Marcelo Moura e Rafael Ciscati
Nas últimas cinco horas de sua vida, enquanto cometia o maior massacre a tiros da história recente dos Estados Unidos, que deixou 49 mortos e 53 feridos na boate gay Pulse, em Orlando, o americano Omar Mateen sacou várias vezes o celular e buscou, no Facebook, as expressões "shooting" (tiroteio) e "Pulse Orlando". Mateen queria medir a repercussão de seu espetáculo sangrento, ainda em curso, nas redes sociais e na internet.
Enquanto mantinha vítimas em cativeiro, ele também telefonou para uma emissora de televisão e chamou a polícia. Mais do que uma consequência, a transformação do massacre em um show de horror, que alcançasse imediatamente o maior número de pessoas possíveis, foi deliberadamente perseguida pelo terrorista.
Horas antes de começar o tiroteio dentro da Pulse, Mateen telefonou à polícia para jurar lealdade ao grupo terrorista Estado Islâmico (EI). Um rapaz de 29 anos, nascido numa família de afegãos que imigrara para os Estados Unidos, Mateen era muçulmano e frequentava uma mesquita na cidade onde morava, na Flórida. Mas não era devoto disciplinado e, quando ia à mesquita, não trocava meia palavra com os demais. Rezava e logo ia embora. O que ressaltava na personalidade de Mateen era sua instabilidade.
Na infância, ele fora um garoto agressivo, disperso. Na adolescência, colecionara advertências escolares por brigar com colegas e desrespeitar regras. Na vida adulta, direcionou a agressividade para o emprego como segurança de um centro de detenção de jovens. Alardeava ter ligações com o Hezbollah, a milícia xiita do Líbano considerada terrorista pelos Estados Unidos. Por isso, entrara numa lista de investigados do FBI.
Ao mesmo tempo, expunha seus preconceitos sem muito pudor: racismo, machismo, antissemitismo e, exageradamente, homofobia. Tivera um rápido casamento com uma jovem muçulmana, conhecida pela internet, que logo quis se separar dele por causa de seu comportamento violento.
Mateen visitou a boate Pulse, frequentada especialmente por gays e simpatizantes, pelo menos uma dúzia de vezes antes do ataque. Chegou a fazer um perfil em um aplicativo de relacionamento gay e a conversar com um usuário que descreveu seu comportamento como "esquisito". Após a morte de Mateen, abatido a tiros pela polícia, o limite entre a espreita de suas vítimas e o pertencimento à comunidade gay ficou impreciso.
Apesar de o Estado Islâmico logo ter declarado Mateen um soldado de sua guerra fundamentalista contra o Ocidente, a investigação não encontrou ligações dele com a organização terrorista. Assim também ficou impreciso se o ato de Mateen era um gesto de extremismo solitário ou um assassinato em massa levado a cabo por um indivíduo com aversão à homossexualidade, talvez a própria.
Na dúvida, Mateen acabou enquadrado na categoria dos "lobos solitários", os terroristas que se radicalizam depois de acessar pela internet a maciça propaganda virtual disseminada pelo Estado Islâmico e outras organizações, e perpetram atentados, sem nenhum planejamento sofisticado e apoio logístico dos grupos terroristas.
Desde o massacre de Orlando, em 12 de junho, uma série de atentados terroristas, assassinatos em massa, chacinas aconteceram em países do Ocidente e no Japão numa sequência ao mesmo tempo impressionante e apavorante. Alguns ataques têm um caráter ideológico, outros não e outros caem numa zona cinzenta. Boa parte deles foi reivindicada por aparentes "lobos solitários" como Mateen, que proclamaram estar agindo em nome do Estado Islâmico.
Foi o caso de Mohamed Lahouaiej Bouhlel, um tunisiano morador de Nice, na Riviera Francesa, que matou 84 pessoas e feriu centenas de outras ao dirigir em alta velocidade um caminhão de 19 toneladas contra uma multidão que assistia à beira-mar à queima de fogos do Dia da Bastilha, a data nacional francesa.
Dias depois, um imigrante afegão de 17 anos, que estava procurando asilo na Alemanha, armado com um machado e uma faca, feriu quatro pessoas a bordo de um trem na Baviera. Na mesma Alemanha, em 24 de julho, um refugiado sírio, com tendências suicidas, feriu 15 pessoas ao se matar com uma bomba quando entrava num festival de música na cidade de Ansbach. Dois dias depois, dois jovens franceses de ascendência árabe, que haviam tentado se juntar ao EI na Síria, invadiram uma igreja católica em Rouen, na Normandia, durante o horário da missa matinal, e degolaram um padre de 86 anos.
Nesse mesmo período, outros episódios de violência em massa, mas sem conexão com organizações terroristas, explodiram nas telas dos celulares, dos computadores e das TVs.
No dia 22 de julho, o alemão Ali Sonboly, de 18 anos, matou nove pessoas e feriu outras 27 ao atirar a esmo, com uma arma comprada pela internet, em frente a um shopping de Munique, na Alemanha. Depois, Sonboly se matou. Quatro dias depois, o japonês Satoshi Uematsu, de 26 anos, de sorriso no rosto e uma faca na mão, entrou de madrugada numa clínica para pessoas com deficiência na cidade de Sagamihara e matou, facada a facada, 19 pessoas e feriu outras 26 – no crime mais marcante dos últimos 70 anos no Japão.
Antes de cometer a chacina, Uematsu, que se entregou à polícia, já havia anunciado, em cartas ao Parlamento japonês, que pretendia livrar o Japão de pessoas com deficiência.
Divulgados em tempo real pela internet, esses episódios em sequência criaram a sensação de uma epidemia global em que um atentado alimenta outro ataque, como se o vírus da violência em massa e do terror fosse contagioso. Essa sensação não é fortuita. Há evidências de que os responsáveis pelos atos terroristas ou assassinatos em massa agiram sob a inspiração de outros ataques.
Segundo as investigações, Mateen, o atirador da boate Pulse em Orlando, fez pesquisas na internet sobre o ataque perpetrado por um casal muçulmano de origem paquistanesa que matou 14 pessoas ao entrar, em dezembro de 2015, num centro comunitário do condado de San Bernardino, na Califórnia. O tunisiano Mohamed Bouhlel fez pesquisas na internet sobre outros ataques, inclusive a chacina de Orlando. Ali Sonboly, o atirador de Munique, idolatrava o terrorista norueguês de extrema-direita Anders Breivik, que matou 92 pessoas com um tiroteio contra um acampamento de jovens e uma explosão à bomba em Oslo, em julho de 2011.
Sonboly cometeu seu ataque em Munique na mesma data em que Breivik, cinco anos antes, fizera seu raid na Noruega.
A suspeita de uma epidemia é sustentada também por pesquisas científicas sobre casos de assassinatos em massa em escolas. Em abril de 1999, dois estudantes americanos abriram fogo contra os alunos de um colégio na cidade de Columbine, no estado do Colorado, matando 12 estudantes e um professor. Oito dias depois, um atentado parecido aconteceu em uma escola do Canadá. Um estudante atirou contra três colegas, matando um.
Foi o primeiro episódio do gênero em terras canadenses em 20 anos. "Esses acontecimentos tendem a alimentar uns aos outros", diz Kevin Cameron, especialista em estresse pós-traumático e diretor executivo do Centro Canadense para Avaliação de Ameaças. Segundo Cameron, casos de violência extrema deixam marcas fundas em pessoas que já têm tendências à violência ou sofrem de transtornos mentais, mesmo que leves.
Os ataques funcionam como um estímulo a novos atentados."Quem comete esses ataques já tem alto risco de protagonizar episódios de violência", diz Cameron. "Um traço que percebemos entre os garotos que fizeram ataques em escolas é que a maioria deles não mantinha relações saudáveis com adultos maduros." Na esteira da inadequação social em manter relacionamentos, recorriam ao álcool e às drogas. Alguns ficavam obcecados por casos de violência encontrados na internet.
O atentado anterior acaba servindo a um duplo propósito para essas pessoas: funciona como um estímulo e dá pistas de como cometer um ataque bem-sucedido, de onde realizá-lo ou de como conseguir armas para levar a ideia adiante. Em 2014, Sherry Towers, professora de ciência da computação da Universidade Estadual do Arizona, nos Estados Unidos, usou métodos de cálculo de propagação de epidemias para estudar a ocorrência de tiroteios em escolas.
Descobriu que, em média, no espaço de 13 dias que se segue a um tiroteio em uma escola, ocorre ao menos um novo incidente semelhante. Segundo seu estudo, 30% desses incidentes nos Estados Unidos são resultado desse processo contagioso. Towers acredita que os atentados terroristas perpetrados por lobos solitários seguem padrão semelhante. "Há um paralelo perfeito entre os lobos solitários e atiradores que abrem fogo em escolas", concorda Cameron, do Centro Canadense para Avaliação de Ameaças.
Como indica o caso de Mateen, o que une os lobos solitários e os atiradores é o perfil psicológico conturbado. Um trabalho de 2015, realizado por pesquisadores do University College de Londres, analisou a saúde mental de 119 lobos solitários responsáveis por ataques, nos Estados Unidos e na Europa, entre 1990 e 2013. Constatou que 32% dos lobos solitários sofriam de transtornos mentais de algum tipo. Em 2013, Clark McCauley, psicólogo do Consórcio Nacional para Estudos do Terrorismo (Start, na sigla em inglês), montou um perfil psicológico dos lobos solitários. "Não há um perfil único.
A diversidade de características é muito grande", diz ele. "O peso da questão ideológica varia a cada caso. Mas, na maioria deles, fatores pessoais ajudam a entender o caminho dessas pessoas para o radicalismo." O lobo solitário perfilado por McCauley tende a sofrer de depressão, sente-se vítima de alguma injustiça pessoal e tem dificuldade para estabelecer relacionamentos afetivos duradouros e estáveis. Não raro, são também indivíduos que sofreram alguma perda — afetiva, de emprego ou de saúde – pouco antes de cometer seus ataques.
"O que vimos nos últimos dias foi um fenômeno suicida", diz McCauley. "Os indivíduos que cometeram esses ataques sofriam de transtornos mentais. Eles tinham consciência de que iriam morrer." Essa descrição contrasta com o perfil psicológico tradicional associado ao terrorista ligado a uma organização. A partir dos anos 1980, alguns trabalhos de psicólogos sustentavam que transtornos mentais eram incomuns entre terroristas. Segundo essas pesquisas, as pessoas não se radicalizavam porque enlouqueciam.
Seu caminho em direção ao radicalismo tendia a ser marcado pela dinâmica própria de pertencer a um grupo marginalizado que resolvia pegar em armas para lutar. Além disso, as organizações terroristas estabeleciam espécies de filtros para seus recrutas. Ser mentalmente estável era algo importante para pessoas destinadas a realizar atividades complexas, de alto risco e em grupo. Segundo a pesquisa de 2015 feita pelo University College de Londres sobre a saúde mental dos terroristas, essa característica continua a predominar entre os terroristas ligados a grupos organizados: apenas 3,4% apresentariam distúrbios mentais.
Se a questão ideológica fornece uma narrativa conveniente a quem já tem uma propensão psicológica para atos de violência extrema, o desejo de obter reconhecimento, por outro lado, fornece um estímulo poderoso para lobos solitários. Na era das redes sociais, em que se criam celebridades de forma quase instantânea, a experiência do anonimato pode ser excruciante para muitas pessoas. Dzhokhar Tsarnaev, autor do atentado na maratona de Boston, em 2013, foi parar na capa da revista Rolling Stone. Apesar de banida na prateleira de lojas como a rede de supermercados Walmart, a edição vendeu o dobro da anterior, dedicada ao cantor Justin Bieber.
Além de propiciar a pessoas com algum tipo de deslocamento social a sensação de integração a uma comunidade – frágil e virtual —, a internet fornece amplo acesso a quem, de forma anônima, quer enveredar por territórios violentos, Universidade de Leicester, no Reino Unido, criaram um site para acompanhar o comportamento do público, ao sentir-se anônimo na internet. "A pesquisa mostrou que pelo menos 56% dos visitantes, que entraram no site com propósitos legítimos, acabaram por acessar material ilegal" diz o livro Internet e pornografia, de Richard Wortley e Stephen Smallbone. "Eles concluíram que a natureza anônima da internet encoraja pessoas a adotar comportamentos e ver material que normalmente evitariam no mundo real. Podemos esperar que sites terroristas recebam muito mais atenção e engajamento on-line do que em seus equivalentes como panfletos e livros."
O terror sempre se apoiou em duas pernas: violência e divulgação. Há mais de 1.000 anos, o assassinato com requintes de crueldade serve menos para calar uma pessoa e mais para apavorar as outras em volta. O terrorismo começou a virar um fenômeno global a partir do desenvolvimento da televisão. Um marco foi o atentado cometido por terroristas palestinos contra a delegação de Israel durante a Olimpíada de Munique, em 1972. Para propagar mensagens de contestação política ou religiosa, radicais como Osama bin Laden enviaram dezenas de fitas de vídeo, com discursos e pregações, para redes de TV. Receberam menos atenção do que queriam.
Numa lógica doentia, concluíram que poderiam chegar ao noticiário com atentados terroristas grandes demais para ser ignorados. A al-Qaeda de Bin Laden tornou-se uma gigante do terror, capaz de recrutar e preparar centenas de soldados, em campos de treinamento próprios, e planejar por meses uma complexa ação internacional. O ataque às Torres Gêmeas, em Nova York, em 11 de setembro de 2001, foi o ápice de superataques planejados. O controle sobre as fronteiras, os meios de comunicação e as transferências de dinheiro foram aperfeiçoados a ponto de dificultar o funcionamento de uma organização tão grande.
Em 2004, o terrorista Abu Musab al Zarqawi, da própria al-Qaeda, mudou o paradigma ao conseguir divulgação para um atentado de pequeno vulto. Zarqawi gravou a execução de um americano, no Iraque, e a publicou na internet. Estima-se que o vídeo foi baixado 500 mil vezes nas primeiras 24 horas. "Os extremistas passaram a acreditar que precisavam de princípios, não de organizações, e deveriam ser encorajadas e agir individualmente, guiados por textos que poderiam encontrar na internet, sem necessariamente pertencer a um grupo", diz o escritor Jason Burke, autor de livros sobre terrorismo e correspondente do jornal britânico The Guardian no Oriente Médio.
A internet tornou possível o sucesso do Estado Islâmico, ao facilitar o recrutamento e a formação de seguidores. "Terroristas na Suécia, na Escócia, na Inglaterra e na Espanha usaram explosivos de fabricação caseira, seguindo receitas disponíveis na rede" diz Joseph Kunkle, especialista em tecnologia de segurança do departamento de segurança do governo americano.
O novo terrorismo se dissemina na velocidade das redes sociais. A proeminência atual do Estado Islâmico se deve muito a sua habilidade com as mídias digitais. Em agosto de 2014, o vídeo em que o jornalista James Foley é degolado por terroristas do El se propagou com facilidade por redes como Facebook, YouTube e Twitter.
As empresas apagaram os perfis de quem compartilhou a imagem, mas a reação foi lenta diante do ritmo de abertura de novas contas. Segundo o Instituto Brookings, dos Estados Unidos, o grupo terrorista usou pelo menos 46 mil perfis de Twitter, entre setembro e dezembro de 2014. Dois anos depois, em 17 de julho, essas redes sociais foram novamente incapazes de impedir a propagação de vídeos e imagens do atentado em Nice, na França.
Pessoas comuns gravaram e compartilharam as imagens entre seus amigos no Facebook e em grupos de discussão no WhatsApp. Os ataques ao jornal Charlie Hebdo e à boate Bataclan, ambos ocorridos em Paris, em 2015, foram divulgados não pelos terroristas, mas pelas próprias vítimas.
A proliferação sem controle das imagens de matança nas redes sociais torna quase inócua uma discussão que começou a ser travada na França sobre limites na divulgação de notícias sobre os ataques terroristas. Na semana passada, o Le Monde, principal jornal do país, decidiu não publicar fotos de Adel Kermiche e Abdel Malik, os autores do ataque à igreja na região da Normandia. "Não sei se a censura é uma boa ideia. Mesmo se a divulgação for uma ajuda aos terroristas, é melhor que o mundo esteja informado sobre o que eles estão fazendo", diz Jonathan Matusitz, especialista em simbologia do terrorismo da Central Florida University, nos Estados Unidos.
Além dessas iniciativas dos veículos de imprensa, o governo francês quer aprovar uma lei que proíbe a divulgação de nomes de terroristas. Achar que a comunicação tem fronteiras é um anacronismo que dá a medida de como os Estados estão desaparelhados – e perdidos – no enfrentamento do terrorismo da era digital.
Em artigo publicado na semana passada na revista Foreign Affairs, os especialistas em terrorismo e radicalismo islâmico Daveed Gartenstein-Ross e Nathaniel Barr, dizem que a epidemia de lobos solitários pode, inclusive, estar sendo superestimada – em decorrência da incapacidade dos órgãos de segurança de identificar as ligações entre o lobo e sua matilha. "Indivíduos classificados como lobos solitários estão frequentemente em comunicação com outros militantes, muitas vezes usando serviços de mensagens criptografadas que são difíceis de detectar e decifrar.
Com o boom das mídias digitais, a radicalização e o planejamento operacional de atentados podem facilmente ocorrer inteiramente on-line", diz o artigo. "Não faz mais sentido aplicar um pensamento da era pré-digital a ataques jihadistas perpetrados na era do Twitter, do Telegram e da criptografia de ponta a ponta." Bem-vindos ao aterrorizante mundo novo.