Carlos Wagner
História Mal Contadas
08 MMarço 2022
Certa vez, no início da década de 1990, eu e um bando de repórteres de vários cantos do Brasil e alguns estrangeiros estávamos envolvidos na cobertura de um conflito agrário no interior de Bagé, cidade do Rio Grande do Sul que faz fronteira com o Uruguai.
A dificuldade para se ter acesso a informações era enorme porque não havia telefone, a chuva tinha transformado as estradas em atoleiros imensos, o local do confronto estava cercado pela Brigada Militar (BM), que impedia a nossa entrada, e a má vontade das autoridades locais e estaduais para com a imprensa era total.
Cata uma informação aqui, outra ali, no final do dia se conseguia fechar uma matéria. E à noite todos nós acabávamos jantando no mesmo restaurante. E foi num desses jantares, depois de termos empilhado muitas garrafas vazias, que ouvi uma frase de um colega que jamais esqueci. Ele disse: “A cobertura está um voo cego, não sabemos o que está acontecendo lá no meio da confusão”. Lembrei dessa conversa lendo, ouvido e vendo o que temos publicado sobre a guerra da Rússia contra a Ucrânia. Vladimir Putin, presidente da Rússia, cometeu um crime mandando invadir a Ucrânia. Quem são os seus cúmplices nesse crime?
Para saber, precisamos entender como é o dia a dia do presidente russo. É sobre isso que vamos conversar.
Na aviação, voo cego é uma expressão usada pelos pilotos para dizer que não estão enxergando o solo devido a problemas climáticos, por exemplo. E que dependem dos instrumentos de bordo para prosseguir voando. A cobertura da guerra da Rússia contra a Ucrânia é um voo cego porque não sabemos o que está acontecendo dentro do Kremlin, a sede do governo russo em Moscou. Se algum colega sabe o que rolou por lá nos últimos dias, ainda não publicou. Muito do que sabemos sobre como funcionam as coisas no governo Putin vem de informações divulgadas por documentários como The Putin System, que assisti uma semana antes de começar a guerra.
Esse e outros documentários disponíveis na internet trazem informações confiáveis sobre a maneira de fazer as coisas de Putin. São importantes. Mas nossa necessidade é por informações sobre o que está acontecendo no atual dia a dia do presidente da Rússia. A cobertura de uma guerra se dá em quatro frentes: no campo de batalha, no drama dos refugiados, nos equipamentos usados pelos exércitos e no que acontece nas entranhas dos governos dos países envolvidos. Não tem como saber tudo o que acontece dentro dos governos. Mas precisamos saber o essencial para não escrever bobagens.
No que está sendo publicado, lá no meio dos noticiários, temos sugerido que as tropas russas enfrentam problemas de logística, abastecimento de combustível e alimentação para os soldados. Isso mais parece informação “plantada”, o que é do jogo em situações como essa. Como podemos evitar de pisar nessa casca de banana.
– Precisamos saber tudo o que pudermos sobre os comandantes do Exército, Marinha e Força Aérea da Rússia. Eles são fiéis a Putin?
– Obedecem às ordens sem questionar? Seriam capazes de acompanhar o presidente em uma loucura como usar o arsenal nuclear?
-Essas informações não estão disponíveis nos noticiários. Mas sabemos quem sabe do assunto: os serviços de informações dos Estados Unidos e dos seus aliados europeus. Claro, não podemos simplesmente bater à porta deles e perguntar. Não é assim que funciona. Mas podemos perguntar para os presidentes desses países, como Joe Biden, dos Estados Unidos, que certamente já foi informado sobre o assunto pela Agência Central de Inteligência, a CIA. Lembro um episódio.
Durante o governo de Donald Trump (republicano) ele andou dizendo uns desaforos e insinuando uma agressão contra a China. Um militar de alta patente das Forças Armadas americanas ligou para os chineses os tranquilizando – há matéria na internet. Aqui no Brasil, os comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica já afirmaram em público que as Forças Armadas não se alinharão a uma tentativa de reinstalar o regime militar no país como vem tentando fazer o presidente da República, Jair Bolsonaro (PL).
Lembro os meus colegas que quando o atual presidente assumiu o seu mandato, em 2019, não se sabia ainda como funcionava a sua estrutura de poder. Levamos uns dois anos para entender e, com isso, conseguir separar o que era bravata dos assuntos sérios. O que tem facilitado muito a nossa vida. Claro que nenhuma empresa de comunicação do Brasil vai investir no envio de um repórter para Moscou para aprender como funciona o governo Putin. Ainda mais com uma guerra em andamento. Seria o mesmo que trocar um pneu com o carro em movimento.
Mas nada nos impede de descascar esse abacaxi. Olhando de longe, o governo Putin parece ser um grande acordo econômico entre ele e os seus homens de confiança. E como todo dirigente autoritário, ele comprou a lealdade de quem o ajuda a governar. Portanto, vai esticar a corda na guerra com a Ucrânia até onde for possível. Há mais de 200 anos as terras daquele canto do mundo vêm sendo encharcadas com sangue derramado em guerras.
Até agora, a população tem sobrevivido a conflitos cruéis, como foram as batalhas da Segunda Guerra Mundial (1939 a 1945). Em nenhum momento da história recente daquela região um governante ganhou tanto dinheiro como Putin e seus aliados estão ganhando nos dias atuais. Talvez seja mais fácil do que pensamos decifrar o governo Putin. Pode se resumir a apenas seguir a rota do dinheiro.