Luiz Carlos Azedo
Jornalista, colunista do Correio Braziliense
A filósofa Hannah Arendt, em A Condição Humana, destaca que a coragem vai além da qualidade indispensável àquele que tenha travado grandes batalhas, tem a ver com “disposição de agir e falar e inserir-se no mundo e começar uma história própria”. Nesse contexto, o herói não é necessariamente o homem de grandes feitos, equivalente a um semideus; trata-se de um indivíduo comum que se insere e se destaca no mundo por meio do discurso e da ação.
O mito do herói remonta à Antiguidade na Grécia, é lá que estão os seus arquétipos. O herói homérico da Ilíada sustenta-se em dois pilares: a grandiosidade e a singularidade. Ele aspira à imortalidade. Não é à toa que é um semideus. Mas ele precisa ter uma existência humana verdadeira. Sua construção pressupõe também a volta para casa, a vida normal — até que a situação exija outro ato glorioso e individual, de grande bravura. A imortalidade, porém, só vem com a morte. O herói semideus faz coisas sobre-humanas, mas não é imortal.
Também existe uma espécie de herói noir, por exemplo. É o cara comum, cheio de defeitos, que faz coisas incomuns. O alcoólatra desempregado que pula na linha do metrô para salvar uma criança arriscando a própria vida. O morador de rua que morre ao tentar salvar uma senhorinha na porta da catedral. Na sociedade, o heroísmo é o antídoto para o mal. As crianças são educadas para serem heróis à espera de uma oportunidade de demonstrar sua bravura.
Quase todos têm oportunidade de ser herói na vida, mas deixam passar. Isso não significa que sejam covardes. Todo covarde também pode se tornar um herói por acaso. O cara “do bem” vive é à espera da oportunidade de provar seu heroísmo. Se não pode fazê-lo, aposta suas fichas em alguém que esteja cumprindo esse papel. O herói é sempre aquele que entra em ação quando os outros estão paralisados. Precisa fazer aquilo que outro poderia ter feito, mas não fez; ou melhor, o que nós deixamos de fazer.
Hannah também nos remete à antítese do herói na sua obra mais famosa e controvertida, Eichmann em Jerusalém. Nesse livro cunhou a expressão: “A banalidade do mal”. Ao acompanhar o julgamento do criminoso nazista, chegou à conclusão de que a natureza humana não fora transformada pelo mal totalitário como imaginava: “Não se pode extrair qualquer profundidade diabólica ou demoníaca de Eichmann”. Ele era um burocrata medíocre que cumpria ordens, no caso, mandar às câmeras de gás milhares de seres humanos, principalmente judeus.
Essa reflexão filosófica nos ajuda a examinar a conjuntura. Desde sexta-feira estamos assistindo a um duelo de personalidades que nos remete ao mito do herói. Trata-se, é óbvio, do embate entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o mais carismático líder político do país desde Getulio Vargas, e o circunspecto juiz federal Sérgio Moro, de Curitiba, responsável pelas investigações da Operação Lava-Jato. No sábado retrasado, Lula atacou publicamente o juiz na festa de aniversário do PT, acusando-o de exorbitar nas suas funções. O petista sabia que havia um pedido de busca e apreensão na sua residência e de condução coercitiva para depor sobre as suspeitas de seu envolvimento no escândalo da Petrobras. O juiz aceitou o pedido e, na sexta-feira, teve início a operação Alethea, a 24ª fase da Lava-Jato. Lula foi levado a depor num posto da Polícia Federal do Aeroporto de Congonhas.
O ex-presidente da República virou uma jararaca. Três horas depois de liberado, antecipou sua candidatura a presidente da República em 2018, politizou o processo criminal que o investiga e conclamou seus militantes, simpatizantes e aliados à luta política nas ruas, contra as investigações da Lava-Jato e a cassação de mandato ou o impeachment da presidente Dilma Rousseff em decorrência dos malfeitos sob investigação. Todos os que defendem a saída da presidente da República do cargo ou as decisões de Moro são considerados golpistas de direita, reacionários que conspiram contra a democracia.
Moro só se pronuncia nos autos ou eventos de natureza jurídica, mas se tornou uma personalidade nacional. É aplaudido e cumprimentado nas ruas. Representa os órgãos de controle do Estado e a ética da responsabilidade, que zelam pela legitimidade dos meios empregados na ação política. Lula é a encarnação da ética das convicções, se move pelos seus objetivos políticos, não importa os meios. Seu discurso, porém, banaliza o fisiologismo, o patrimonialismo, a corrupção e o desvio de recursos públicos. Ocorre que a sociedade já não tolera “o todo mundo faz“, principalmente em razão da recessão, do desemprego e da inflação, ainda que não abomine no dia a dia o “jeitinho brasileiro”.