entre os seus vários destinos, um deles cresceu muito nos últimos anos: servir de forro para os pets – os animais domésticos somavam, em 2018, 139,3 milhões no país. Hoje os brasileiros são o segundo mercado de pets no mundo, conforme dados do Instituto Pet do Brasil.

A maioria desses animais, principalmente cães, gatos, pássaros e roedores, vive em apartamentos. Enquanto o número de pets usuários dos jornais velhos não para de crescer, o jornal papel em circulação vem caindo acentuadamente. Entre dezembro de 2014 e o mesmo mês em 2019, a circulação diária dos 10 maiores jornais do país diminui em 51,7% (deixaram de circular, diariamente, mais de 500 mil exemplares), como mostrou um estudo do Instituto Verificador de Comunicação (IVC).

Com a crise sanitária, milhares de pessoas ficaram no isolamento social. Ainda não há números definitivos. Mas aumentou a quantidade de cães, gatos e outros animais domésticos usuários de jornais velhos. Também em decorrência da Covid-19, muitos assinantes de jornal papel migraram para a versão online por comodidade ou medo de que o vírus entrasse em suas casas de carona nas folhas do jornal. Apesar da campanha de esclarecimento feita pelas empresas do setor de que esse risco não existe.
 
O resultado dessa situação: a lei da oferta e da procura entrou em campo. Com menos jornais em circulação e maior demanda, o preço do jornal velho subiu significativamente – em alguns casos até 50% o quilo. E também ficou escasso, principalmente nas grandes cidades. Essa situação acabou complicando a vida dos gaúchos, que têm o hábito de usar jornais velhos para começar o fogo do churrasco do fim de semana.

Há várias técnicas, a mais usada é atar o jornal em torno de uma garrafa e despejar carvão ao redor. Com escassez de jornal velho a alternativa é usar outras técnicas, como untar com azeite alguns pedaços de carvão para facilitar o início do fogo. Sempre viajei muito pelo interior do Brasil. Até o final dos anos 80, em muitos lugares o jornal velho era usado como papel higiênico. Eu vivi uma história que sempre conto nas minhas palestras.

Certa vez, estava em Soledade, interior do Rio Grande do Sul, e precisei ir ao banheiro em um restaurante de beira de estrada. Atrás do estabelecimento havia o que chamamos aqui no Sul de patente – uma casinha de madeira construída sobre um buraco que serve de depósito para as fezes e urina.

Sentei para fazer as necessidades e vi na parede um prego com folhas de jornal para servirem como papel higiênico. A primeira folha que estava para ser usada estampava uma reportagem minha. Dias antes tinha recebido meu segundo Prêmio Esso de Jornalismo. Estava todo orgulhoso pela honraria. Acabei usando a minha matéria como papel higiênico.
 
Nos grotões do Brasil os jornais velhos continuam substituindo o papel higiênico. Encontrei um exemplo no ano passado, em um restaurante no Mato Grosso do Sul, nas proximidades da fronteira com o Paraguai. Na semana passada, conversei com alguns catadores de lixo para ser reciclado. Disseram que encontrar jornal velho jogado fora é uma raridade.

Para a minha geração de repórteres – tenho 69 anos, 40 e poucos de profissão, 30 e tantos vividos em redações – passar do jornal papel para o online não foi fácil. Primeiro, a dificuldade de operar as novas tecnologias. Depois, o “timing” das notícias. Vejam bem. Nós redigíamos uma notícia que valia até o próximo jornal ser rodado e circular.

Vou contar uma história. Quando eu era criança, a minha família era muito pobre. Uma vez pedi para a minha mãe, dona Loni, comprar um jornal para eu ler. Uma semana depois, ela me deu um jornal velho. Eu reclamei: “Mãe, é um jornal velho”. Ela perguntou: “Tu já tinhas lido?”. Respondi: “Não, eu não li”. Ela acrescentou: “Então é novo pra ti”. A conversa acabou ali.

Hoje, com as novas tecnologias, os conteúdos das notícias passaram a ser atualizados constantemente. Isso significa que a estrutura do texto precisa ser enxuta e de fácil entendimento. Mas uma coisa não mudou. Continuamos contando uma história, que tem início, meio e fim. Para arrematar a nossa conversa.

Meus colegas repórteres, o desaparecimento do jornal velho está mexendo em toda uma estrutura econômica e cultural muito interessante que merece ser contada. Até hoje o jornal velho circula como se fosse uma moeda para a população pobre, inspiração para as rimas dos poetas e citações nos nossos textos. Não estamos contando esse lado da história para os nossos leitores. Ele é interessante, podem apostar. Antigamente, quando o repórter entregava uma matéria ruim para o editor, ele dizia: o teu texto não serve nem para enrolar peixe.

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