RIO — Um país que viveu décadas de ditadura e se acostumou com presidentes sendo tirados do poder à força; onde planos econômicos mirabolantes criaram a hiperinflação e corroeram o poder de compra da sociedade; onde a miséria é vista em cidades de todos os portes. Este mesmo país, no entanto, vive mais de 30 anos de estabilidade institucional, controlou os sobressaltos da moeda e tirou dezenas de milhões de pessoas da linha da pobreza extrema.
Na opinião do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), embora o cenário atual do Brasil seja desanimador, esta reflexão sobre o passado recente abre caminho para perceber avanços civilizacionais que indicam um futuro melhor, apesar do desalento.
O ministro Barroso usa uma frase do filósofo italiano Antonio Gramsci para explicitar o ponto de vista que defende: “O velho está morrendo, e o novo ainda não pode nascer”.
— Embora concorde com isso como diagnóstico do momento brasileiro, há um complemento da frase (de Gramsci) que passa despercebido, quando ele disse: entre a morte do velho e o nascimento do novo, surge uma grande variedade de sintomas mórbidos. Esse é o momento brasileiro. Estamos vivendo a tormentosa transição do velho para o novo. Mas estou muito convencido de que o que acontece no Brasil é um momento de refundação. Um momento em que o país está se repensando e se preparando para elevar o patamar da ética pública e da ética privada — destacou o ministro, recorrendo a uma metáfora. — O que eu pretendo demonstrar, sem fantasias irreais, é que a fotografia do momento atual é sombria, mas o filme da democracia brasileira é bom e, se fizermos meia dúzia de ajustes, caminha para um final feliz.
Barroso participou, na segunda-feira, do seminário E agora, Brasil?, realizado pelo GLOBO no Maison de France, com patrocínio da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) e apoio do Banco Modal. Como um sinal de maturidade institucional, o ministro citou momentos políticos turbulentos recentes que não resultaram em saídas abruptas, fora da via constitucional — em outras ocasiões, Barroso já declarou que o impeachment de Dilma Rousseff seguiu os ritos previstos na lei. Voltando mais no tempo, para ficar em apenas alguns exemplos, Getúlio Vargas assumiu o poder sem ser eleito e alterou a Constituição para que tivesse mais força; João Goulart foi deposto pelos militares; também no regime militar, Pedro Aleixo, um civil que era vice do marechal Costa e Silva, teve a posse barrada depois que o então presidente deixou o cargo, porque estava doente.
— Temos 30 anos de estabilidade institucional e não foram tempos banais. Tivemos escândalos como os anões do orçamento, mensalão, petrolão e destituição por impeachment de dois presidentes da República (Fernando Collor e Dilma). Ninguém cogitou verdadeiramente uma solução que não fosse o respeito à legalidade. E isso num país de tradição de rupturas sucessivas da legalidade, desde que Dom Pedro II dissolveu a primeira Assembleia Constituinte, passando pela permanência de Floriano Peixoto no cargo no início da República sem convocar eleições, até o impedimento do vice-presidente Pedro Aleixo. Só quem não viveu a sombra é que não reconhece a luz que é viver sob um estado constitucional e democrático — afirmou o ministro.
‘VIDA MAIS CIVILIZADA'
No campo da economia, Barroso destacou o fim da inflação desenfreada e o fortalecimento de conceitos que permitem à administração pública uma gestão de recursos mais eficiente — a exemplo da Lei de Responsabilidade Fiscal, que passou a vigorar em 2000.
— A segunda conquista que merece ser celebrada é a estabilidade monetária. Quem quer que tenha mais de 40 anos lembrará os horrores que era viver em um regime de hiperinflação, com dificuldade de programar a vida para o futuro e aqueles sucessivos planos econômicos fracassados. Boa parte da litigiosidade que ainda existe no brasil perante o Poder Judiciário ainda decorre daqueles planos econômicos fracassados, sendo que a inflação penalizava, sobretudo, os mais pobres, que não podiam se proteger do mercado financeiro — lembrou Barroso.
Políticas mais sensatas de governança evitam gastos desnecessários e reduzem os riscos de penalização aos mais pobres, por exemplo, com a subida de preços e a dificuldade no acesso ao crédito, avalia o ministro.
‘Ninguém cogitou verdadeiramente uma solução que não fosse o respeito à legalidade. E isso num país com tradição de rupturas da legalidade’
— A estabilidade monetária ainda trouxe um conceito importantíssimo, que é o de responsabilidade fiscal. A percepção de que se gastar repetidamente mais do que aquilo que se arrecada traz impacto negativo sobre a sociedade e, principalmente, os mais pobres, porque o impacto vem com inflação, juros altos e déficit fiscal. Até que, em algum momento da década de 1990, com o Plano Real, se conquista estabilidade monetária. E, embora a inflação nos assuste aqui e ali, não é nada parecido com o que aconteceu nos dias pavorosos dos anos 1980.
Investimentos em educação, o aumento na distribuição de renda e a implementação de políticas sociais, como o Bolsa Família, que atuam diretamente na redução da pobreza, são outros avanços listados por Barroso. Segundo ele, as mudanças possibilitaram uma “vida mais civilizada” a uma parcela expressiva da população.
— A terceira conquista que considero extremamente relevante foi a inclusão social. Entre 30 e 40 milhões de pessoas deixaram a linha de pobreza extrema e ingressaram no mundo do consumo mínimo e da vida mais civilizada. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil foi o que mais cresceu na América Latina nos últimos 30 anos de democracia brasileira. O índice de escolarização aumentou, a expectativa de vida cresceu de uma forma importante. Sei que nos últimos três, quatro anos de recessão houve uma reversão de expectativa. Cerca de quatro milhões de pessoas voltaram à linha de pobreza, porém, ainda assim o saldo é extremamente positivo.
AVANÇOS NOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
O ministro do Supremo enumerou progressos em outras áreas e destacou que “a vida não é feita só de economia”.
— Houve conquistas importantes em matérias de direitos fundamentais. Tivemos vitórias muito expressivas no campo da liberdade de expressão. Vivemos em um país que ainda tem uma cultura autoritária. A censura foi marca da história brasileira e, neste ponto, o Supremo tem tido papel importante. Conseguimos vitórias expressivas, inclusive na questão das biografias e criamos uma cultura de mais liberdade no país do que tínhamos há 30 anos. Sobre os direitos das mulheres: poucas transformações no país foram mais relevantes do que a ascensão da mulher, de maneira geral. Houve vitórias dos negros, com programas de ações afirmativas. Em matéria de respeito às minorias sexuais, também tivemos avanços civilizatórios — reforçou Barroso.
O ministro se disse favorável a mudanças constitucionais, como alterações no regime previdenciário, mas afirmou que é contra a convocação de uma Assembleia Nacional para definir uma nova Constituição. Segundo ele, o momento político extremamente polarizado dificultaria a formação de consensos. Barroso, mais uma vez, olhou para o passado recente para justificar a expectativa de dias melhores:
— Em uma geração, fomos capazes de derrotar a ditadura, a hiperinflação e de obter vitórias muito expressivas sobre a pobreza extrema. Por essa razão, olhando em perspectiva, o filme é bom, e temos razões para sermos moderadamente otimistas.
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