Konstantin Bogdanov
RIA Nóvosti
A Rússia poderá criar empresas militares privadas e possivelmente usá-las em missões no exterior. O primeiro-ministro e presidente eleito Vladímir Pútin mencionou essa possibilidade após entregar seu relatório sobre o desempenho do governo em 2012 para a Duma de Estado. Muitos países possuem tais empresas, mas a questão precisa ser cautelosamente considerada devido a características específicas da Rússia.
A possibilidade de usar empresas militares privadas (EMPs) como um instrumento de influência russa no exterior foi sugerida pelo deputado do Rússia Justa, Aleksêi Mitrofanov.
“Acredito que essas empresas são uma forma de implementar os interesses nacionais sem o envolvimento direto do Estado”, respondeu Pútin. “Sim, acho que poderíamos considerar essa opção.”
O que exatamente isso quer dizer considerando a rica experiência internacional da Rússia na área? Além disso, como essa medida poderia ser implementada em meio à atual realidade do país?
Mercenários do século 20
Uma das tentativas anteriores de usar essas “ferramentas indiretas de influência” quase levaram ao aparecimento de dois Estados semipiratas na África nos anos 60: o rico em cobres Katanga, que declarou independência do Congo em 1960 e foi reintegrado somente após intervenção nas Nações Unidas em 1962, e Biafra, separada da Nigéria em 1967 e reincorporada em 1970.
Ao deixar a África naquela época, as potências coloniais precisavam de um instrumento adicional para estabilizar o continente. Inicialmente, mercenários europeus contratados pelos governos locais foram usados para combater as guerrilhas.
Entretanto, eles também eram contratados para derrubar os governos “errados”, o que faziam rapidamente e, no geral, durante a noite, para que as redes de televisão no dia seguinte registrassem apenas os radiantes moradores locais munidos de armamento pesado.
Algumas dessas histórias terminaram em constrangimento, contudo. O coronel Bob Denard, um soldado e mercenário francês que havia lutado em Katanga, e seu grupo de companheiros escaparam por um triz ao tentarem derrubar o presidente de esquerda de Benin em 1977. Mas as outras missões de Denard, como, por exemplo, em Comores, foram bem sucedidas.
Os mercenários estavam concentrados na região dominada pelos brancos da África austral, incluindo a Rodésia, durante o mandato de Ian Smith como primeiro-ministro, e a África do Sul, na época em que era governada pelos bôeres.
Quando a comunidade internacional tomou medidas duras contra os mercenários, incluindo a adoção da Convenção das Nações Unidas contra o Recrutamento, Utilização, Financiamento e Treino de Mercenários, o vácuo foi preenchido por empresas militares privadas, contratadas pelos governos africanos para garantir a “segurança sistêmica em condições difíceis”.
A mais conhecida delas foi a Executive Outcomes, que operava na África do Sul e foi diluída no final de 1998 como uma entidade jurídica, e não como uma comunidade de mercenários.
Em meados dos anos 90, as EMPs podiam escolher entre um vasto número de militares aposentados nos países da Otan após o fim da Guerra Fria. O número de militares soviéticos, em especial os pilotos e engenheiros, contratados pelas forças aéreas dos países africanos também subiu acentuadamente.
A procura pelos serviços das EMPs aumentou à medida que os conflitos e até mesmo guerras locais tomaram as periferias da ex-zona de influência soviética, e os regimes africanos começaram a brigar pelos escassos recursos de seus países.
Consolidação
Os governos ocidentais prontamente usaram as EMPs para resolver um crescente número de problemas. O mercado era dominado por coronéis norte-americanos e britânicos aposentados que discretamente trabalhavam lado a lado de seus governos e serviços de segurança.
As empresas militares privadas foram brotando e logo se tornaram um elemento-chave da presença dos países mais ricos em pontos críticos espalhados pelo mundo inteiro.
Se a idade de ouro dos mercenários foi na década de 1960 do Congo, o Iraque o Afeganistão nos anos 2000 podem então ser considerados a idade de platina. Os mercenários recebiam entre mil e 1,500 dólares pelas operações em zonas de conflito, aproximadamente sete vezes mais do que as forças militares norte-americanas com qualificações semelhantes.
A terceirização de mercenários norte-americanos tornou-se sobretudo evidente durante as guerras no Iraque e no Afeganistão. Até o final da década de 2000, a Comissão sobre Contratação em Tempos de Guerra no Iraque e no Afeganistão descreveu em seu relatório ao Congresso norte-americano que a proporção de pessoal terceirizado em relação às forças militares dos EUA nesses países era de aproximadamente um para um.
Essa força de trabalho contratada logo desenvolveu estreitas relações com fornecedores e empresas de serviços, que lutaram entre si pelos contratos mais lucrativos disponíveis nos enfraquecidos governos do Iraque e do Afeganistão.
Os governos ocidentais tinham dificuldade de realizar operações em zonas de combate sem uma força de trabalho terceirizada – termo também usado para os mercenários cujas perdas só interessam seus empregadores diretos, além de receberem as missões mais delicadas. Se forem pegos em flagrante, eles devem resistir por conta própria – não há nenhum governo para protegê-los.
Em 2011, as empresas militares privadas ressurgiram em sua forma tradicional na Líbia – como combatentes treinados e instrutores de rebeldes, que só conseguiram romper a resistência das forças pró-Gaddafi seis meses após os ataques aéreos da Otan e uma operação terrestre liderada por tropas do Reino Unido, Catar, Emirados Árabes Unidos e, possivelmente, França.
EMPs na Rússia
Há chances da Rússia criar empresas militares privadas, de acordo com as declarações de Pútin. Mas também existem muitos detalhes ligados a sua implementação.
A questão principal não é como controlar o pessoal terceirizado, pois eles não serão oficialmente contratados pelo Estado.
Muito mais importante, entretanto, é a forma que as EMPs assumirão de acordo com as características específicas da Rússia.
Há um mercado limitado para os seus serviços, afinal, essas empresas terão que depender das grandes companhias russas – em outras palavras, as preocupações do Estado relacionadas à área energética.
Elas serão contratadas, acima de tudo, para proteger as áreas de infraestrutura e produção dessas empresas na Rússia e no exterior.
Também poderão ser empregadas para ajudar na implantação da zona Euroasiática. Essa iniciativa vem provocando mudanças no espaço da CEI (Comunidade dos Estados Independentes) e está aumentando a presença da Rússia em algumas repúblicas pós-soviéticas instáveis, principalmente na Ásia Central – assim como nas autoproclamadas repúblicas da Abecásia e da Ossétia do Sul.
As EMPs russas poderiam ainda ser usadas no Afeganistão, cuja falsa estabilidade vem aproximando os interesses da Otan e os de Moscou.
Embora o emprego de tropas adicionais na região seja dificultado por problemas locais e danos políticos, o uso de pessoal contratado poderia suavizar alguns desses obstáculos.
Paralelamente, as EMPs seriam uma boa maneira de oferecer aos militares aposentados novas oportunidades de emprego em um momento que os ministérios da Defesa e do Interior estão planejando reduzir suas forças de trabalho.
Originalmente publicado pela agência de notícias RIA Nóvosti