João Fellet
Os conflitos entre moradores e militares e entre traficantes e agentes de segurança no Complexo do Alemão (zona norte do Rio) nos últimos dias refletem um desgaste “natural” da permanência das forças oficiais na área, mas não devem fazer com que o governo recue na ocupação de favelas antes controladas pelo narcotráfico, dizem analistas.
No domingo, moradores e militares entraram em confronto após uma discussão que teria começado por causa do volume de uma televisão num bar. A briga deixou 12 pessoas feridas, entre as quais dois soldados. Na segunda-feira, moradores acusaram os militares de terem apagado as luzes da rua e disparado contra a população, em retaliação ao conflito da véspera. O Exército nega e diz que os moradores reagiram à prisão de oito mototaxistas.
Na noite desta terça-feira, houve um confronto ainda maior, quando cerca de 50 narcotraficantes invadiram o Complexo na tentativa de retomar áreas das quais haviam sido expulsos quando as forças de segurança ocuparam o local, em novembro. Houve tiroteio, e uma jovem de 15 anos morreu ao ser atingida na cabeça.
Para analistas ouvidos pela BBC Brasil, no entanto, ainda que os eventos recentes indiquem a necessidade de aprimorar a estratégia de ocupação dos morros, eles não tiram os méritos da política implantada pelo governo do Rio em conjunto com as Forças Armadas.
Semelhanças
Gláucio Soares, pesquisador do Centro de Estudos sobre Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes, diz que os militares que atuam no Complexo do Alemão não são treinados para lidar com “pessoas em muitos sentidos semelhantes a eles”.
“Quem serve o Exército no Rio são, em sua maioria, praças que crescem e moram aqui, muito parecidos com policiais menos qualificados e também com os traficantes”.
Essa semelhança, afirma Soares, dificulta o estabelecimento de uma relação com o respeito e o distanciamento necessários e gera desentendimentos, agravados pela baixa escolaridade e pela inexperiência dos soldados. Por isso, ele defende que os militares – bem como policiais que atuam nos morros – sejam mais bem treinados.
O pesquisador diz ainda que, com a ocupação do morro pelas forças de segurança, muitos moradores acharam que suas vidas melhorariam em pouco tempo. A frustração dessas expectativas, segundo ele, também pode ter provocado uma hostilidade maior em relação às forças.
No entanto, Soares diz que os conflitos não reduzem o sucesso da ocupação dos morros, que deve ser encarada como parte de um processo que não colocará fim à violência de imediato.
Segundo ele, as taxas de homicídio nas áreas ocupadas baixaram drasticamente, e o crescimento das ligações ao disque denúncia da polícia fluminense indica que a confiança entre as forças de segurança e moradores tem aumentado.
“Pense em como seria caso esses confrontos tivessem ocorrido há cinco anos – quantos mortos estaríamos contando agora?”
Vazio institucional
Para o sociólogo José Augusto Rodrigues, professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), os desentendimentos entre moradores e soldados são normais.
“As pessoas que vivem nas comunidades passaram um longo período num vazio institucional de lei e ordem e, assim como não tinham todos os direitos, também não se habituaram a certas obrigações inerentes à cidadania, particularmente em relação a posturas adequadas de convivência.”
Além disso, Rodrigues diz que as forças de segurança ainda não encontraram a melhor forma de se relacionar com a população, embora o Exército brasileiro tenha tido sucesso em restabelecer a ordem em áreas conflagradas no Haiti, onde o Brasil chefia uma missão da ONU para a estabilização do país.
Segundo ele, os desentendimentos mostram que a relação entre forças de segurança e moradores deve ser mediada por civis, prática que já vem sendo adotada aos poucos em algumas comunidades com Unidades de Polícia Pacificadoras (UPP).
Paralelamente, diz o professor, o acesso desses moradores a políticas públicas – possibilitado pelo fim do domínio dos traficantes – tende a tornar a relação com os policiais mais harmoniosa a longo prazo.
Pânico
Quanto à tentativa de invasão do Complexo por traficantes, ele diz crer que o grupo busca gerar instabilidade e pânico para poder negociar com o Estado uma repressão menor em outras áreas.
Para Rodrigues, no entanto, “o cálculo é equivocado, já que o mesmo comportamento levou à invasão do Alemão pelas forças policiais – que não foi planejada, mas sim uma resposta a uma série de ameaças, ataques e arrastões”.
Embora elogiem os resultados da ocupação, tanto Rodrigues quanto Soares afirmam ser desejável que os soldados do Exército sejam substituídos o quanto antes por policiais militares de UPPs, treinados especialmente para atuar nas comunidades.
“Havendo contingente de PMs treinados para essas operações, é preferível que o processo de pacificação seja passado para as mãos desse novo contingente”, diz Rodrigues.