Marcelo Godoy
O uso das Forças Armadas no combate ao crime organizado cresceu pelo menos três vezes nesta década comparado aos anos 1990. A presença dos militares nas ruas do País também cresceu e somou em média 293 dias por ano fora dos quartéis, cerca de três vezes mais do que nas décadas anteriores. Dados colhidos pelo Estado sobre 181 ações do Exército, da Marinha, da Aeronáutica e do Ministério da Defesa nos últimos 25 anos – a maioria de Garantia de Lei e da Ordem (GLO) – mostram um retrato inédito sobre essas operações no Brasil. Ao todo, cada uma mobilizou em média 3.717 homens e mulheres.
A percepção de que o emprego dos militares no combate à criminalidade está cada vez mais comum é sustentada pelos números. É o que disse anteontem o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, no Twitter. “Preocupa-me o constante emprego do Exército em "intervenções" (GLO) nos Estados. Só no Rio Grande do Norte, as Forças Armadas já foram usadas 3 vezes, em 18 meses. A segurança pública precisa ser tratada pelos Estados com prioridade "zero".”
De fato, a média anual de ações desse tipo saiu de 0,55 nos anos 1990 para 1,8 nesta década, na contagem mais conservadora. Isso porque esse número pode dobrar, caso se considere em separado cada fase da atual Operação Furacão, no Rio. Como foram feitas sob a autorização de um mesmo decreto presidencial, o Ministério da Defesa conta as 14 fases ocorridas em favelas, com tropas e datas diferentes, como sendo apenas uma única ação.
Para criar o primeiro retrato dessas operações no Brasil, o Estado consultou dados das Forças Armadas desde 1992, quando pela primeira vez os militares ocuparam com tanques uma cidade, a fim de garantir a segurança da ECO 92, a conferência sobre o meio ambiente das Nações Unidas. Depois disso, o uso dos militares se ampliou e modificou.
O chefe de operações conjuntas do Ministério da Defesa, general César Augusto Nardi de Souza, diz que a maioria das ações de combate à criminalidade nos anos 1990 tinha como causa a greve de polícias estaduais. O Exército era então chamado para impedir a ação de saqueadores e bandidos aproveitadores, como em Sergipe, no Ceará e na Bahia. Ao todo, foram registradas dez greves de policiais naquela década – incluindo uma da Polícia Federal, em 1994. Essa situação voltou a preocupar o Exército na década atual, que registrou oito casos com a intervenção das Forças Armadas – o mais recente no Rio Grande do Norte.
Presídios
O perfil agora é outro. Até para a revista de presídios o Exército foi convocado: a Operação Varredura, que acaba no dia 17 de janeiro. “Foram operações pontuais, principalmente na Amazônia, Nordeste e Centro-Oeste”, contou o general. Nessas ações, a polícia estadual separava os presos enquanto os homens do Exército vasculhavam as celas de 31 presídios. “Isso mostrou a fragilidade do acesso à arma branca. Encontramos uma para cada dois presos.”
Para ser feita como GLO, a Operação Varredura teve de ser autorizada pelo presidente Michel Temer. Assim como a Operação Furacão, de intervenção nas favelas do Rio. Para o ex-secretário nacional de Segurança Pública e coronel da PM José Vicente da Silva Filho, é “absolutamente ridículo” o uso do Exército na revista de celas. “Você humilha a instituição.”
Dezenas de documentos das Forças Armadas alertam para os riscos de seu emprego no combate ao crime. Desde os danos colaterais (mortes de civis inocentes, crimes militares, etc) até para o desgate que esse tipo de missão provoca na imagem das Forças Amadas.
O general Gustavo Henrique Dutra de Menezes, comandante da 1.ª Brigada de Infantaria de Selva, que analisou as ações de Garantia de Lei e Ordem na Escola de Comando e Estado-Maior (Eceme), afirma em seu estudo A Degradação da Segurança Pública e as Suas Consequências Para as Forças Armadas que as ações de GLO apresentavam “uma quantidade de possíveis reflexos negativos significativamente superior aos reflexos positivos”.
Para ele, a atual conjuntura de segurança pública “induz cada vez mais ao emprego das Forças Armadas nesse escopo de tarefas, enquanto as modernizações e adequações necessárias ao sistema não são adotadas”.
"Mexicanização" deve ser alerta, diz especialista
Especialistas ouvidos pelo Estado consideram que o quadro atual deve servir de alerta para o País. Um dos cenários mais temidos com a vulgarização do uso das Forças Armadas nessa tipo de atividade é o risco de ocorrer como no México, onde Exército e Marinha receberam a atribuição de combater o crime organizado. A medida trouxe desgate à imagem das Forças Armadas e aumentou o risco de cooptação de seus integrantes pelos cartéis da droga.
“Esse risco existe, mas não sei se na direção de México e Colômbia”, disse o cientista político e professor aposentado da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Eliezer Rizzo de Oliveira. Para ele, ou os governos estaduais e a União estabelecem uma política de segurança para enfrentar o crime organizado ou o Estado vai fazer frente a isso com o que tem: as Forças Armadas.
De acordo com ele, o Gabinete de Segurança Institucional estima em 200 mil só os adeptos do Primeiro Comando da Capital (PCC) no País. “Não temos uma polícia permanente entre os Estados e a União. A Força Nacional de Segurança nem permanente é.”
O coronel José Vicente da Silva Filho também defende a criação do que ele chama de “Polícia Militar Federal ou Guarda Nacional” que teria a atribuição de cuidar da fronteira, das áreas inóspitas da Amazônia e reforçar os Estados em momentos de crise da segurança pública. “O banditismo no Rio não é caso de Forças Armadas. Esse crime de bandido em favela é problema típico de polícia.” Segundo ele, o cenário da mexicanização não é próximo, mas “não pode ser desconsiderado”.
Para o chefe de operações conjuntas do Ministério da Defesa, general César Augusto Nardi de Souza, a solução é fortalecimento e integração das seguranças estaduais. “Quanto mais local for a força, melhor para atuar. Falta integração maior entre as seguranças públicas dos Estados e aparelhamento das PMs.”
"Por Forças Armadas nas ruas é dar férias para bandidos"
O modelo das Forças Armadas ocupando uma área, como o Complexo do Alemão ou da Maré, está enterrado. Ao menos na atual gestão. O ministro da Defesa, Raul Jungmann, afirmou que os militares continuarão a atuar “sob demanda”, usando seu grande contingente para o cerco de áreas em apoio às polícias e na área de inteligência.
O modelo anterior, segundo ele, tinha como único resultado “dar férias para os bandidos”. Aqui, ele faz seu balanço sobre o uso das ações dos militares em missões de Garantia de Lei e Ordem (GLO) no País.
Há um crescimento de década para década da participação das Forças Armadas em ações contra o crime organizado nos Estados. Essa tendência é sustentável a longo prazo, ministro?
– O que eu tenho observado é que predominam, no caso das GLOs, as ações ligadas à greve de polícia, que é uma questão de segurança pública, e de combate à violência urbana. Somando os dois dados chega-se a 36% (o ministro referese à consolidação dos dados feitos pelo Ministério da Defesa), o que representa a emergência na área da segurança pública do País nas últimas duas décadas. Representa também uma opção do constituinte, que deixou 80% das responsabilidades da segurança pública com os Estados. A União ficou com 20%, com o combate ao tráfico internacional de drogas e armas. E não se criou nenhum corpo intermediário entre as Forças Armadas e as forças regulares da segurança pública para que atuasse nas situações extraordinárias, excepcionais, onde você tem a falência ou incapacidade dos governos estaduais de manter a segurança. O que eu quero dizer com isso? Estou pensando nos Estados Unidos, que têm a Guarda Nacional, que é exatamente esse corpo que desempenha esse papel.
Não existe uma Polícia Militar Federal…
– O que nós temos é um arremedo, que é a Força Nacional, que cumpre sua função, mas precisa ser permanente, senão você tem a banalização da GLO. E essa banalização da GLO não é boa para as Forças, e não é boa para o próprio País. As Forças Armadas não têm capacitação e treinamento e muito menos vocação para substituir as polícias. Sem nenhum demérito ao papel e à importância que têm as polícias, mas a formação do militar é para a defesa da soberania nacional.
Por exemplo, empregar as Forças Armadas para revista em presídios, como está sendo feito?
– Certamente quando se criou o modelo de GLO não se pensava que a falência na área de segurança chegasse ao ponto de exigir a presença do Exército para revistar penitenciárias, não é? Vou lhe dar um dado que corrobora isso que você está dizendo. Um em cada três presos – e nós já fizemos mais de 30 varreduras – está armado. Ou seja, os nossos presídios e penitenciárias são peneiras e são home office do crime organizado.
Esse é um dos problemas centrais da nossa segurança: nós não somos capazes de cortar o comando de quem está preso e, aliás, grande parte dessas gangues surgiu no sistema penitenciário, que é uma espécie de incubadora do crime organizado. Marcinho VP está há 15 anos em Mossoró e continua mantendo o controle sobre sua organização. Marcola está mais ou menos o mesmo tempo preso. O que você verifica é que essa não é uma atribuição das Forças Armadas. Mas as Forças Armadas no Brasil cumprem funções extracentrais. É difícil encontrar outras Forças Armadas que cumpram tantas funções.
O senhor percebe o desejo de governos estaduais de transmitir o ônus da segurança pública para o Exército?
– É uma tentação. É uma tentação em governos estaduais com crise fiscal – tem Estado que pede GLO e há 12 anos não faz concurso para a polícia –, com sistemas prisionais saturados e convivendo com problemas de opinião pública. Se nós vamos para policiamento das ruas, isso isoladamente é dar férias aos bandidos. Quando você põe as tropas nas ruas, o crime se retrai. Porque ele sabe que nós não podemos ficar lá muito tempo. Seja porque ele sabe que a lei não permite, seja porque é muito caro. Quando nós saímos, eles voltam. Ou seja, você não golpeia a capacidade operacional do crime.
Ao mesmo tempo os Estados se sentem desobrigados…
– Claro que há uma certa desobrigação. De fato isso se comprovou. Nós estivemos durante um bom tempo no Alemão e na Maré (no Rio). As quadrilhas saíram, ganhamos a confiança das comunidades, mas como o Estado não entrou fazendo a complementação social disso – emprego, renda, saúde e educação –, quando nós saímos, tudo voltou a ser como antes. E os militares se sentem, nesse sentido, corretamente, usados. Pois fizemos todo o trabalho, o trabalho mais duro, mas não houve complementação. O sentimento é que nós enxugamos gelo.
Qual será então o papel das Forças Armadas nessas ações?
Então, nós estamos atuando no Rio de Janeiro dentro da seguinte lógica: não ocupamos permanentemente nenhuma área. Segundo: atuamos por demanda, em apoio às forças policiais que lideram o processo. Então, por exemplo, você tem uma comunidade. Nosso papel é de fechar, de blindar. Só nós temos massa para fechar, por exemplo, todas as entradas e acessos de uma grande comunidade como a Rocinha, que tem 80 mil pessoas.
Isso libera o pessoal lá dentro para fazer busca e apreensão. Terceiro: atuamos integradamente por meio da inteligência e estamos à disposição para fazer varreduras e apoio logístico. Isso decorre da compreensão de que a ocupação abaixa a temperatura, mas não combate nem elimina a infecção. A infecção tem de ser combatida com a inteligência, com os policiais e a capacidade do Judiciário.