Marcelo Godoy
O Estado de S.Paulo
26 de agosto de 2019
Caro leitor,
No dia em que Jair Bolsonaro entrou no imponente pátio da Academia Militar das Agulhas Negras, em Rezende (RJ), talvez, tenha se impressionado com o lema: “Cadetes: ides comandar. Aprendei a obedecer”. Parte de seus ministros e assessores teve a mesma experiência. Todos estão familiarizados com os manuais do Exército.
Há o C-124 para estratégia, mas o presidente, que foi o 18º colocado entre 65 cadetes da Arma de Artilharia, não parece encontrar com facilidade os caminhos e atalhos para um porto seguro nessa área. Talvez não conheça nenhum “Cabral” – o Queiroz, então, deixa pra lá… A terminologia militar é autoexplicativa. O leitor não tem obrigação de dominá-la, mas o presidente sabe do que se trata.
Vamos ao manual. Nada mais importante do que entender e respeitar o que ele diz. O C-124 devia estar na cabeceira de Bolsonaro, como de qualquer chefe que deseje liderar um governo. Como nunca passou da patente de capitão, talvez o presidente não tenha tido a oportunidade de explorá-lo com vagar, como o fazem os alunos da Escola de Comando e Estado-Maior (Eceme).
O general Marcello Rufino dos Santos foi o responsável pelo documento. Se o examinar, Bolsonaro verá que ele alerta para “a crescente vulnerabilidade dos Estados a interferências externas; para o aumento da importância de atores que não representam Estados, tais como organizações internacionais, organizações não-governamentais, empresas multinacionais e grupos de interesse, cujas influências ultrapassam as fronteiras nacionais; e para o elevado grau de interdependência entre todos os atores”.
A crise da Amazônia está, pois, explicada em três linhas do manual. A soberania não é absoluta no mundo do século 21. O mesmo documento diz que não se deve escalar uma crise sem que isso faça parte de uma estratégia. E aqui um assessor especial do presidente, o ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas, parece ter esquecido o ensinamento do manual que leu quando fez o curso da Política e Estratégia e Alta Administração do Exército.
Ao tuitar na sexta-feira que o presidente francês Emmanuel Macron havia “ameaçado empregar o seu poder militar” – o que não era verdade – contra nossa soberania, Villas Bôas escalou a crise. E contra uma nação que, apesar de seu protecionismo agrícola, é amiga – que o diga a Marinha do Brasil. De fato, o manual e a etiqueta dizem que o general não devia – como assessor do presidente – expressar opiniões sobre política externa.
Com uma clareza dificilmente vista, estamos assistindo a mais um país europeu, dessa vez a França, por intermédio do seu presidente Macron, realizar ataques diretos à soberania brasileira, que inclui, objetivamente, ameaças de emprego do poder militar.
— General Villas Boas (@Gen_VillasBoas) August 23, 2019
Se "a estratégia é a arte de preparar e aplicar o poder para, superando óbices de toda ordem, alcançar os objetivos fixados pela política", a pergunta é simples: qual o objetivo que Villas Bôas queria alcançar? Ele fora fixado por quem? Explorar "idéias-força como patriotismo, independência nacional e descolonização" seria parte de uma manobra. Mas é preciso lembrar que, "no momento da eclosão do desafio – diz o manual -, "o nível político será o responsável por definir o comportamento" a ser adotado. Escalar a crise era, portanto, o desejo de Bolsonaro?
Em um governo minimamente organizado, esses temas seriam de alçada dos ministros da Defesa e do Itamaraty. Em vez disso, pululam manifestações em redes sociais de integrantes do Executivo e aliados com termos pejorativos ao presidente francês. Trata-se de mau exemplo. Parecem esquecer que só um presidente responde a outro. Mas o que esperar quando o primeiro mandatário faz troça pública da mulher de Macron? Exigir compostura e etiqueta parece coisa de outro século. Ou, como escreveu Cassiano Ricardo em seus geniais versos em 'Os sobreviventes': “Tudo o que foi ontem é outra era”.
O leitor viu aqui que o comandante do Exército, general Edson Pujol, recebeu a tarefa de apagar o incêndio criado por Bolsonaro. Teve ainda o general de dar uma rara entrevista na sexta-feira à tarde, no Congresso, na qual se dissociou dos termos usados por Villas Bôas. Ele disse: “Para que um País entre em um conflito armado tem de haver uma razão muito forte e tem de ter aceitação da sociedade, do Congresso. A sociedade tem de ver alguma razão para chegarmos a esse extremo de um conflito armado. Não basta um mandatário de uma nação querer”.
Pujol leu o manual. E lembra dele. Sabe que suas regras servem tanto para Macron quanto para Bolsonaro. Tanto para o Brasil quanto para a Venezuela. O comandante se afasta dos guerreiros ideológicos. Da turma que é capaz de acusar o ICMBio de incendiar a floresta para encobrir a própria responsabilidade. Trata-se de manobra antiga. Em 'Anais', Tácito nos conta como Nero culpou os cristãos pelo incêndio de Roma para se livrar das injustas suspeitas que recaíam sobre o imperador.
O comandante mostra que quer deixar o Exército fora das confusões do bolsonarismo. É bom que assim seja. A Força Armada é instrumento de Estado. A política a que deve se subordinar é outra. Não a dos cargos e comissões, dos salões claros e escuros onde se exerce a vaidade e se desgasta o poder. A entrada desta nos quartéis avilta a instituição, destrói o profissionalismo e corrompe os padrões militares.
Pujol decidiu não ter Twitter. E pôs um freio aos que – na ativa – queriam expressar seu partidarismo por meio das redes sociais. O comandante defende, assim, do manual à Constituição. Talvez saiba, como Tácito, que a fraqueza da natureza humana faz com que os remédios sejam menos rápidos do que os males; assim como nosso corpo é lento ao se desenvolver e está sempre pronto para perecer, também é mais fácil sufocar os espíritos, as leis e os estudos do que retomá-los.
O historiador pensava em restaurar o "espírito romano". Mas, uma vez degradada, a República jamais se recuperou.