AVISO DE UTILIDADE PÚBLICA: ESTAMOS EM GUERRA!!!
Fábio Costa Pereira
Procurador de Justiça do MPRS
O Brasil, definitivamente, não é um país monótono. Não que isso possa ser considerado uma virtude. É apenas uma simples constatação. A cada vez que acreditamos que a nação chegou ao fundo do poço, eis que se abre um alçapão e descemos um pouco mais rumo à geena do inferno (lago de fogo infernaldescrito no livro do Apocalipse). Esta dura constatação ficou muito evidente este ano. Mal os primeiros raios solares despontaram no horizonte, saudando a chegada de 2017, e o país já emergia em sua primeira grande tragédia.
Fazendo jus à paixão nacional por novelas permeadas por cenas fortes e violentas, os acontecimentos que se seguiram ao início de 2017 não deixaram nada a desejar às produções televisivas apresentadas em horário nobre pelas emissoras nacionais de televisão. Muito sangue e violência fizeram parte do enredo.
No primeiro dia do ano que debutava, tendo como cenário o interior do Complexo Penitenciário Anísio Jobim (COMPAJ), no Amazonas, duas corporações criminosas iniciaram sangrenta guerra. A Família do Norte (FDN), aliada do Comando Vermelho (CV), corporação criminosa com abrangência nacional e inimiga visceral do também nacional Primeiro Comando da Capital (PCC), com este entrou em guerra.
O motivo da guerra era bastante prosaico, estabelecer qual das duas corporações dominaria o mercado milionário da distribuição e tráfico de drogas na região amazônica. Na verdade, a guerra travada faz parte da estratégia maior de ambas corporações, a de dominar o mercado de drogas no Brasil e eliminar, de forma concreta, a concorrência.
Como consequência, mais de cinquenta soldados (soldados sim, pois estas corporações já contam com exércitos numerosos e bem armados) de ambos os exércitos foram brutalmente assassinados, muitos dos quais, inclusive, decapitados enquanto ainda vivos. Todos os atos de brutalidade, é claro, foram devidamente filmados e transmitidos, em tempo real, via redes sociais, conferindo à trama criminosa a dramaticidade e terror pretendidos por seus autores.
Como toda telenovela que se preze, a antes narrada não se esgotou em um singular capítulo, outros se seguiram ao primeiro. Dando continuidade à trágica e real “novela”, que bem poderia ser chamada de A GUERRA PELO DOMÍNIO DO BRASIL, as hostilidades, ainda no mês de janeiro, foram retomadas em outras casas prisionais do Norte e do Nordeste do país, com idêntica virulência e crueldade.
Na Penitenciária Agrícola Montecristo, em Roraima, mais de trinta presos resultaram mortos na guerra entre corporações criminosas. Outros vinte e seis combatentes criminosos, ainda, foram mortos na penitenciária de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte, como resultado da beligerância havida entre as hordas criminosas.
O "saldo" geral da cruenta guerra, cujo epílogo encontra-se muito distante, em poucos dias de combates, foi o de mais de uma centena de presos barbaramente executados por outros presos, dando a antever que o ano de 2017, na esteira dos anos que o antecederam, não será nada tranquilo e nemfavorável (Mc Bin Laden).
Os presságios negativos que acompanharam o descortinar do ano, infelizmente, de sombrios maus-augúrios, parecem assumir contornos de tendências e padrões que irão se agravar em 2017, superando as marcas históricas de violência verificadas no país em anos anteriores, em especial em 2014, o mais cruento, em termos de mortes intencionais violentas, na história do país[1].
Porto Alegre, cidade onde vivo (na verdade sobrevivo), ou little Caracas[2] para os mais íntimos, batendo os seus próprios recordes negativos, apenas na primeira quinzena do primeiro mês do ano, registrou expressivo aumento na taxa de homicídios, cerca de 18,4% em comparação ao mês de janeiro de 2016, em uma assustadora média de três homicídios ao dia[3].
É importante ter em mente que, mantendo-se a tendência de mortes verificadas em janeiro, o que está ruim ficará pior. A taxa de homicídios na capital gaúcha, que é de 34,73 por cem mil habitantes, segundo o estudo THE 50 MOST VIOLENT CITIES IN THE WORLD (referência constante na nota de rodapé nº 2), uma vez mantida a referida tendência nos meses vindouros, será em muito superada.
O dia a dia inseguro a que estão submetidos os habitantes de Porto Alegre, usado apenas exemplificativamente, não desborda da realidade da crescente violência urbana vivenciada pelos demais brasileiros que habitam outras cidades, capitais e Estados do país.
Nesse contexto de crescente violência, o Espírito Santo, nos últimos dias, tornou-se a face mais sombria dessa pérfida realidade. Em razão da greve dos policiais militares capixabas, iniciada em 03 de fevereiro (não finda até o término do presente artigo), as ruas do Estado ficaram à mercê dos criminosos, os quais, com saques, roubos e mortes responderam “positivamente” à ausência do poder do Estado.
Apenas nos primeiros três dias de greve, para se dimensionar o tamanho do problema causado pela ausência de agentes da Segurança Pública nas ruas das cidades capixabas, o número de homicídios contabilizados superaram em 1.000% os contabilizados em todo o mês janeiro. Nesses três dias, cinquenta e uma (51) pessoas foram mortas de forma violenta[4]
A incapacidade dos poderes constituídos de conter o feroz aumento da criminalidade no Espírito Santo e nos demais Estados do país é o retrato mais claro da situação de anomia em que nos encontramos imersos. O Estado não consegue impor a observância das regras de convívio social e proteger os seus tutelados das atrocidades contra eles praticadas pelos mais diferentes tipos de criminosos, desde violentos de rua até do colarinho branco.
O pior é que os criminosos, em todo o Brasil, perderam, por completo, o medo do Estado, em especial das polícias, primeira linha de defesa da sociedade contra a criminalidade.
Em reportagem de autoria de LUÃ MARINATO, publicada no Jornal Extra que circulou no dia 28 de janeiro do presente ano, o articulista trouxe à luz alguns dados assustadores, obtidos junto ao Instituto de Segurança Pública (ISP).
Segundo a reportagem, apenas no Rio de Janeiro, em um período de sete anos, nada menos do que setecentos e sessenta e nove (769) policiais, entre civis e militares, foram mortos. Em 2017, apenas em janeiro, já foram mortos dezessete policiais (17), a revelar a triste tendência de incremento na morte de agentes que devem impor a Lei e a Ordem.
No resto do país, o número de baixas nas fileiras policiais não é muito diferente: no mesmo período de sete anos, de 2009 a 2015, dois mil quinhentos e quarenta e três ( 2.543) agentes da lei foram mortos, em uma média aproximada de sessenta (60) mortes por 100 mil policiais[5].
A falta de temor pela figura do Estado, de sua capacidade de impor a Lei e a Ordem e o desprezo pela vida humana, possibilitou, na última década, a rápida expansão da criminalidade comum e organizada, tornando a população do país refém de seus desígnios e vontades.
Com uma média anual superior a cinquenta mil (50.000) homicídios, o Brasil, recordista mundial em números de mortes intencionais[6], contabiliza, nos últimos cinco anos, de 2011 a 2015, a expressiva cifra de duzentos e setenta e nove mil, quinhentos e sessenta e sete (279.567) pessoas mortas de forma violenta.
No ano de 2014, acima usado como paradigma, por ter sido o mais violento de nossa história, a criminalidade ceifou a vida de cinquenta e nove mil seiscentos e vinte e sete (59.627) brasileiros, a razão de 4.968,91 por mês, 163,36 por dia e 6,80 por hora[7].
Os números assim expostos, de forma tão fria e didática, não conseguem traduzir o que eles efetivamente representam: a dor e o sofrimento das famílias enlutadas. As mortes, pelos estudos oficiais, são apresentadas como meras estatísticas quantitativas, como uma realidade distante. Atrás de cada singular número, não se pode esquecer, há uma vítima com nome, sobrenome e familiares que foram condenados à prisão perpétua da saudade e do esquecimento.
No entanto, é fundamental perceber que, tão somente na hora em que comparamos o número de mortes violentas que ocorrem no Brasil com o número de mortes de igual qualidade ocorrentes em outros países, é que nos damos conta da real dimensão do problema em que nos encontramos imersos: estamos em guerra, ainda que não declarada, e o Estado brasileiro é incapaz de nos proteger daqueles que querem nos tomar a vida.
Muito embora a afirmativa de que estamos em guerra possa parecer irreal ou por demais forçosa, ela é verdadeira. O número de “mortes matadas” verificadas a cada ano no Brasil é muito superior ao número de mortes violentas verificadas, em igual período, em países em guerra. Eis aqui o escuro porão do poço lamacento em que todos nós brasileiros estamos presos, e o pior, sem que haja uma via para dele sair.
Durante a Guerra da Bósnia, que foi marcada por sua violência e tentativa de “limpeza étnica”, no período em que ela perdurou, de 1992 a 1995, portanto três longos anos, de 93.000 a 100.000 mil pessoas foram mortas, em uma média de 33.000 mil mortes ao ano, ou seja, nem de perto a média anual brasileira, a qual, como já referido, orbita em torno de 50.000 mil mortes ao ano[8].
Nem na Síria, há anos envolvida em uma brutal guerra civil, onde em atuação o Estado Islâmico, cujos integrantes não poupam atrocidades contra a população civil e os seus inimigos, mata-se tanto quanto no Brasil. De 2011 a 2015, naquele país, foram mortas duzentas e cinquenta e seis mil, cento e vinte e quatro pessoas (256.124), enquanto, em nosso amado torrão natal, em idêntico período, foram mortas duzentos e setenta e nove mil, quinhentos e sessenta e sete (279.567) pessoas. A “vantagem” para o Brasil, na comparação, é de quase vinte mil mortes (20.000)[9].
Inegável, diante dessas informações, que vivemos em um país conflagrado e que os nossos governantes, até o momento, não perceberam que estamos em guerra, tratando o problema como se este fosse apenas de Segurança Pública, não destinando recursos materiais e humanos suficientes para combater os nossos poderosos e motivados adversários, corporações criminosas e criminosos dos mais diversos matizes.
A cada novo ano que começa, nós cidadãos brasileiros, pagadores de impostos e cumpridores da Lei, principais vítimas da guerra não declarada, esperamos, com todas as nossas forças e fé, que o país se torne um lugar mais seguro e tranquilo para se viver, onde nossos filhos possam crescer e prosperar.
Porém, basta que os raios de sol do novo ano despontem no horizonte para que a caótica realidade do país bata à porta de cada brasileiro e nossas expectativas rapidamente tornem-se quimeras.
Na mesma esteira dos anos anteriores, 2017, nem bem iniciou, e já foi marcado pelo cometimento de inúmeros atos de brutalidade e violência em todos os rincões do país, demonstrando que a nossa guerra particular irá se tornar cada vez mais cruel, não nos permitindo a ilusão de um singular dia de paz e esperança.
Diante da crueza dos fatos e acontecimentos que têm se desenrolado neste início de ano, é possível afirmar que, preservada a tendência verificada nos meses de janeiro e fevereiro, bateremos, em 2017, todos os recordes negativos possíveis em termos de violência.
Esperemos que o Leviatã[10] brasileiro, hoje figura caricata e que a ninguém impõe medo, aperceba-se do tamanho do desafio que lhe é imposto e de que estamos em guerra, mostrando, finalmente, algum tipo de reação eficaz.
E que Deus tenha piedade de todos nós!!!
[1] Desde 2004, quando iniciado o acompanhamento da evolução dos homicídios no Brasil pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), o ano de 2014 ficou marcado pelo seu recorde negativo: foram registrados 59.627 homicídios no país, o maior em dez anos de análise (CERQUEIRA, D. et all. ATLAS DA VIOLÊNCIA 2016. Brasília. 2016: p. 8)
[2] Caracas, segundo a ONG mexicana Conselho Cidadão pela Seguridade Social Pública, é a cidade mais violenta do mundo, contabilizando 119, 87 homicídios por 100.000 habitantes. Porto Alegre, segundo o mesmo estudo, é “apenas” a quadragésima terceira (43ª) cidade mais violenta, contabilizando 34,73 homicídios por 100.000 habitantes. (Disponível em: “http://www.seguridadjusticiaypaz.org.mx/biblioteca/prensa/summary/6-prensa/231-caracas-venezuela-the-most-violent-city-in-the-world”. Acesso em 07 de fevereiro de 2017).
[3] Disponível em: “http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/policia/noticia/2017/01/porto-alegre-registra-em-media-tres-assassinatos-por-dia-em-2017-9399163.html”. Acesso em 07 de fevereiro de 2017
[4] Disponível em: “http://g1.globo.com/espirito-santo/noticia/2017/02/grande-vitoria-registra-51-mortes-durante-protesto-de-familias-de-pms.html”. Acesso em 07 de fevereiro de 2017.
[5] Fonte: 10º ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA (Disponível em: “http://www.forumseguranca.org.br/atividades/anuario/”. Acesso em 08 de fevereiro de 2017.)
[7] Fonte: 9º ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA (Disponível em: “http://www.forumseguranca.org.br/atividades/anuario/”. Acesso em 08 de fevereiro de 2017.)
[8] Em artigo jornalístico escrito por VESNA PERIC ZIMONJIC para a imprensa portuguesa, MIRSAD TOKACA,diretor do Centro de Pesquisa e Documentação Bósnio, afirmou: "a quantidade de mortes está em torno de 93 mil e possivelmente chegue a 100 mil. De todo modo, continua sendo um número extremamente alto, mas existe uma grande diferença em relação aos 200 mil que são mencionados". (ZIMONJIC, 2005).
[9] Informação comparativa constante no ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA 2016, p. 6.
[10] Leviatã, monstro marinho descrito no Livro de Jó, que dominava pelos mares, é utilizado por Hobbes para descrever a figura do Estado.
Matérias do Mesmo Autor