Pela primeira vez, um jornalista morreu durante um confronto no Rio. O cinegrafista da TV Bandeirantes Gelson Domingos, de 46 anos, foi atingido ontem no peito por um tiro de fuzil, que atravessou o colete à prova de balas que ele usava quando fazia imagens de uma operação policial contra o tráfico na Favela de Antares, em Santa Cruz, na Zona Oeste. Segundo a polícia, o local está ocupado por traficantes da facção criminosa que já dominou o Complexo do Alemão, desde novembro do ano passado ocupado por militares da Força de Pacificação. Gelson deixa mulher, três filhos e dois netos. Além dele, quatro pessoas, que seriam traficantes, segundo a polícia, foram mortas e nove, presas.
Os momentos que antecederam a morte do cinegrafista foram de grande tensão. Equipes de jornais e TV acompanhavam policiais do Batalhão de Operações Especiais (Bope) e do Batalhão de Choque desde a saída deles do Centro. Havia uma mobilização da imprensa por conta de boatos sobre uma possível ocupação da Rocinha. Mas o comboio policial seguiu para a Zona Oeste, causando surpresa. Assim que os policiais se aproximaram do acesso à favela, na Avenida Antares, traficantes começaram a lançar rojões. Por volta das 6h, cerca de cem policiais entraram na comunidade, por uma área de lazer da Comlurb. Enquanto uma parte dos repórteres buscava abrigo, outra, em que estava Gelson, decidiu seguir a polícia.
O tiroteio começou quase imediatamente. Os policiais davam ordens para que todos se jogassem no chão para sair da linha de tiro.
O fotógrafo Fernando Quevedo, do GLOBO, contou que alguns policiais do Choque acreditavam que o Bope já tinha a favela sob controle:
– Mas, como o tiroteio era intenso, decidi não seguir e me abriguei.
Na verdade, o Bope entrou pelas avenidas Urucânia, Antares e Cesário de Melo. Acuados no interior da favela, os traficantes reagiram.
A Divisão de Homicídios já está com as imagens feitas pelo próprio Gelson, que estava com o repórter Ernani Alves. No grupo com cerca de dez policiais, estavam ainda três funcionários da TV Record e dois da TV Globo. Nas cenas, é possível ver Gelson – que teria dito ter avistado um traficante armado – e um cabo do Choque atrás de uma árvore e bandidos num poste, a 50 metros. Um traficante atirou, atingindo a árvore, e o policial se abaixou. Em seguida, um novo disparo acertou Gelson, que deixou cair a câmera.
– O tiro que pegou no Gelson era para bater em mim – disse o policial que estava com ele.
Os PMs tiveram que sustentar uma troca de tiros com os criminosos para que Gelson fosse socorrido. Os outros jornalistas também só conseguiram sair com a ajuda de policiais.
– Peguei o cinegrafista debaixo de tiros. Disseram que um disparo passou a meio metro das minhas costas – contou um PM.
Gelson já estava morto quando chegou às 7h40m à UPA do Cesarão, em Santa Cruz.
Dois dos bandidos mortos seriam um "gerente" do tráfico, conhecido como BBC, e seu braço direito, China.
Em nota, a Rede Bandeirantes lamentou a morte do cinegrafista, informando que adota precauções nesse tipo de cobertura, como o uso de coletes à prova de balas nível 3-A (proteção máxima permitida pela Forças Armadas para civis). Também por nota, a PM afirmou que o objetivo da ação era checar informações de que havia no local chefes do tráfico fortemente armados. A Polícia Militar disse que as operações na favela ocorrerão por tempo indeterminado.
O ex-capitão do Bope Rodrigo Pimentel disse que, em operações como a de ontem, o procedimento correto é que dois policiais sigam na frente, ficando um deles na retaguarda:
– Se o repórter não estiver colado nesses policiais, ele se encontra relativamente seguro. A prova disso é que não perdemos nenhum soldado em favela este ano e, só na última semana, morreram dez bandidos.
Mas Pimentel afirmou que o colete de Gelson era de nível 2 e o protegia apenas contra tiros de pistola e revólver. Somente os modelos de nível 3 são capazes de deter um tiro de fuzil.
– Esse tipo de colete pesa uns 12 quilos e possui placas de cerâmica na parte da frente e de trás, além de proteções para o pescoço e outras partes do corpo – afirmou.
O sociólogo e professor da Uerj Ignácio Cano questionou a lógica militar adotada nas ações contra o crime.
– Tratar dessa questão como se fosse uma guerra acaba provocando a morte de inocentes – criticou Cano.
Para o coordenador do Núcleo de Estudos Estratégicos da UFF, Eurico de Lima Figueiredo, é preciso haver uma regulamentação da participação de jornalistas em conflitos armados.
– A regra principal que deveria ser seguida pela polícia não é atacar os criminosos, mas proteger os cidadãos. O bandido não tem compromisso com a vida, o policial, sim.
Em 2002, o jornalista Tim Lopes, da TV Globo, foi executado por traficantes do Complexo do Alemão, quando trabalhava numa reportagem sobre bailes funk.
PARTICIPARAM DA COBERTURA: Elenilce Bottari, Érica Magni, Leonardo Cazes, Pablo Rebello, Rafael Galdo, Ronaldo Braga e Waleska Borges