Sívio Queiroz
Conexão Diplomática
Quase não foi notada a publicação de um novo relatório das Nações Unidas sobre o impacto desestabilizador do crime organizado na África Ocidental, em particular na Guiné-Bissau, que se tornou um dos principais entrepostos para o tráfico da cocaína da América do Sul para a Europa — em boa parte, por conta da fragilidade das instituições, num círculo vicioso de consequências sombrias. O fenômeno não é novo e, segundo o texto, teve seu momento de pico em 2010. Mas, para quem possa pensar que o pior já passou, o enviado especial da ONU para a Guiné-Bissau, José Ramos-Horta — Nobel da Paz de 1996 e ex-presidente do Timor Leste —, renovou o apelo aos países de origem para que redobrem os esforços de contenção dos fluxos de droga.
Do ponto de vista do Brasil, o primeiro dado que chama a atenção é o de que sai daqui a maior parte da cocaína enviada às numerosas ilhotas que fazem da Guiné-Bissau uma plataforma natural para o narcotráfico. Mais relevante, no relatório recém-divulgado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Droga e Crime (UNODC), é a observação de que quadrilhas africanas, formadas em especial por nigerianos e angolanos, vêm assumindo papel crescente nos negócios ilícitos que percorrem o Atlântico Sul.
O crime organizado em expansão é contraface do comércio intensificado no sentido sul-sul, uma das linhas mestras da política externa brasileira na última década. E o alerta do UNODC praticamente coincidiu com a passagem da presidente Dilma pela região, na semana anterior, por conta da cúpula América do Sul-África (foto) — seguida de uma visita justamente à Nigéria. Em resumo, enquanto o Brasil oficial exporta sua experiência com programas de renda e segurança alimentar, o submundo que se nutre de um dos maiores mercados consumidores de drogas do mundo estende seus tentáculos na direção de outras presas ao seu alcance.
A íntegra do documento, em inglês, está no endereço:
http://www.unodc.org/documents/data-and-analysis/toct/West_Africa_TOCTA_2013_EN.pdf
Braço forte, mão amiga
Não por acaso, e justamente a pedido do UNODC, o governo brasileiro mantém desde 2009 um programa de cooperação destinado a capacitar as forças de segurança da Guiné Bissau. Na ocasião, o país africano passava por um período agudo de inquietação, com tentativas de golpe e assassinatos políticos de alto escalão. De lá para cá, missões do Exército Brasileiro têm cruzado o Atlântico e, na mão inversa, grupos de policiais guineenses têm frequentado cursos por aqui.
Geopolítica do crime
Desde que o UNODC alertou pela primeira vez sobre essa rota alternativa da cocaína entre a América do Sul e a Europa, via África Ocidental, a montagem do quebra-cabeça vai compondo a imagem de uma geopolítica em mutação no narcotráfico. Nessa nova ordem que se tece no continente, um dado inicial é a preponderância dos cartéis mexicanos na Colômbia, origem da maior parte da droga destinada aos mercados de "primeiro mundo". Ao lado desses grandes capos, porém, traficantes brasileiros, peruanos e de outras nacionalidades vêm operando em faixa própria — secundária, é certo, porém rentável o suficiente para capitalizá-los.
Paralelamente, no que diz respeito ao Brasil, acumulam-se os sintomas de um fenômeno complementar e de risco potencial crescente. À parte os lucros obtidos em operações de alcance internacional com a cocaína colombiana, "minicartéis" se estabelecem para abastecer um mercado que perde apenas, atualmente, para Estados Unidos e Europa — esta, aliás, apenas se tomada por inteiro. A demanda doméstica, porém, é suprida fundamentalmente com cocaína originada na Bolívia e no Peru. E, tanto mais preocupante, crescem as apreensões de pasta-base, um indicador de que se expande por aqui também a atividade de refino. Noves fora, as redes criminosas aprendem rapidamente a agregar valor e multiplicar o capital.
Os colombianos, nos anos 1970 e 1980, e os mexicanos, nas décadas seguintes, percorreram trajetória semelhante.
Longo curso
Como nota final, vale registrar que toda essa movimentação tem sido acompanhada no radar por autoridades policiais do Extremo Oriente. Indícios recorrentes apontam o nascente "Narcosul" como possível agente de um fluxo crescente de drogas detectado nos últimos anos em portos e aeroportos da área do Pacífico.