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Contardo Calligaris – Minha policial ideal

 

Contardo Calligaris

Folha de São Paulo

Juliane dos Santos Duarte, 27, policial militar, entrou em férias e foi se divertir. Na noite do dia 2 deste mês, esteve num churrasco e conheceu duas outras jovens mulheres. As três foram para a casa de uma delas. Tudo isso na favela Paraisópolis, cidade e estado de São Paulo (é o que dizem).

Mais tarde, a cerveja acabando, Juliane foi para um bar, onde se interessou por mais uma moça, e as duas também se beijaram. Nesse bar, alguém anunciou que tinham roubado seu celular. Na tentativa de resolver o caso, Juliane revelou que ela era policial militar.

Logo depois, chegaram dois ou três bandidos que atiraram nela e a levaram de lá, ferida. Um dia depois, com calma, o crime decidiu executá-la.

No último domingo (12), Paula Cesarino Costa, ombudsman da Folha, dedicou sua coluna a uma reportagem publicada no jornal do dia 9 sob o título: "Policial Juliane teve seus últimos momentos com bebida, pegação e dança". Segundo a ombudsman, a reação contra essa reportagem e seu título conseguiu reunir um conjunto variado de leitores: de militantes feministas de esquerda até o candidato Jair Bolsonaro. Pois é, junto-me a esse estranho clube.

A reportagem em questão revelava o que tinha acontecido antes de a policial ser ferida e assassinada. O relato não acarretava em si nenhum juízo de valor explícito, mas a manchete parecia feita para indignar aqueles leitores (e são numerosos) segundo os quais uma policial não poderia e não deveria se comportar como Juliane: como é que uma policial militar, mesmo em dia de férias, cairia na farra?

E tomando cerveja? E frequentando bares? E beijando três mulheres na mesma noite? Se ao menos fossem homens, mas… Mulheres?

Para esses leitores, que, suponho, gostaram da manchete, os criminosos, no fundo, foram a espada de um deus bitolado e puniram nossa guardiã da ordem pela desordem de sua vida.

Fato curioso, quando li a reportagem do dia 9, pensei exatamente o oposto: para mim, Juliane é o protótipo da policial militar em quem confio para cuidar da segurança dos cidadãos (ou seja, da minha). Cuidado: não estou dizendo que deveríamos ser tolerantes com nossos policiais e aceitar que eles se divirtam e cometam, às vezes, alguns excessos.

Estou dizendo que SÓ quero policiais capazes de cair na farra, SÓ me sinto protegido por quem não corre o risco de confundir o crime com o que alguns, segundo suas eventuais crenças religiosas, imaginariam ser o pecado.

Não quero policiais que pensem que quem circula à noite nos bares é suspeito. Não quero policiais que pensem que ficar com três pessoas, ainda por cima do mesmo sexo, na mesma noite seja sinal de uma pecaminosa promiscuidade.

Aliás, não quero policiais que se preocupem com o que é pecaminoso: quero policiais que se preocupem com o que é legal ou ilegal.

Voltando à reportagem: Juliane não foi morta por ser festeira e homossexual, ela foi morta por ser policial.

O fato notável (e o escândalo) não é que ela estivesse, numa noite de férias, beijando meninas em um bar de Paraisópolis. Isso é normal e é bom.

O fato notável (e o escândalo) é que existam espaços urbanos que são administrados por um poder que não é da nossa República, que têm um serviço de ordem "alternativo" e exerce uma "justiça" também "alternativa".

O escândalo é que aceitemos viver num país que admite a existência de zonas de ocupação, em que o Estado brasileiro não é soberano, em que declarar que você é policial significa ser morta como se você fosse um espião infiltrado em território inimigo.

O título da reportagem me incomodou, em suma, porque desviava a atenção do leitor. Era como se alguém tentasse despertar o moralista hipócrita em nós (olha a policial beijando meninas!) para que não enxergássemos a verdadeira tragédia, que é a seguinte: vivemos num país em que os policiais que moram nos bairros "errados" devem estar à paisana indo ao trabalho ou voltando dele e, ainda, quando lavam sua farda, "optam" por pendurá-la para secar em casa, atrás da geladeira, e não na área.

Uma manchete que nos diz que Juliane, policial, bebia e beijava na sua primeira noite de férias serve só para que nos esqueçamos da vergonha que deveríamos sentir diante do fato de que uma policial não foi "só" morta —foi ferida, julgada e condenada à morte por ser policial. Isso dentro do que é, em tese, o território nacional.

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