Como começou o que agora agoniza
(Novembro de 1989 – Novembro de 2020)
Lorenzo Carrasco
Geraldo Lino
Resenha Estratégia
É evidente que o Establishment oligárquico estadunidense descartou abertamente uma segunda presidência de Donald Trump, que, a despeito de sua personalidade arrogante, narcisista e supremacista, se opunha à agenda “globalista” e identitaria e à continuação das intervenções militares dos EUA em quaisquer quadrantes do planeta. Para o seu lugar, foi escolhida uma figura medíocre e sem carisma, apoiada por uma campanha midiática sem precedentes, que censurou de fato o presidente e determinou, antes de um reconhecimento oficial, a vitória de Joseph “Joe” Biden e sua sucessora putativa, senadora Kamala Harris.
Mas, além da polarização que se mostrou em 3 de novembro, com a possibilidade ainda em aberto de que o pleito acabe na Suprema Corte, como em 2000, as eleições nos Estados Unidos marcam um momento histórico especial, o qual manifestou ao mundo que a maior potência global da História não tem mais condições de ser o “farol” ou a “cidade brilhante” no topo da colina, como os estadunidenses têm se definido historicamente, nem na apregoada defesa das liberdades e da democracia e, muito menos, na economia.
O fato evidente é que o seu poderio global não poderá ser restabelecido com base em ideias de supremacia global. E registre-se que este processo não se deve a nenhuma força externa que buscava minar as bases da superpotência, ainda que tal intenção pudesse existir, mas por processos endógenos autodestrutivos que vêm se manifestando, em especial, nas últimas três décadas.
O que realmente constitui uma tragédia histórica para os Estados Unidos é que o país teve a oportunidade de liderar, com o seu poderio global e influência moral, a construção de uma ordem mundial cooperativa, oportunidade surgida após a queda do Muro de Berlim, em novembro de 1989, e a dissolução da União Soviética, em dezembro de 1991. Naquele momento, muitos imaginavam um novo papel estadunidense semelhante à liderança demonstrada na construção da ordem do pós-guerra, incluindo os acordos de Bretton Woods para a reconstrução econômica e financeira mundial.
Desafortunadamente, não foi essa a decisão das elites oligárquicas de Washington e Nova York, que viram ali uma oportunidade de estabelecer uma hegemonia mundial construída sobre os escombros dos Estados nacionais soberanos e suas instituições basilares. A Guerra do Golfo de 1990-91 foi o ato inaugural da “Nova Ordem Mundial” proclamada pelo presidente George H.W. Bush, reforçada pela intenção dos “neoconservadores” estadunidenses de impor o que mais tarde se chamaria o “Projeto para um Novo Século Americano” (Project for a New American Century – PNAC).
Tal ordenação geopolítica de alcance mundial tinha o propósito de manter o dólar como moeda de reserva mundial, não mais baseado na ainda vasta capacidade industrial estadunidense, mas pelo mero poder militar, o “Princípio de Trasímaco” descrito por Platão na sua República – “a justiça é o interesse do mais forte”. Da mesma forma, a promoção da agenda “identitária”, que divide a população humana segundo critérios da raça, cor da pele, origem étnica, preferência sexual e outros critérios “politicamente corretos”, faz parte de um impulso para golpear a família como elemento fundamental dos Estados soberanos, ao mesmo tempo em que uma desigualdade econômica crescente, ensejada pela hegemonia da alta finança especulativa sobre a economia real, golpeava a dignidade verdadeira dos seres humanos.
Três livros essenciais balizam a rota que levou os EUA à sua presente crise existencial. O primeiro foi:
– O fim da História e o último homem, publicado em 1992 por Francis Fukuyama, então funcionário do Departamento de Estado e pesquisador da Rand Corporation, uma resposta imediata à dissolução da União Soviética.
– O choque de civilizações, de Samuel Huntington, professor da Universidade de Harvard e um dos principais ideólogos da oligarquia estadunidense, publicado em 1996.
– O grande tabuleiro de xadrez: a primazia americana e seus imperativos geoestratégicos, de 1997, do ex-conselheiro de Segurança Nacional e teórico geopolítico Zbigniew Brzezinski.
A intenção, em conjunto, era perpetuar uma visão maniqueísta que substituísse a Guerra Fria por novas formas de polarização do mundo e manter, assim, o domínio hegemônico estadunidense. A idealização de um “choque de civilizações” levou a elite oligárquica a planejar a remoção de todos os regimes seculares do Oriente Médio e provocar o surgimento de movimentos radicais entre a população mulçumana, martirizada pelas
guerras perenes que se sucederam desde 1990. Este processo gerou o terrorismo islâmico, em especial, o Estado Islâmico, fomentado por serviços de inteligência da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Em realidade, nunca existiu qualquer choque de civilizações, que não passou de um engendro para justificar a “criação” de um inimigo existencial no mundo mulçumano, seguindo os moldes do papa do neoconservadorismo, Leo Strauss.
O efeito combinado da crise socioeconômica e das discrepâncias sociais alimentadas pelas ideologias “identitárias”, acabou levando os próprios EUA à atual polarização social e seus paroxismos de violência e terrorismo potencial. Neste sentido, a cizânia atual impõe uma necessária tarefa de reconstrução nacional. Como uma ironia, e guardadas as devidas proporções, a nação estadunidense terá que repensar a sua missão no mundo, assim como a Rússia pós-Guerra Fria.
Aliás, já em 1990, as economias estadunidense e mundial necessitavam de uma reforma financeira, para sair das bolhas especulativas geradas a partir de 1971, com a ruptura dos acordos de Bretton Woods. Porém, a opção hegemônica da “Nova Ordem Mundial” apenas agravou o quadro econômico, aumentando os níveis de desigualdade e os déficits de justiça social, ao transformar de fato as finanças globais em um gigantesco cassino para benefício de uma diminuta fração de privilegiados.
E recorde-se que foi o presidente democrata Bill Clinton que derrubou a Lei Glass-Steagall de 1933, usada por seu antecessor Franklin Roosevelt para colocar uma “camisa-de-força” no sistema financeiro responsável pela crise de 1929 e a Grande Depressão que a seguiu. O ato de Clinton, ainda hoje celebrado por liberais de todos os matizes, escancarou as portas do hospício financeiro e impulsionou o babilônico mercado dos derivativos financeiros, cujo volume supera em pelo menos 18 vezes o montante do PIB global.
Tais fatos colocam em uma mesma balança os danos infligidos pelo regime soviético à sua população cativa e os causados pelo liberalismo radical, inclusive no Reino Unido e nos próprios EUA. Ao final das contas, o comunismo e o liberalismo radical são duas fases da mesma moeda utilitarista-malthusiana empregada pelos fundamentalistas dos dois lados; um deles desabou com os acontecimentos de 1989-1991, e o outro desmorona a olhos vistos em 2020, com a catálise dos desdobramentos da pandemia de Covid-19.
Assim sendo, os requisitos de saída da presente multiplicidade de crises – socioeconômica, sanitária, estratégica e cultural – não podem ser preenchidos sob a direção de um ôvelho ou novo, pela simples razão de que outros atores
precisam ser levados em conta. Entre outros: a China, ascendendo à condição de maior economia do mundo; a Alemanha, consolidando-se como uma potência econômica e política, que não pode conformar-se à condição de satélite dos EUA; e a Rússia de Vladimir Putin, cuja reconstrução cristã tem sido pouco compreendida fora do país. Da mesma forma, é virtualmente impossível reedificar um condomínio de poder global como o prevalecente durante a Guerra Fria, um delírio de certos ideólogos estadunidenses, como o ex-secretário de Estado Henry Kissinger, ao comparar os focos de conflito geopolítico atuais com a situação prévia à I Guerra Mundial.
O dilema estadunidense, compartilhado pelos seus aliados europeus da OTAN, é saber de que forma irão participar da reorganização do sistema mundial de relações internacionais, nas esferas política e econômica: se como coprotagonistas da construção de um mundo multipolar cooperativo e não-hegemônico, juntamente com a China, Rússia, Índia e outras potências emergentes; ou se insistirão em atuar como elementos de desestabilização e desorganização, tendências que a História costuma relegar à irrelevância no longo prazo.
Se a opção for a primeira, terão muito com que contribuir com os requisitos de substituição da presente “financerização” especulativa da economia mundial por uma arquitetura financeira que reflita a nova realidade multipolar, com a mudança gradativa do “padrão-dólar” por uma cesta de moedas mais representativa do atual quadro econômico mundial.
Se as suas elites optarem por trocar o supremacismo pela cooperação, os EUA poderiam retomar os ensinamentos da exemplar linha de pensamento econômico que remonta ao secretário do Tesouro de George Washington, o genial Alexander Hamilton, e a Henry Carey, assessor econômico de Abraham Lincoln. Foi Carey quem definiu a missão desse “Sistema Americano” como a de “substituir com o cristianismo esse detestável sistema conhecido como o malthusianismo”, em referência ao sistema liberal britânico.
A sua tese da harmonia de interesses, em oposição ao individualismo exacerbado do liberalismo britânico, constitui uma clara antecipação das exigências propostas pela Doutrina Social da Igreja, a partir da Encíclica Rerum Novarum de 1891, redigida contra as ilusões do comunismo e a realidade cruel do liberalismo imposta às nações e seus trabalhadores (aliás, uma Rerum Novarum atualizada está a fazer falta).