SÃO PAULO – Ao chegar em casa, num condomínio fechado no interior de Minas Gerais, em janeiro deste ano, F. e a mulher foram surpreendidos na porta por três assaltantes. Amordaçados, com armas apontadas para a cabeça e depois trancados no banheiro, eles viram a casa passar por um arrastão. Menos de dois meses depois, F. acorda durante a madrugada com o telefonema do irmão que está hospedado em sua casa na suíte ao lado da dele. Ladrões estavam tentando entrar na residência, desta vez pela janela do banheiro. Naquele dia, F. decidiu que teria uma arma dentro de casa. Desde o mês passado, ele dorme com uma pistola no quarto comprada legalmente e registrada na Polícia Federal. A história do casal mineiro não é um caso isolado. Em 2012, o número de registro de armas de fogo concedido a cidadãos comuns foi o maior no país desde o Estatuto do Desarmamento.
Levantamento inédito da Polícia Federal feito a pedido do GLOBO mostra que o Brasil vem registrando desde 2007 um crescimento na compra por civis de armas novas legalizadas – não entra nessa conta o comércio de armas usadas. Se logo depois da aprovação do estatuto o número de autorizações dadas pela PF para a compra de uma arma nova foi, em média, de 7 mil por ano, em 2012 isso mais que quadruplicou. Foram 31.500 registros expedidos, sendo a maioria deles, 18.627 (60%), destinados a cidadãos comuns. Os demais foram para empresas de segurança privada e órgãos governamentais, exceto Polícia Militar e as Forças Armadas.
Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Santa Catarina aparecem, respectivamente, como os estados com o maior volume de armas registradas por pessoas físicas nos últimos 11 anos (2002 a 2012), período do levantamento. Trata-se de um raio-x da entrada de armas legalizadas no país. Existem hoje cerca de 8 milhões de armas legais em circulação no Brasil. A estimativa é de que um outro arsenal de mesma proporção segue na clandestinidade, segundo o Movimento Viva Rio. Parte dele está nas mãos dos criminosos.
LEGISLAÇÃO ESTÁ MAIS RIGOROSA
A escalada chama a atenção por ocorrer sob a vigência de uma legislação mais rigorosa para a concessão de posse de armas por qualquer cidadão. O Estatuto do Desarmamento, aprovado em dezembro de 2003, aumentou de 21 para 25 anos a idade mínima para se ter uma arma e passou a exigir laudo psicológico e realização de um teste prático de tiro. Antes as autorizações eram dadas pela Polícia Civil. Agora, é competência da Polícia Federal.
Em outros estados preocupa o ritmo de crescimento de autorizações num período recente (2008 a 2012). Na Bahia, o aumento foi de mais de 400% nesses cinco anos. Em 2008, foram 224 armas novas autorizadas para civis pela Polícia Federal e, no ano passado, 1.237. No Espírito Santo, o ritmo foi parecido: saltou de 237 em 2008 para 1.015 em 2012. No Mato Grosso, a diferença foi ainda maior: os registros para civis subiram de 30 para 1.403.
Não há um padrão nos índices de homicídio nesses estados. Na Bahia e Espírito Santo, por exemplo, as taxas de morte violenta aumentaram na última década, segundo o Mapa da Violência 2013, enquanto no Mato Grosso, reduziram. No caso do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Rio de Janeiro, os dois primeiros tiveram aumento dos homicídios entre 2000 e 2010, enquanto no Rio, o índice caiu.
Ter uma arma legalizada custa caro. Não se gasta menos do que R$ 1 mil com todo o processo de registro na Polícia Federal, que exige certidões em cartório, declaração de necessidade do interessado, exames psicológico e prático e curso de tiro. Isso sem contar o gasto com a compra da arma. As regras mais rígidas buscam restringir o acesso. O Brasil é o país onde mais se mata com arma de fogo no mundo. Mas, como mostram os dados do Sistema Nacional de Registro de Armas (Sinarm) da Polícia Federal, apesar do rigor, tem crescido a procura por armas.
O público é predominantemente masculino, segundo a psicóloga credenciada na PF para a realização do laudo psicológico Ana Carolina Silva.
– Em quase quatro anos, nunca atendi uma mulher. São homens das mais diversas idades. A maioria está buscando uma arma para autodefesa. Mas também tem muitas pessoas que procuram o registro porque praticam o esporte de tiro – disse Ana Carolina.
O exame é rigoroso. Empresário em Rio Claro, no interior paulista, H., de 35 anos, conta que ficou cerca de quatro horas no consultório. Ele quer comprar uma pistola para deixar na empresa dele. H. diz que a região onde a empresa está instalada tem sido alvo de frequentes assaltos.
– O posto da Polícia Militar que atende a minha cidade fica em Piracicaba, mais ou menos a 30 quilômetros daqui. Na região, já sei que houve casos de assalto. Espero nunca precisar, mas, se precisar, sei usar – justificou H., que pratica tiro esportivo há cerca de três anos e tem uma arma em sua residência.
O estatuto permite que um civil tenha, no máximo, seis armas registradas na Polícia Federal, e exige que elas sejam recadastradas a cada três anos, caso contrário, caem na ilegalidade e o proprietário, se flagrado, pode pegar de 1 a 3 anos de detenção.
Em Ribeirão Preto, também no interior de São Paulo, o advogado Rogério Sommerhalder, de 43 anos, é colecionador de armas. Mas ele decidiu no ano passado comprar uma pistola específica para se defender dentro de casa. O arsenal da coleção precisa ficar desmuniciado e guardado em um cofre – uma exigência do Exército no caso de colecionadores.
– Comprei um cofre de banco para isso – contou.
O cuidado não impediu que parte da coleção fosse roubada há cerca de sete anos. Ele conta que teve a casa, onde vive sozinho, invadida e seis armas levadas.
– Uma pessoa que trabalhava na minha casa deu a dica para os bandidos. Ainda bem que todas foram recuperadas dias depois. São armas que não têm muito mercado e também não servem para a atividade criminosa.
A CPI das Armas mostrou em 2005 que a maioria das armas usadas pelos criminosos provém de desvios do mercado legal.
A relação entre homicídios e armas é uma discussão polêmica. De um lado, os defensores do desarmamento defendem que, num país onde 70% dos homicídios são praticados por arma de fogo, quanto maior a circulação delas, maior a ameaça. Os defensores do direito à autodefesa dizem que o crescimento de assassinatos se deve à impunidade e ao despreparo das polícias e não à posse de armas por civis.
Nem o Ministério da Justiça nem a Polícia Federal se manifestaram sobre os números.
Se de um lado está crescendo o volume de armas legalizadas que entram no país, de outro, tem havido uma redução da quantidade entregue nas campanhas de desarmamento. A indenização é de R$ 150 a R$ 450. Na primeira campanha, em 2004, foram 450 mil armas recolhidas. Em 2011 foram 37 mil e, no ano passado, 10 mil a menos.
O Exército informou que destruiu 230 mil armas em 2012 oriundas da Justiça (apreendidas pelas polícias) e da campanha do desarmamento.