Eugênio Bucci
O anúncio veio sem pompa, sem nada de especial. Foi num comentário corriqueiro que o diretor do FBI, James Comey, proclamou o fim de nossos segredos pessoais. Falando como quem não quer nada, sem trombetas, falando como quem diz que está calor ou que vai chover, ele afirmou que não existe “privacidade absoluta” nos Estados Unidos.
Pronto. Agora é oficial. Embora a autoridade máxima da espionagem americana tenha tomado o cuidado de lembrar que o governo não pode sair por aí bisbilhotando a vida alheia sem uma ordem judicial, ele deixou muito claro: ninguém tem mais privacidade inviolável.
Se você ainda tinha alguma ilusão de fazer alguma coisa às escondidas, esqueça. Hoje, as tecnologias dominadas pelos agentes do poder (e não apenas do poder do Estado, mas também do poder econômico, do poder religioso e outros mais) podem localizar e decifrar qualquer história, qualquer ato, qualquer lance fortuito da vida de qualquer pessoa.
“Não há essa coisa de privacidade absoluta nos Estados Unidos”, avisou o chefão do FBI, num seminário sobre segurança na internet numa universidade em Boston, na quarta-feira passada. Um dia antes, o WikiLeaks tinha lançado um alerta sobre o poderio da máquina de arapongagem controlada pelo governo americano, que seria capaz de interceptar conversas por meio de telefones celulares, WhatsApp e até por aparelhos de TV placidamente instalados numa sala de estar. Sim, as paredes, quaisquer que sejam elas, têm ouvidos e olhos eletrônicos plugados a uma teia mundial que, como Deus, tudo vê e tudo ouve.
Como o fim da privacidade não vale apenas para quem resida nos Estados Unidos, evidentemente nós, aqui no Brasil, estamos no mesmo barco vigiado. Isso, aliás, já ficou escancarado desde 2013, quando o ex-funcionário da CIA e da NSA (Agência Nacional de Segurança) Edward Snowden contou como funcionavam os grampos a serviço do governo americano.
O que veio à tona foi um arsenal de antenas, softwares maliciosos e uma traquitana eletrônica que deixava no chinelo as mais paranoicas acusações contra o imperialismo do Tio Sam. Com sistemas planetários de escutas e de monitoramento de telefonemas, os olhos e ouvidos digitais invadiam até mesmo a privacidade de governantes de vários países.
Snowden mostrou que não havia limites. A CIA e a NSA estavam equipadas para ouvir qualquer diálogo, ler qualquer e-mail, rastrear qualquer movimento. Quase tudo – ou mesmo tudo – o que fazemos é visto por alguém. No celular, aplicativos calculam quantos passos você deu, a que horas você foi dormir e quando acordou.
A rede bancária sabe onde a gente tem conta, quanto a gente ganha, quem a gente sustenta. No laboratório clínico, programas de computador analisam seu histórico de exames e calculam quando os primeiros sinais de uma doença vão se manifestar no cidadão.
Os geolocalizadores, como o Waze, sabem em que endereço você costuma dormir, por quais ruas seu carro passeia, onde você desliga o celular. Seu cartão de crédito entrega tudo o que o correntista compra, quando e em que quantidade.
Nas redes sociais, algoritmos ocultos conhecem em detalhes o que você gosta de ver, que livros você lê, a velocidade de sua leitura, sua capacidade de concentração e seu índice de distração.
A inteligência artificial instalada nas redes sabe mais de você do que você mesmo: em quem você vai votar sua orientação sexual (mesmo aquela que você esconde da família), seu grau de tolerância à divergência, o potencial de sua curiosidade, até onde você topa correr riscos.
Com essas informações, a indústria da publicidade digital ganha montanhas de dinheiro, enquanto você se sente dono de seus segredos. Da próxima vez que você quiser saber sua própria opinião sobre o que quer que seja não pergunte à sua consciência, mas ao Facebook e ao Google.
Sua consciência dissimula, mas, tratando-se de você, o Facebook e o Google não mentem jamais. Eles sabem tudo sobre sua mais secreta intimidade e sobre seus desejos inconfessáveis. Vivemos num mundo sem segredos, por mais que nos cerquemos de segredos neste mundo.
Uma imensa oferta de informações se abre aos nossos olhos e ao nosso controle total, mas nós é que somos controlados pelo cipoal de atrações desejáveis, prazerosas e excitantes.
Aos olhos da grande máquina de espionagem em que se converteu a civilização ocidental, vivemos em casas com paredes de vidro, vestimos roupas transparentes e nos escondemos atrás de palavras que podem enganar nossos vizinhos, mas não os nossos espiões. A privacidade acabou.