Luiz Carlos Azedo
Colunista do Correi Brazilense
O culto a João Fernandes Vieira (reinol), André Vidal de Negreiros (nobre da terra), Felipe Camarão (Tupi) e Henrique Dias (negro), que se juntaram para expulsar os holandeses sem qualquer ajuda da metrópole, surgiram na narrativa dos anais da Câmara de Olinda (PE), segundo Evaldo Cabral de Melo. Como destaca o jornalista, historiador e cientista político Jorge Caldeira, autor do monumental História da riqueza no Brasil, essa é a gênese da ideia de uma pátria formada pela aliança de grupos étnicos na luta contra a dominação estrangeira. Não por acaso, a Batalha de Guararapes (18 e 19 de abril de 1648) é o marco fundador do Exército como guardião das fronteiras e da União.
Não existia o brasileiro nessa época, havia pernambucanos, baianos, gaúchos, paulistas etc. Uma das mais antigas referências ao gentílico "brasileiro", segundo Caldeira, aparece graças a um quadro do pintor holandês Albert Eckhout encomendado por Maurício de Nassau por volta de 1647. Numa tela quadripartida, são vistos quatro casais: o homem e a mulher tapuia; a mulher e o homem africano; o mulato e a mameluca; e o homem e a mulher brasileira, o primeiro com roupas brancas cobrindo a cintura, uma cabaça de água e um cesto, com uma bananeira e um engenho ao fundo; a mulher brasileira é uma índia tupinambá aculturada. Esse é o arquétipo do amalgamento étnico que viria a caracterizar a nação brasileira.
Se o Brasil comemora hoje 518 anos, o brasileiro tem menos de dois séculos. É uma invenção inspirada na Inconfidência Mineira pelo iluminismo do santista José Bonifácio de Andrade. Até então, por causa das minas e da necessidade de manter sob controle a colônia, havia o Brasil dos portugueses, que controlavam o litoral (frei Vicente Salvador comparou-os aos caranguejos: "Contentam-se em andar arranhando o mar"), e o Brasil do sertão, que Caldeira redescobre em seu livro como um território com enorme potencial econômico e vida política própria, mas fragmentado pela estratégia de domínio da Corte.
Nossa integridade territorial deve-se em grande parte à estratégia adotada por Alexandre de Gusmão ao negociar com a Espanha o Tratado de Madri (1750), no reinado de D. João V. Uniu no mapa todos os pontos citados em documentos que assinalavam a presença de aldeias tupis e vilas e traçou uma linha imaginária do sudoeste da Amazônia ao norte de Mato Grosso.
A fragmentação político-administrativa foi obra do Marquês de Pombal. No reinado de D. José, no qual pontificou, criou-se o vice-reino do Maranhão e Grão-Pará; dividiu-se a capitania de São Paulo, criando as de Santa Catarina e São Pedro do Rio Grande; apartou-se o Ceará e a Paraíba de Pernambuco. São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás já eram governados por representantes da Corte, desde que D. José havia recomprado São Vicente, neutralizando pouco a pouco o domínio dos bandeirantes paulistas.
O regresso
Defenestrado do governo por Dom Pedro logo após a Independência, José Bonifácio viria a ser o grande artífice político da manutenção da integridade territorial e da formação de um Estado nacional viável: "É da maior necessidade ir acabando com tanta heterogeneidade física e civil. Cuidemos, pois, desde já, em combinar sabiamente tantos elementos discordes e contrários, em amalgamar tantos metais diversos, para que saia um todo homogêneo e compacto, que não se esfarele ao toque de qualquer convulsão política", propôs o então deputado constituinte, como destaca Caldeira.
Não foi um processo fácil, em razão do projeto de reunificação da Coroa acalentado por D. Pedro e, sobretudo, devido à escravidão. As forças centrífugas eram exercidas sobretudo pela Corte portuguesa, pela Inglaterra e pelos traficantes de escravos. O resultado foi uma estrutura de poder que perpetuou privilégios e desigualdades e teve que recorrer à força para manter a integridade territorial, como na Cabanagem, na Confederação do Equador e na Revolução Farroupilha, entre outras revoltas e rebeliões. O ideal de igualdade dos iluministas acabou em segundo plano na Constituição liberal de D. Pedro I (1824).
O Brasil dos brasileiros resulta desse processo, sustentado pela força das armas e pela política de conciliação entre as elites. Parece consolidado, mas sofre permanente desgaste e corre risco de fragmentação política sempre que a União se desgarra da sociedade, como agora.
Desde as eleições de 2002, o Brasil setentrional é vermelho; o meridional, azul. Nestas eleições, essa divisão parece se aprofundar, com o surgimento de candidaturas de caráter regional: o paranaense Álvaro Dias, no Sul; o cearense Ciro Gomes, no Nordeste; Alckmin aparece confinado entre os paulistas. E por projetos regressistas de caráter populista, com Bolsonaro, à direita; e Lula (que não pode ser candidato), à esquerda.