Polícia Federal S/A matéria de Isto É
Na noite de 21 de agosto de 2007, o agente da Polícia Federal Roberto Shiniti Matsuuchi entrou em sua casa, localizada em um condomínio de classe média alta em Brasília, e encontrou o alarme desligado e as gavetas reviradas. Matsuuchi percebeu que havia sido vítima de um furto. Haviam sumido relógios, óculos de sol, máquinas fotográficas, um uniforme completo da PF e uma pistola austríaca Glock, sucesso mundial como arma de pequeno porte. Como qualquer cidadão, Roberto Matsuuchi foi a uma delegacia de polícia e registrou o crime em um boletim de ocorrência. No dia seguinte, sua mulher, a agente federal Ana Cristina Matsuuchi, que trabalha na sede da PF, fez uma comunicação do furto a seu chefe imediato, o delegado federal Anderson Gustavo Torres. Mesmo sem ter competência legal para isso – por lei, investigar crimes como esse é trabalho para a Polícia Civil –, Torres abriu uma investigação paralela para descobrir os ladrões. De acordo com uma denúncia apresentada há dez dias pelo Ministério Público à Justiça Federal, o delegado Anderson Torres, o casal Matsuuchi e outros três agentes federais cometeram barbaridades nessa investigação informal.
Segundo a denúncia dos procuradores da República José Alfredo de Paula Silva e Bruno Calabrich, os policiais federais teriam – à luz do dia e diante de testemunhas, inclusive de vizinhos dos Matsuuchis – sequestrado dois rapazes, Marcelo Lamartine Coelho e Clésio Divino de Castro. Os dois, segundo os procuradores, foram levados para locais ermos. Algemados, foram submetidos a espancamentos em uma sessão de tortura para confessar o crime. Coelho e Castro teriam sido submetidos a asfixia por saco plástico, uma técnica muito praticada nos porões da ditadura militar (1964-1985) e imortalizada em uma cena brutal no filme Tropa de elite. De acordo com a denúncia, dois dias depois da sessão de tortura, Coelho e Castro passaram por exames no Instituto Médico-Legal. Apesar de nada terem constatado em Coelho, os peritos identificaram lesões que teriam sido feitas com instrumento contundente em Clésio de Castro. Semanas depois, a Polícia Militar do Distrito Federal encontrou a pistola Glock e prendeu os verdadeiros bandidos, que nada tinham a ver com Coelho e Castro.
A denúncia contra os seis federais é uma das várias ações do Ministério Público Federal que mostram um lado obscuro da Polícia Federal, uma instituição em geral reconhecida pelo profissionalismo de seus agentes, pela eficiência nas investigações e pelos métodos modernos de apuração de crimes como tráfico internacional de drogas e armas, desvios de verbas federais e contrabando. A grande maioria dos policiais federais justifica essa fama. Mas como em toda grande corporação – a PF tem mais de 15 mil policiais – há joio em meio ao trigo. E algumas ervas daninhas começaram a aparecer depois que o Ministério Público Federal resolveu exercer para valer sua prerrogativa constitucional de controle externo da PF – uma atribuição que, até 2008, era exercida pelos procuradores de forma burocrática e sem rigor.
A mudança de atitude do Ministério Público foi desencadeada pela Operação Satiagraha – marco na história de operações de combate à corrupção pela PF. Comandada pelo hoje deputado federal Protógenes Queiroz (PCdoB-SP), a Satiagraha causou estardalhaço ao levar à cadeia o financista Daniel Dantas, o controlador do Opportunity. A operação, porém, passou a ser contestada pela própria PF depois da revelação de que agentes secretos da Abin e da Aeronáutica participaram da investigação e de que outras irregularidades foram cometidas por Protógenes, como violação de sigilo funcional e fraude processual. Por causa dessas irregularidades, Protógenes foi condenado, em primeira instância, pela Justiça Federal de São Paulo
Depois da Satiagraha, os procuradores da República passaram a cobrar as investigações da corregedoria da PF sobre eventuais irregularidades praticadas por policiais. Esbarraram na resistência corporativa da polícia, que considerou a iniciativa do Ministério Público uma interferência indevida em seus assuntos internos. O chefe da Corregedoria-Geral da Polícia Federal, delegado Valdinho Jacinto Caetano, orientou as superintendências e delegacias em todo o país a não entregar suas investigações internas aos procuradores. “Somos rigorosos, cortamos na própria carne. Quando há crime, nós comunicamos ao Ministério Público”, afirma Caetano. Como argumento, ele brande os números dos 1.824 processos administrativos disciplinares instaurados nos últimos cinco anos, que levaram à expulsão de 55 policiais federais e à suspensão de outros 257.
Uma das investigações que a Polícia Federal se recusou a enviar ao Ministério Público se refere às denúncias de tortura contra a equipe do delegado Anderson Torres. Para a corregedoria da PF, não houve tortura e nada havia a censurar no comportamento dos seis policiais federais. Para os procuradores da República, a apuração da corregedoria da PF foi feita sob medida com o objetivo de acobertar o crime cometido pelos policiais. Baseado em depoimentos das vítimas e de testemunhas, os procuradores da República dizem que o delegado Anderson Torres comandou pessoalmente a diligência para prender Clésio de Castro e depois participou da tortura. Entrevistado por ÉPOCA, o delegado negou a acusação feita pelos procuradores. “Não houve nada disso. Essa denúncia é um absurdo”, afirma Torres. Ele disse que resolveu investigar o furto porque queria averiguar uma suposta ação do tráfico internacional de drogas contra seus agentes. Torres diz que chegou a ir à delegacia da Polícia Civil, que investigava o caso, mas nega ter participado de diligências ou de tortura. Roberto Matsuuchi e Ana Cristina Matsuuchi não quiseram se manifestar sobre a denúncia do Ministério Público.
Em dezembro passado, o Ministério Público Federal fez outra denúncia à Justiça Federal acusando agentes da PF de envolvimento em crimes contra direitos humanos. Em três visitas à carceragem da PF em Brasília, instalada em uma das dependências da Penitenciária da Papuda, os procuradores da República afirmam ter comprovado que os presos sofriam maus-tratos e tortura. Lá, ficam os presos acusados de crimes federais ainda não condenados e os que esperam decisão do Supremo Tribunal Federal sob pedido de extradição. Além de espancamentos, os procuradores afirmam que, em setembro do ano passado, foi servida água misturada com detergente para os presos da carceragem beberem.
Os presos se queixaram ao MP. De acordo com os procuradores, como represália, o chefe da carceragem, o agente da Polícia Federal Avilez Moreira de Novais, mandou que os presos fossem despidos, algemados e levados só de cuecas para uma pequena área onde ficaram amontoados sob sol escaldante por horas. Alguns passaram mal e dois tiveram de ser atendidos no hospital. A pedido do Ministério Público, a Justiça Federal afastou o agente Avilez Novais. Para o corregedor da PF, delegado Caetano, a denúncia foi uma injustiça e é inconsistente. “A denúncia teve como base o depoimento dos próprios presos”, afirma Caetano. “Vamos nos defender na Justiça.”
Além de abusos, como tortura, os procuradores envolvidos na fiscalização da PF afirmam ter encontrado indícios preocupantes de mau desempenho por parte da instituição. De acordo com o grupo nacional de controle da PF no Ministério Público, menos de 30% dos inquéritos relatados pela PF são aproveitados pelo Ministério Público e usados em denúncias à Justiça. Em 2009, em São Paulo, os procuradores da República em São Paulo arquivaram 5.706 inquéritos policiais e aproveitaram apenas 914 para ações penais. Para os procuradores, algumas causas explicam esse desempenho pífio. Como os crimes federais prescrevem mais rapidamente e as investigações se arrastam, os prazos para apresentação de denúncia, com frequência, vencem antes da conclusão dos inquéritos. Além disso, muitas investigações incompletas não conseguem comprovar a materialidade ou a autoria dos crimes.
A Polícia Federal rebate essa crítica e diz que há outras causas para o baixo aproveitamento das investigações policiais. Segundo a assessoria da PF, a corporação é obrigada a investigar todas as denúncias que recebe. Em muitos casos, a investigação termina sem que haja crime para denunciar. Em casos de sonegação fiscal e crimes contra a Previdência, as investigações são arquivadas, segundo a PF, porque os acusados pagam as dívidas e se livram do inquérito.
Por causa de divergências sobre os limites do controle externo, a Polícia Federal e o Ministério Público estão em litígio judicial em vários Estados. O pior conflito ocorre no Rio de Janeiro. Lá, os procuradores dizem ter constatado uma baixa produtividade da polícia em investigações sobre tráfico internacional de armas e de drogas. Eles requisitaram os relatórios de inteligência produzidos pela PF. Por orientação da direção nacional, a superintendência da PF no Rio se negou a entregar os documentos sob o argumento de que a Diretoria de Inteligência Policial e suas seções não estão sujeitas ao controle do Ministério Público. “Como parte do Sistema Brasileiro de Inteligência, o controle externo desse setor da PF é feito pelo Congresso”, afirma o delegado Caetano.
Segundo o Ministério Público, menos de 30% dos
inquéritos da PF rendem denúncias à Justiça
Os procuradores da República tomaram depoimentos de delegados envolvidos na repressão ao tráfico de armas e passaram a acusar a PF de omissão no combate ao crime. Também entraram com uma ação na Justiça para ter acessos aos relatórios de inteligência. “Esses relatórios deveriam ter sido enviados ao Ministério Público, mas não foram. Isso é grave”, afirma o procurador Marcelo Freire, do grupo de controle externo da PF no Rio de Janeiro. A disputa no Rio mostra o nível de beligerância a que chegou a relação entre a polícia e o Ministério Público, instituições que deveriam trabalhar em regime de colaboração