Eduardo Gonçalves
Veja.com
17 Junho 2021
Em fevereiro de 2020, uma mensagem de voz viralizou nos celulares da bandidagem em Manaus. “Vermelhou, mano. Vermelhou.” Fogos de artifício foram ouvidos e vistos em toda a cidade, enquanto homens armados saíam às ruas pichando as iniciais do Comando Vermelho em casas, prédios, escolas e igrejas. Algumas inscrições cobriam menções à facção local Família do Norte, em um aviso à população de que o crime organizado estava sob nova direção.
De lá para cá, enquanto os amazonenses sofriam duas ondas devastadoras de Covid-19, a organização criminosa nascida na década de 70 no Rio de Janeiro (a primeira do Brasil a ser reconhecida como tal e a firmar parcerias com grupos criminosos internacionais) consolidava o seu poder na principal cidade da fronteira norte do país — segundo a Polícia Civil, eles controlam 95% das áreas sob influência do crime, hoje chamadas de “zonas vermelhas”.
Em vez de ocupar morros, agora o grupo avança sobre bairros pobres e violentos às margens do Rio Negro, por onde pode embarcar a droga e fugir rapidamente da polícia.
O poderio da facção veio a público de uma maneira bem conhecida em centros urbanos do Sudeste. Nas madrugadas de 6 a 8 de junho, houve mais de cinquenta ataques a tiros e incêndios em delegacias, hospitais, outros prédios públicos, escritórios políticos, veículos da polícia e ônibus. A vacinação e as aulas foram suspensas e o transporte público, paralisado. A ofensiva envolveu até duas lanchas.
Foi uma clara demonstração de força da facção perante o Estado, que reagiu prendendo mais de setenta pessoas. No celular de um dos detidos, Roney Machado, havia troca de mensagens com traficantes cariocas. “O que ocorre aqui é um processo de franquia do tráfico. Eles vão até o Rio fazer uma espécie de curso no crime”, diz o delegado Marcelo Martins, que trabalha em uma das delegacias alvejadas e que coordenou a Operação Fight Back, de caçada aos criminosos.
A escolha de Manaus não foi ao acaso. Nos últimos anos, em que o negócio de cocaína se tornou um dos mais lucrativos — e perigosos — do mundo, a cidade se tornou um entreposto-chave. Conquistá-lo significa controlar boa parte da chamada “Rota Solimões”, um dos maiores corredores de drogas que chegam ao Brasil vindas da Colômbia e do Peru, países produtores. A importância é ainda maior para o Comando Vermelho, que vinha perdendo territórios para o seu principal rival, o PCC, na denominada “Rota Caipira”, um corredor que liga a Bolívia e o Paraguai a São Paulo, Paraná e Rio.
No Rio, viu seu espaço ameaçado pelas milícias nos morros cariocas. “Além de ser um grande centro consumidor, Manaus é um distribuidor de drogas para o mercado interno e externo. É um negócio rentável, pois é um local com dificuldades de fiscalização e baixo preço dos entorpecentes adquiridos direto da fonte”, afirma o promotor Igor Starling, do Ministério Público Estadual.
No avanço sobre o Amazonas, o Comando Vermelho usou uma estratégia política. Para repelir o PCC, a facção se aliou à Família do Norte, parceria que foi celebrada até em uma música funk em 2017. Depois, a FDN entrou em decadência devido a uma guerra interna entre dois chefões e levou um “golpe” do grupo carioca em 2020, que passou a cooptar os seus membros e acabou tomando a “Rota Solimões”, que começa na cidade de Tabatinga, na fronteira com o Peru e a Colômbia.
Nesse último país, o Comando Vermelho tem uma parceria histórica com as Farc — basta lembrar que um dos chefões da facção, o traficante Fernandinho Beira-Mar, foi preso na selva colombiana, em uma área controlada pelo grupo guerrilheiro. Não é incomum encontrar na região amazônica fuzis com a inscrição Ejército del Pueblo — desde que as Farc foram desmobilizadas, boa parte de seu arsenal foi para as mãos das facções.
As forças policiais agora tentam esclarecer o que motivou os ataques. Eles eram comuns entre as facções, mas não diretamente contra agentes do Estado. A principal hipótese é a de que tenha sido uma represália à morte de um dos conselheiros do Comando Vermelho, Erick da Silva, o Dadinho, baleado em confronto com a polícia um dia antes da ofensiva.
Apesar da situação descontrolada nas ruas, a maior preocupação das autoridades era com a movimentação dentro dos presídios, que foram palco de massacres brutais de dezenas de detentos, com decapitações e empalamentos, em decorrência da guerra de facções nos últimos anos entre a Família do Norte, o PCC e o Comando Vermelho. “O sistema está calmo e controlado”, diz o secretário de Administração Penitenciária do Estado, Marcus Vinicius de Almeida.
Restam, no entanto, ao menos duas grandes preocupações. Uma é que parte da calmaria nas prisões se deve justamente ao fato de o Comando Vermelho ter conquistado a hegemonia nesses locais. A outra é que a expansão e a nacionalização de facções como o Comando Vermelho e o PCC, com o sufocamento ou a cooptação de criminosos locais, podem significar que o tráfico de drogas brasileiro está passando por um processo de “cartelização”, a exemplo do que ocorreu em países que são reféns hoje de poderosos conglomerados criminosos, como o México.
“Esse é um movimento muito perigoso e exige atenção para não permitir uma ‘mexicanização’ do Brasil”, afirma o delegado Marcelo Martins. É mais um bom motivo para os dias de terror em Manaus servirem de alerta ao país.