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Tentáculos da Máfia 2.0

 

BRENO SALVADOR

RIO, MILÃO E LONDRES – "A árvore da 'Ndrangheta cobre quase o mundo inteiro", diz o escritor Roberto Saviano em "Zero Zero Zero" sobre como atua hoje a máfia da Calábria. Um forte estereótipo dos mafiosos italianos é o de gângsteres que usam a violência para tudo e controlam os negócios e o poder no empobrecido Sul.

Mas esta realidade ficou relegada ao imaginário popular. Segundo especialistas ouvidos pelo GLOBO, a Cosa Nostra siciliana, a Camorra napolitana e a 'Ndrangheta calabresa são máfias cada vez mais discretas e distantes das armas enquanto se expandem internacionalmente com a dominação das rotas do narcotráfico.

Além disso, infiltram-se em variados mercados, escondendo-se sob uma "capa de invisibilidade legal" que dificulta rastrear suas atividades criminosas e seus mais de € 150 bilhões estimados em arrecadação anual – mais de 10% do PIB da Itália.

– As máfias mostram maior capacidade de desenvolver atividades na economia legal, não só com a lavagem de dinheiro, mas com investimentos formais e lícitos, contando com conluios e cumplicidades – sintetiza ao GLOBO Rocco Sciarrone, professor da Universidade de Turim e especialista nas atividades econômicas dos criminosos italianos.

Nos últimos anos, o Norte acolheu de vez as máfias do Sul – de Roma a regiões como Lombardia, Piemonte, Emília-Romanha e Ligúria – com negócios legais em diferentes setores. Na caótica gestão do lixo e na falsificação de produtos importados, por trás está a Camorra. Em supermercados, bares, boates, restaurantes, jogos de azar, hotéis e empresas de construção, a lavagem feita pela 'Ndrangheta é incalculável. Os tentáculos vão até apostas, transportes, agropecuária, esporte e, mais recentemente, o tráfico de migrantes – que a Cosa Nostra vem ampliando. A rica Lombardia, onde está Milão, tem o maior índice de investimentos criminosos da Europa, grande parte vinda dos calabreses.

– Empreendedores do Norte julgam serem convenientes os serviços de proteção e mediação oferecidos pelos mafiosos, além de sua disponibilidade de recursos financeiros. Aliar-se com mafiosos acaba se tornando comumente vantajoso para afrontar a concorrência nos mercados – acredita Sciarrone.

EXPANSÃO SILENCIOSA NA EUROPA E NAS AMÉRICAS Os mafiosos lavam rapidamente em negócios de dinheiro em espécie, como bares e restaurantes; usam laranjas para investir em setores lucrativos e ainda na energia renovável, com subsídios do Estado; controlam portos, postos e transportes, facilitando o comércio de drogas e produtos falsificados e contrabandeados; agenciam empregos em prostituição, construção, manufatura, limpeza e saúde; e, como habitual, corrompem autoridades.

 

Hoje a principal potência internacional do crime organizado, a 'Ndrangheta desbanca os famosos sicilianos e os emergentes camorristas. Mais de 80% de sua receita vêm de capitais estrangeiros, segundo a Transcrime, influente comunidade de criminólogos da Universidade Católica do Sagrado Coração (Milão). A "guinada" rumo ao exterior coincide com a derrocada da Cosa Nostra após os anos de terrorismo durante a liderança de Salvatore "Totò" Riina (chefão que morreu este ano, cumprindo perpétua) na década de 1980 e início da de 1990.

– A Cosa Nostra de Riina atacou o Estado, matando jornalistas, promotores e juízes. A 'Ndrangheta nunca fez isso. São muito mais eficazes em aproveitar brechas – pondera o criminólogo Federico Varese, professor da Universidade de Oxford especializado nas máfias europeias. – A Cosa Nostra perdeu terreno e hoje é bem mais local.

A 'Ndrangheta está em toda a Europa Ocidental e tem braços do Canadá à Austrália, passando por Hong Kong. Na Itália, infiltra-se especialmente nos setores de alimentação, construção civil, energia renovável e transportes. Dezenas de milhares de restaurantes dentro e fora do país engrossam sua receita, estimada em € 44 bilhões anuais.

Já na América Latina, a 'Ndrangheta é aliada do PCC e de cartéis mexicanos e colombianos. No porto de Gioia Tauro, em Reggio Calabria, o mais movimentado da região, a cada mês são interceptadas centenas de quilos de cocaína (consequentemente, milhões de dólares). A maior parte vinda do porto de Santos (SP), que fornece até 80% da cocaína que entra na Europa, segundo Nicola Gratteri, vice-procurador-chefe da província italiana.

– A 'Ndrangheta prospera com a cocaína. Gioia Tauro é um porto moderno, é seu território e tem uma fiscalização débil – avalia Varese.

Com chefes engravatados ou escondidos em bunkers atuando de modo independente em seus países, a 'Ndrangheta é uma árvore imensurável.

– O problema é que a máfia hoje se organiza diretamente através das grandes operações internacionais. Uma resposta precisa ser coordenada entre vários Estados e frentes de autoridade – afirma Ernesto Ugo Savona, diretor da Transcrime.

A lavagem de dinheiro facilitada por paraísos fiscais prospera ainda mais com a demanda de investimentos internacionais em áreas como o mercado imobiliário britânico. E até criptomoedas poderiam ser usadas, advertem autoridades.

– Eu não superdimensionaria o papel do bitcoin (para a máfia). Os bancos ainda são a principal rota para lavar bilhões – destaca Varese.

 

‘Poderosas chefonas’: mulheres ganham projeção nas máfias italianas

Reorganização e prisões de líderes mudam grupos patriarcalistas na Sicília e em Nápoles

Mariangela Di Trapani, responsável por reorganizar a Cosa Nostra através de clã da máfia siciliana, é presa em dezembro – ALESSANDRO FUCARINI / AFP

 

RIO, PALERMO E NÁPOLES – Mariangela di Trapani visitava fielmente na cadeia o marido, o mafioso siciliano Salvatore Madonia, que cumpre várias penas de prisão perpétua. Era o único elo que o líder do clã Resuttana, um dos principais da Cosa Nostra, tinha com o mundo externo — ele vive isolado graças ao 41-bis, o rígido regime prisional aplicado pelo Estado italiano contra os condenados por associação com a máfia. Mas a história de amor guardava tons mais sombrios: ela acabou presa no início de dezembro sob acusações de associação e organização criminosa, extorsão e receptação.

E o caso de Mariangela, que havia se tornado a líder de fato do clã, não é isolado. Com a decadência da máfia da Sicília e o endurecimento da perseguição pelo Estado italiano aos chefes do crime, o profundo machismo enraizado em suas estruturas se vê confrontado por um protagonismo cada vez mais visível das mulheres.

“Irmã de…”, “Mulher de…”, “Filha de…”. Um papel de peso das mulheres nas máfias italianas seria há não muito tempo uma ideia impensável, mas não agora:

“São muitos os sinais de que as mulheres avançaram em seu papel interno nestas organizações, seja na ajuda a fugitivos ou na comunicação dos detentos com o exterior, até a gestão do dinheiro. São mensagens simbólicas”, escreveu no início do mês a jornalista Angela Corica, do diário “Fatto Quotidiano”.

Mariangela não só consultava a opinião do marido na cadeia, como ouvia as instruções dele para liderar uma das facções mais poderosas e leais à Cosa Nostra. Segundo investigadores, Mariangela era chamada de “a chefona” e queria mudar de dentro a Cosa Nostra — órfã de uma liderança central desde a morte do “chefe de todos os chefes”, Totò Riina, semanas antes. A começar por ordenar uma série de assassinatos em Palermo, segundo o Departamento Distrital Antimáfia da capital siciliana.

— A Cosa Nostra está tentando reestruturar sua liderança, descentralizá-la. Riina foi um chefão terrível porque centralizou o poder e matou muito, consequentemente enfraquecendo severamente sua máfia. É interessante ver que as mulheres têm um papel maior. Indica ainda o enfraquecimento da associação como um símbolo masculino — avalia o criminólogo italiano Federico Varese, da Universidade de Oxford.

EM EVIDÊNCIA NA TELEVISÃO

Mas não só a Cosa Nostra vê a crescente força feminina. Dias depois da prisão de Mariangela di Trapani, cinco mulheres do poderoso clã Zagaria, da Camorra napolitana, também foram presas. Segundo a procuradoria de Nápoles, em 2013, há uma “porção rosa” da máfia “muito mais participativa nas decisões das cosche (nome dos clãs da Camorra)”.

O destaque das mulheres no crime organizado napolitano ficou ainda mais evidente com a superpotência que é a série “Gomorra”, hoje uma das principais atrações televisivas da Itália e inspirada no livro homônimo de Roberto Saviano. Matriarca do clã que protagoniza a trama, os Savastano, “Dona” Imma é temida por aliados e rivais e chega a assumir provisoriamente o poder; a chefona Annalisa Magliocca, conhecida como Scianel, comanda alianças e manda matar quem julgar necessário; e a insuspeita Patrizia Santoro, sobrinha de um dos braços-direitos do protagonista Don Pietro Savastano, acaba virando sua principal interlocutora.

Apesar da maior evidência das mulheres na máfia, é muito difícil descobrir o verdadeiro papel delas — apenas que está crescendo. Afinal, o segredo pregado pelos mafiosos sobre sua atuação dificulta até a circulação de informações entre os próprios membros.

— Um juiz, tempos atrás, me disse que para saber quem era o novo chefão quando um morria ou era preso, os mafiosos liam os jornais — conta o professor e sociólogo Diego Gambetta.

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